25/04/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: A PERSONAGEM

A pompa desmedida parece hoje imoral, mas sabemos, ao mesmo tempo, dar o devido valor histórico à suntuosidade de outrora.

Quem visitar a Capela de São João Nepomuceno na Igreja de Santiago (Eglise de Saint-Jacques-sur-Coudenberg/Sint-Jakob-op-Koudenbergkerk), em Bruxelas, verá os obiits de cinco reis dos belgas. Pelo que dá a antever o blog Royalement, houve Totenschilde alemães, rouwborden holandeses e hatchments britânicos muito mais suntuosos do que esses singelos painéis negros com uma fina orla dourada junto à moldura. Suspeito de que a doutrina católica, cada vez mais avessa a sepultamentos e, em particular, à suntuosidade funerária dentro dos templos, tenha influído aí, mas, além disso, é próprio da Idade Contemporânea julgar imoral a pompa desmedida, principalmente quando custeada pelo estado.

No passado, todavia, nem mesmo a igreja se podia opor a funerais extraordinariamente dispendiosos quando se faziam em memória dos príncipes mais poderosos, como o do imperador Carlos V, havido aos 29 de dezembro de 1558 na dita cidade de Bruxelas, sob a presidência de Filipe II da Espanha, seu filho. De resto, o pensamento contemporâneo tem sabido ressignificar o luxo de outrora, conferindo-lhe valor histórico, artístico e cultural. Ora, desse funeral não só se publicaram relatos, mas também um livro com uma série de gravuras belíssimas: La magnifique et sumptueuse pompe funèbre faite aux obsèques et funérailles du très grand et très victorieux Empereur Charles V, célébrées en la ville de Bruxelles le 29.e jour du mois de décembre 1558, par Philippes, Roi Catholique d'Espagne, son fils ('A magnífica e suntuosa pompa fúnebre feita nas exéquias e funeral do máximo e vitoriosíssimo Imperador Carlos V, celebradas na cidade de Bruxelas aos 29 dias do mês de dezembro de 1558, por Filipe, Rei Católico da Espanha, seu filho').

Carlos V (I pela numeração dos reis espanhóis) nasceu em 1500 em Gand, condado de Flandres. Era filho de Filipe o Belo, duque da Borgonha, e da infanta Joana de Castela, neto por parte paterna de Maximiliano I, rei dos romanos e arquiduque da Áustria, e de Maria I, duquesa da Borgonha (falecida em 1482), e por parte materna de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os Reis Católicos da Espanha. Dois anos depois do seu nascimento, seus pais viajaram à península, onde as Cortes de Toledo os juraram príncipes das Astúrias, isto é, herdeiros da coroa castelhana. Assim, ao morrer Dona Isabel em 1504, Dom Fernando proclamou Dona Joana rainha de Castela e depois, em julho de 1506, as Cortes de Valladolid juraram ambos, Dom Filipe e Dona Joana (1), reis e Dom Carlos seu sucessor, mas em setembro o rei faleceu. Em Flandres, onde o príncipe permanecera, sucedeu a seu pai como soberano dos domínios borguinhões; em Castela, Fernando o Católico mandou encerrar sua própria filha no paço de Tordesilhas, sob a alegação de que padecia de uma doença mental (com efeito, passou à história como Joana a Louca), e aí foi mantida até o fim da vida, em 1555.

A maioridade do duque Carlos foi declarada pelo imperador, seu avô, em 1515 e um ano depois faleceu o outro avô: Fernando, rei de Aragão e regente de Castela. Partiu, então, para a península, onde desembarcou em setembro de 1517. Seguidamente, foi jurado rei junto com sua mãe por cada estado da monarquia: em fevereiro de 1518 pelas Cortes castelhanas, em julho pelas aragonesas, em outubro pelas sardas, em novembro pelo parlamento siciliano, em fevereiro de 1519 pelas Cortes catalãs, em maio de 1520 pelas valencianas. Entrementes, em janeiro de 1519, morreu Maximiliano I, deixando ao rei Carlos os domínios austríacos e fazendo dele forte candidato à dignidade imperial. Foi eleito imperador em junho desse ano e coroado rei dos romanos em outubro do ano seguinte em Aquisgrão. Nesse momento, deteve um acúmulo de poder poucas vezes repetido ao longo da história humana. Mas a este acabam sendo proporcionais as dificuldades (2), de modo que em abril de 1521 o imperador Carlos assentiu em ceder ao infante Fernando, seu irmão, os domínios austríacos (3).

Com efeito, Carlos V não só descendia de grandes príncipes do século XIV, mas também se relacionou diretamente com as grandes personagens do seu tempo. Adriano de Utrecht  que viria ser o romano pontífice em 1521 e 22 com o nome de Adriano VI — foi o seu preceptor e Erasmo de Roterdã, conselheiro seu. Fernão de Magalhães, Bartolomé de las Casas, Hernán Cortés e Francisco Pizarro fizeram as suas proezas ao serviço dele. Francisco I da França foi o seu maior rival e Solimão o Magnífico, sultão otomano, o seu antípoda. Ficou diante de Martinho Lutero na Dieta de Worms (1521) e presidiu a atos determinantes para a Reforma na Alemanha: a Dieta de Augsburgo (1530), a Paz de Nuremberga (1532), o Ínterim de Ratisbona (1541), a Guerra de Esmalcalda (1546-47), o Ínterim de Augsburgo (1548).

Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque nationale de France).
Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque nationale de France).

