A imponência da nave Vitória condensa a complexão da celebração: religiosa, social e, sobretudo, política.
Além dos textos e das imagens de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., tenho-me valido, nesta série de postagens, dos relatos que achei em três obras: Théâtre funèbre (1622), de Adriaan van Meerbeeck; Historia de la vida y hechos del emperador Carlos V (1634), de Prudencio de Sandoval; Relations des ambassadeurs vénitiens sur Charles Quint et Philippe II (1856), de Louis-Prosper Gachard. Nenhuma esclarece, todavia, o que era verdadeiramente a nave Vitória, já que o desenho de Hieronymus Cock é realista demais para se discernir o que havia de autêntico e o que era simulacro. Não obstante, o fato de ter percorrido um quilômetro de ruas na Bruxelas de 1558 leva-me a razoar que era uma espécie de carro alegórico.
Prancha n.º 5 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF). |
Com efeito, consistia de uma galé negra e dourada, suntuosamente esculpida. As velas negras iam todas ferradas, salvo uma latina à popa, que continha um texto em latim. Ei-lo em português:
Ao Imperador César Carlos Máximo Pio Feliz Augusto Gálico Índico Túrcico Áfrico Saxônico, vencedor e triunfador de muitos povos.
Ainda que os seus feitos na terra e no mar, a sua singular cortesia, a sua incomparável e ardente religião sejam evidentes em todo o mundo, a república cristã, em memória da sua justiça, piedade e virtude, ofereceu publicamente com os seus recursos a nave Vitória, que deu a volta ao mundo, o qual ele ilustrou com as suas vitórias.
Além disso, por ter descoberto um mundo novo para o nosso mundo, tendo acrescido povos estranhos à crença cristã e aumentado o poderio das Espanhas com muitos reinos e províncias.
Por ter empurrado Solimão, imperador dos turcos, que ameaçava a Alemanha com trezentos mil cavaleiros e cem mil peões, de volta às suas fronteiras, tendo rompido as pontes e perdido quinze mil cavaleiros na fuga, deixando a Alemanha salvaguardada.
Porque invadindo o Peloponeso com a sua armada, tomou à força dos turcos as cidades de Modon e Coron (1).
Porque tendo sobrepujado o tirano Barba-Ruiva, que tinha duzentos mil peões e dezesseis mil cavaleiros, despossuiu-o da fortaleza de La Goleta (2), sessenta galés, muitos navios piratas, todo o aparato naval e de guerra, tendo tomado a própria Túnis, as cidades de Hipona Nova, Hipona Régia (3) e devolvido o reino tunisino e o poderio da Líbia ao legítimo rei, fazendo dele tributário seu.
Porque tendo libertado dezenove mil cristãos nessa guerra, enviou-os de volta à pátria.
Porque devolveu o reino de Tremecém (4) ao seu rei numa batalha vitoriosa na Mauritânia.
Porque tendo tomado com uma armada Afrodísio, o mais renomado empório da Líbia, Sussa, Monastério e Clúpea (5), fez das cidades costeiras da Líbia e dos seus príncipes tributários.
Porque destruiu duas armadas dos turcos, que infestavam o mar, em duas batalhas, uma perto da costa da Mauritânia e a outra perto da Sicília.
Porque estando o mar infestado das pilhagens dos piratas, tornou-o seguro para os navegantes.
Porque devolveu à república dos genoveses a sua antiga liberdade.
Porque tendo rechaçado seis exércitos de inimigos em três batalhas vitoriosas, devolveu o ducado de Milão duas vezes ao Império Romano e uma vez ao seu duque.
Porque com incrível celeridade sujeitou pelas armas o ducado de Gueldres ao seu domínio.
Porque com um brilhante exemplo de perícia nos negócios da guerra, primeiro se demorando, em seguida por longas e difíceis viagens, rapidamente realizadas, e tendo atravessado o Elba, apaziguou vitoriosamente o movimento da Alemanha, que se alvoroçava, tendo pacificado, além disso, a Boêmia.
Porque por vontade própria tomou armas contra os inimigos da crença cristã; contra cristãos, somente quando provocado e rebatendo injúria.
A mesma república cristã, devotíssima de Sua Majestade, dedicou-a ao mais forte, católico e melhor príncipe, tendo juntado ao seu túmulo os títulos e troféus com as bandeiras dos reinos e as figuras dos povos derrotados.
