A heráldica na pompa fúnebre de Carlos V não era apenas decorativa, mas representava efetivamente uma monarquia compósita.
Quem vê as pranchas finais de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., pensa que, tendo aparecido o rei, o cortejo era encerrado pelos cavaleiros do Tosão de Ouro. No entanto, atrás deles ainda havia bastante gente. O livro não os mostra, mas os menciona em uma página de texto:
Penúltima página de texto de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF). |
Em português:
Depois seguia o duque de Francavilla,
presidente dos Conselhos da Itália, e ao seu lado direito o conde de Chinchón,
tesoureiro de Aragão, e do outro o Licenciado Menchaca, que é do Conselho da
Câmara do Rei. Depois, os regentes de Nápoles, de Milão, de Aragão, da Sicília
e da Catalunha e os secretários do Conselho de Estado desses países; o
presidente, os conselheiros e secretários do Conselho de Estado dos Países de
Baixo; os conselheiros, maitres des requêtes, secretários, meirinhos e
outros oficiais do Conselho Privado. Na sequência, o tesoureiro, o
recebedor-geral, os oficiais-mores, almoxarifes, escrivães e outros oficiais
das finanças dos ditos Países de Baixo. E os oficiais do gabinete da Casa do Rei.
E para encerrar a ordem da pompa acima representada, o lugar-tenente do capitão do corpo de archeiros do Rei seguia atrás e esses archeiros em tropa.
Prancha n.º 33 do exemplar da BNE. |
Curiosamente, o exemplar colorido de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... conservado na Biblioteca Nacional de España contém uma prancha espúria, interpolada entre as de n.os 26 e 27, que mostra "[l]os señores de los consejos de España y [Italia]" e em tudo imita o estilo da obra. Essa prancha, numerada à mão com o n.º 33, está, infelizmente, rasgada, mas a parte preservada identifica as personagens seguintes: Diego Hurtado de Mendoza, duque de Francavilla e presidente do Conselho da Itália; Pedro Fernández de Cabrera y Bobadilla, conde de Chinchón e tesoureiro-geral da Coroa de Aragão; o Licenciado Francisco Menchaca do Conselho da Câmara; Lorenzo Polo e Marcello Pignone, marquês de Oriolo, regentes do Conselho da Itália por Nápoles; Juan Barahona e Gabriele Casati, regentes do mesmo conselho por Milão. Além disso, em dezembro de 1558, o presidente do Conselho de Estado dos Países Baixos era Viglius van Aytta; o tesoureiro-geral das finanças era Pierre Boisot; o recebedor-geral era Lievin Wouters.
Esses nomes e ofícios dão uma ideia de como funcionava "o império onde o sol nunca se punha". Com efeito, a cada brasão nas postagens de 05/05 e 07/05, corresponde não só certo território, mas também certo ordenamento jurídico. É por isso que o próprio Carlos V teve de esperar pacientemente quase três anos para ser jurado rei pelas várias cortes hispânicas, como expus na postagem de 25/04. A relação soberano-vassalo era entendida, especialmente na Coroa de Aragão, como recíproca: o vassalo jurava lealdade e o soberano, a defesa do direito. O direito, em diferentes medidas, prevenia que a soberania se convertesse em tirania. À exceção da Coroa de Castela, cujos reinos — Castela, Leão, Granada, Toledo, Galiza, Sevilha, Córdova, Múrcia, Jaén, ilhas Canárias e Índias — não passavam, na prática, de províncias de uma monarquia autoritária (1), os demais estados tinham instituições aproximadamente análogas.
Assim, a soberania ou senhoria era exercida por um vicário do monarca diversamente intitulado: vice-rei, locotenente-geral, governador. Havia um corpo de direito civil, legislado pelos representantes dos três estamentos: nobreza, clero e burguesia. As assembleias dos estamentos denominavam-se Cortes em Aragão, Navarra, Valência, Sardenha e Catalunha; Parlamento na Sicília; Estados Gerais nos Países Baixos; Senado em Milão. Mas, como não funcionavam permanentemente, entre uma celebração e outra foi preciso instituir um órgão permanente, o qual acabou assumindo a maior parte da administração no seu território e se chamava Deputação do Reino em Aragão, Navarra e Sicília; Deputação do Geral em Valência e na Catalunha; Conselhos Colaterais nos Países Baixos. A instância judicial superior era a Real Audiência em Aragão, Valência, Maiorca, Sardenha e Catalunha; a Grande Corte na Sicília; o Sacro Régio Conselho em Nápoles; o Conselho Real em Navarra; o Grande Conselho nos Países Baixos; o mesmo Senado em Milão. (2)
Tamanha descentralização demandava uma instância que mediasse os interesses dos vassalos junto ao soberano, daí que se tenham criado os conselhos territoriais na corte: o Conselho de Castela abrangia o território peninsular da Coroa homônima e as ilhas Canárias; o das Índias (1524), os demais territórios ultramarinos dessa Coroa; o de Aragão (1494), o reino desse nome, os de Valência, Maiorca, Sardenha e o principado da Catalunha; o da Itália (1556), os reinos da Sicília e de Nápoles e o ducado de Milão; o de Flandres e Borgonha (1588), os Países Baixos. A única instância comum a toda a monarquia era o Conselho de Estado, ao qual competia a política exterior.
Foi precisamente a política exterior que desgastou pouco a pouco o sistema, já que nem sempre os diferentes estados se dispunham de bom grado a suportar os custos de guerras incessantes que pouco tinham a ver com eles. Em grande medida, restava à Coroa de Castela sustentar essa despesa, não só porque o rei residia aí, mas também porque era o domínio mais extenso e populoso e o que limitava menos o poder régio, tanto que tinha mais dois conselhos: o da Câmara (1518) e o da Fazenda (1523). Seja como for, a monarquia compósita que os avós de Carlos V lhe legaram e ele realizou durou até o fim da sua linha masculina, em 1700.
(1) A exceção da exceção, por assim dizer, era o que depois seria chamado de províncias vascongadas e hoje forma o País Basco: o senhorio da Biscaia e as províncias de Álava e Guipúzcoa. Os seus forais escaparam à uniformização administrativa até o século XIX e, residualmente, até a atualidade.
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