Carlos V manteve relações difíceis com os papas, que ora o apoiavam, ora pendiam para Francisco I, especialmente Clemente VII, que teve de se refugiar no Castelo de Santo Ângelo (Castel Sant'Angelo) durante o saque de Roma em 1527 e acabou coroando o próprio Carlos em 1530 em Bolonha, a derradeira coroação de um imperador pelo pontífice romano. Além disso, sempre propugnou a convocação de um concílio ecumênico com a esperança de reunificar a cristandade ocidental. Mas esse concílio demorou — só foi aberto em dezembro de 1545 pelo legado de Paulo III em Trento — e, enquanto isso, a distância entre católicos e protestantes aumentou de tal modo que a Paz de Augsburgo (setembro de 1555) pareceu um fracasso insuportável ao cansado e enfermo imperador, que nos meses seguintes abdicou dos seus domínios no príncipe Filipe, seu filho, e do Império no arquiduque Fernando, seu irmão, que já era rei dos romanos desde 1531, e se retirou da vida pública no Mosteiro de São Jerônimo de Yuste (Monasterio de San Jerónimo de Yuste), na Estremadura espanhola, onde faleceu em 1558, vítima da malária.

Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Capa de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Essas abdicações aconteceram em Bruxelas e quando se soube do óbito, Filipe II e os seus cortesãos ainda estavam nos Países Baixos, por isso nessa cidade se celebrou o pomposo funeral cujas imagens Hieronymus Cock desenhou, Lucas e Johannes van Doetecum gravaram e Christophe Plantin editou e publicou na forma do dito livro La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... em 1559, por iniciativa e, em parte, às expensas de Pierre de Vernois, arauto do rei. Com efeito, essa obra tem um conteúdo heráldico e vexilológico ímpar, pois os participantes trouxeram escudos e bandeiras não só do Império, mas da empresa do imperador e de todos os seus domínios, a começar pela folha de rosto, que mostra as armas imperiais:

  • De ouro com uma águia de duas cabeças de negro, nimbadas de ouro, e um escudete brocante sobre o peito da águia, cortado:
    • o primeiro partido:
      • o primeiro esquartelado: o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura (que é de Castela e Leão);
      • o segundo partido: o primeiro de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo franchado: o primeiro e quarto de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo e terceiro de prata com uma águia de negro (que é de Aragão e Aragão-Sicília);
      • embutido em ponta de prata com uma romã de verde, sustida e folhada do mesmo, aberta de vermelho (que é de Granada);
    • o segundo esquartelado:
      • o primeiro de vermelho com uma faixa de prata (que é da Áustria);
      • o segundo de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de prata e vermelho (que é de Borgonha moderno);
      • o terceiro bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho (que é de Borgonha antigo);
      • o quarto de negro com um leão de ouro (que é de Brabante);
      • sobre o todo do esquartelado, um escudete partido: o primeiro de ouro com um leão de negro (que é de Flandres); o segundo de prata com uma águia de vermelho (que é do Tirol). (4)

O escudo é timbrado pela coroa imperial, rodeado pelo colar da Ordem do Tosão de Ouro e ladeado pela empresa de Carlos V: as Colunas de Hércules com a divisa Plus oultre (em francês; Plus ultra em latim). Condensa os quatro costados do armígero:

  • As armas dos reinos de Castela e de Leão pela Coroa de Castela, herança de sua avó materna;
  • as armas dos reinos de Aragão e da Sicília pela Coroa de Aragão, herança de seu avô materno;
  • as armas do arquiducado da Áustria e do condado do Tirol pelos domínios austríacos, herança de seu avô paterno;
  • as armas dos ducados da Borgonha e de Brabante e do condado de Flandres pelos domínios borguinhões, herança de sua avó paterna. 

A partir desta postagem, darei os textos em português e as imagens desta obra e tecerei comentários sobre ela.

Notas:
(1) Ainda que tenha reinado por brevíssimo tempo, Filipe o Belo foi, portanto, o primeiro rei espanhol desse nome. A numeração dos reis espanhóis obedece à sequência reis das Astúrias > reis de Leão > reis de Castela > sucessores dos Reis Católicos. É por isso que Carlos de Habsburgo foi o primeiro rei da Espanha desse nome e o quinto imperador e Filipe, seu filho, o segundo rei da Espanha desse nome e o primeiro de Portugal e aquele que hoje reina é o sexto. Outrossim, Fernando o Católico foi o segundo rei de Aragão desse nome, mas o quinto de Castela, daí que os dois Fernandos que depois reinaram se tenham contado como o sexto e o sétimo. A rigor, não havia Espanha como estado-nação até a primeira constituição (1812), mas sim uma união dinástica de vários estados, e ao menos até a restauração da independência portuguesa (1640), por Espanha entendia-se a península toda (a Hispania romana), se bem que rei/rainha da(s) Espanha(s) é uma convenção que se adotou já no tempo dos Reis Católicos.
(2) De fato, quando Carlos I partiu para a eleição imperial em maio de 1520, teve de enfrentar por três anos revoltas civis: na Coroa de Castela contra as comunidades (das cidades e vilas reais) e na Coroa de Aragão contra as germanies ('irmandades' em catalão, isto é, as corporações de ofícios).
(3) É curioso que o príncipe Carlos, que mal sabia falar castelhano quando pisou pela primeira vez na península para ser jurado rei, tenha gerado o ramo espanhol dos Habsburgos e o infante Fernando, que foi criado junto a seu avô homônimo, tenha gerado o ramo austríaco dessa casa. A linha masculina de Dom Carlos perdurou até 1700 e a de Dom Fernando até 1780. Graças ao casamento do primeiro com Isabel de Portugal e do segundo com Ana Jaguelão houve as uniões ibérica (1580-1640) e austro-húngara (até 1918).
(4) Devido ao tamanho da reprodução, abstraí pormenores como os esmaltes diferentes das portas e frestas do castelo e das línguas e unhas dos animais. Foi, afinal, por essa época que começaram a ser fixados.

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