Texto explicativo da prancha n.º 5 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF). |
A nave vogava sobre o mar entre quatro ilhas, duas de um lado e duas do outro. Nelas, viam-se bandeiras otomanas deitadas ao chão e, chantada triunfalmente, a bandeira imperial. Como as velas estavam ferradas, a nave ia puxada por dois hipocampos. Nos costados, pintaram-se cenas das gestas que o texto louva e o livro enumera:
2. O Novo Mundo achado.
3. Solimão abatido.
4. Modon e Coron tomadas à força.
5. Túnis tomada e devolvida e os cativos enviados de volta.
6. Tremecém devolvida.
7. O mar pacificado.
8. Gênova defendida na sua liberdade.
9. Milão reavido.
10. Gueldres recebido.
12. A Alemanha e a Boêmia apaziguadas.
No alto do casco e ao redor dele, escreveram-se uns versos em latim. Ei-los em prosa vernácula:
Não foi sede de ouro nem ambiciosa cobiça de fama nem o amor ao cetro que te persuadiu a te expores a tantas fadigas, mas foi o piedoso cuidado do gênero humano que te impôs investigar em naves costas ignotas, para que lhes levasses o sagrado e dedicasses os povos a Cristo, purificando os seus membros pela aspersão da água salutífera.
Nem te faltou, ó César, a esperança firme no sucesso da busca até que, enfim, partiu do litoral ibero, aplanando Netuno o caminho e os seus aquosos tritões: com os teus auspícios, a veneranda religião foi levada além das águas; arriba, por fim, às auríferas Índias, irradiando com luz nova as mentes imersas na escuridão.
Em volta do castelo da popa, puseram-se escudos armoriados. A gravura deixa ver as armas de Leão, de Áustria antigo, da Córsega, da Biscaia e de Bugia. No convés, estavam três passageiras alegóricas: de pé à proa, a Esperança (Spes), vestida de roxo, apoiando uma âncora; sentada em cima de um cubo ou rocha (Christus 'Cristo') à meia-nau, a Fé (Fides), vestida de branco, tendo um crucifixo e um cálice; de pé à popa, a Caridade (Charitas), vestida de vermelho, segurando um coração flamejante na ponta de uma vara e um báculo. Da proa à popa, arvoraram-se bandeiras quadradas de vários estados (6).
Primeiro, da Zelândia: partido, o primeiro de ouro com um leão nascente de vermelho, armado e lampassado de azul; o segundo ondado de azul e prata de seis peças. Quando Filipe o Bom, duque da Borgonha, recebeu esse condado de Jacqueline da Baviera, prima sua, em 1433, já estava unido ao da Holanda desde 1222.
Depois, de Zutphen: de prata com um leão de vermelho, armado, lampassado e coroado de ouro. Quando Carlos o Temerário, duque da Borgonha, comprou esse condado a Arnoldo de Egmont em 1473, já estava unido ao ducado de Gueldres desde 1138.
Depois, de Salins: de ouro com uma banda de vermelho. Quando João Sem Medo, duque da Borgonha, recebeu esse senhorio de Margarida III de Flandres, sua mãe, em 1405, já estava unido ao condado da Borgonha desde 1361.
Depois, de Limburgo: de prata com um leão de cauda forcada de vermelho, armado, lampassado e coroado de ouro (aqui de cauda singela e sem coroa). Quando Filipe o Bom recebeu esse ducado de Filipe de Brabante, primo seu, em 1430, já estava unido ao ducado de Brabante desde 1288.
Depois, da Borgonha palatina: de azul, semeado de bilhetas de ouro, com um leão coroado do mesmo, armado e lampassado de vermelho, brocante. João Sem Medo recebeu esse condado de Margarida III de Flandres em 1405.
Depois, de Namur: de ouro com um leão de negro, armado e lampassado de vermelho e uma cotica do mesmo, brocante sobre tudo. Filipe o Bom recebeu esse condado de João III de Namur em 1429, a quem o comprara oito anos antes.
Depois, de Luxemburgo: burelado de prata e azul de dez peças (aqui seis burelas) com um leão de cauda forcada (aqui singela) de vermelho, armado, lampassado e coroado de ouro, brocante. Filipe o Bom recebeu esse ducado de Isabel de Görlitz, tia sua, em 1443.
Depois, de Mechelen: de ouro com três palas de vermelho (aqui quatro). Quando João Sem Medo recebeu esse senhorio de Margarida III de Flandres em 1405, já estava unido ao condado de Flandres desde 1333.
Depois, do Tirol: de prata com uma águia de vermelho, bicada, membrada e coroada de ouro, cada asa carregada de um Kleestängel (7) do mesmo (aqui sem essa figura). Rodolfo IV, duque da Áustria, adquiriu esse condado em 1363.
Depois, da Holanda: de ouro com um leão de vermelho, armado e lampassado de azul (aqui coroado de ouro). Quando Filipe o Bom recebeu esse condado de Jacqueline da Baviera em 1433, já estava unido ao de Hainaut desde 1299.
Depois, do Artois: de azul, semeado de flores de lis de ouro, com um lambel de vermelho de três pendentes, cada um carregado de três castelos de ouro, brocante (aqui sem os castelos). Quando João Sem Medo recebeu esse condado de Margarida III de Flandres em 1405, já estava unido ao condado da Borgonha desde 1329.
Depois, de Rossillon: fendido emalhetado de vermelho e prata. Não identifico o nome nem as armas. Na França, há uma comuna desse nome, pertencente em 1558 à Casa de La Forest, que não traz tais armas. Mesmo que se tratasse do condado do Roussillon (Rosselló em catalão), este nunca teve armas diferentes daquelas do rei aragonês.
Depois, do Charolais: de vermelho, com um leão em fugida de ouro, armado e lampassado de azul. Filipe o Ousado, duque da Borgonha, comprou esse condado a Bernardo VII de Armagnac em 1391.
Depois, de Hainaut: esquartelado, o primeiro e quarto de ouro com um leão de negro, armado e lampassado de vermelho (que é de Flandres); o segundo e terceiro de ouro com um leão de vermelho, armado e lampassado de azul (que é da Holanda). Filipe o Bom recebeu esse condado de Jacqueline da Baviera em 1433.
Enfim, da Frísia: de azul com três bandas de prata, carregadas de folhas de nenúfar de vermelho (aqui postas no sentido das bandas). Quando o próprio Carlos, então duque da Borgonha, comprou esse senhorio a Jorge da Saxônia em 1515, os frisões vinham vivendo entre a rebeldia e a liberdade em relação aos senhorios vizinhos desde o século XII. O país foi subjugado em 1523.
Além disso, no alto de cada mastro içaram-se bandeiras do finado imperador: no traquete, das armas pessoais, tal como mostrei e brasonei na postagem de 25/04; no mastro grande, das armas imperiais; na mezena, das armas austríacas esquarteladas (o primeiro e segundo de azul com cinco aguietas de ouro, bicadas e membradas de vermelho, que é de Áustria antigo; o terceiro e quarto de vermelho com uma faixa de prata, que é de Áustria moderno).
Prancha n.º 5 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon). |
Havia, enfim, três flâmulas vermelhas, longas e esvoaçantes: da gávea do traquete pendia uma com uma nuvem radiante, o tosão de ouro e fagulhas; da gávea do mastro grande, outra com a imagem de Jesus Cristo crucificado e a empresa de Carlos V; do alto desse mesmo mastro, a terceira, que trazia um pelicano em sua piedade, o fuzil com a cruz de Santo André e fagulhas.
Como se não bastasse a nave mesma, a dita empresa pessoal ia atrás: duas colunas, sobre uma a coroa imperial e sobre a outra a real, ambas de estilo coríntio, assentes em penedos e puxadas por animais marinhos fantásticos com cabeça de elefante. Em cada uma, pendurou-se um letreiro, cujo texto latino em nosso idioma diz: "O próprio domador dos monstros de seu tempo" e "Justamente tomaste para ti as Colunas de Hércules por emblema".
A nave Vitória era, portanto, uma oferenda dos estados borguinhões. Por ela, não só homenagearam o seu falecido senhor, mas também tiraram máximo proveito da precedência que a celebração na sua capital lhes conferia, assumindo incomparável destaque. No entanto, algumas bandeiras parecem sobrar, ao passo que outras faltam.
Parecem sobrar as bandeiras das armas austríacas e tirolesas, que não representam domínios da Casa da Borgonha, mas da Casa de Habsburgo. Faz muito sentido: embora esta possuísse muitos títulos e territórios — os ducados da Estíria, da Caríntia e da Carniola, o principado da Suévia, os condados de Habsburgo, Ferrette, Kyburgo e Gorícia, a marca de Burgau, o landgraviato da Alsácia e os senhorios da Marca Eslavônica e Pordenone —, Carlos V e seus sucessores seguiram intitulando-se, por cortesia, arquiduques da Áustria e condes do Tirol e trazendo as respectivas armas, mesmo tendo ele abdicado desse patrimônio no infante Fernando, seu irmão, em 1521.
Faltam as bandeiras das armas borguinhonas, brabançonas, gueldresas e flamengas. Na verdade, os ducados da Borgonha e de Brabante e o condado de Flandres eram os títulos de maior precedência e o ducado de Gueldres era uma aquisição recente e ufana. Por isso, deu-se-lhes a honra de encabeçar o cortejo dos gentis-homens que levaram as bandeiras e os cavalos armoriados com as armas dos reinos do finado soberano. É o objeto da próxima postagem.
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