Mesmo que o corpo estivesse sepultado alhures, a capela-ardente era o centro político de uma cerimônia pretensamente religiosa.
Capela-ardente ou câmara-ardente é o espaço onde se expõe o féretro, comumente dito caixão, enquanto dura o velório de um falecido. Portanto, uma prática que segue plenamente habitual, ao menos entre os católicos, ainda que o termo tenha caído em desuso, se é que foi, alguma vez, usual na língua portuguesa. De fato, hoje em dia, quando não numa capela do cemitério, as pessoas velam os seus mortos em locais privados que simulam uma capela. Segue a descrição da capela-ardente de Carlos V segundo La magnifique et sumptueuse pompe funèbre...
Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF). |
A capela-ardente representada na figura seguinte era admirável, pois a sua área media vinte pés de comprimento e dezesseis de largura, sendo construída sobre quatro grossos pilares quadrados de vinte pés de altura e erguida de forma piramidal de tal artifício e grandeza que levava cerca de três mil círios ardentes, cada um do peso de uma libra.
A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da BnF). |
Pela imagem compreende-se bem por que essa prática recebeu o nome de capela-ardente: quando se construía, como é o caso, uma estrutura especial para a exposição do féretro, a esta dava-se forma de capela, a qual se iluminava com círios, ou muitos círios.
Descrição da capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon). |
A capela-ardente de Carlos V foi erguida no cruzeiro da Igreja Colegial, hoje Catedral de Santa Gúdula (Cathédrale des Saints Michel et Gudule/Sint-Michiels- en Sint-Goedelekathedraal). A igreja toda foi preparada para o velório e as exéquias. A nave foi fechada por tapumes e toldada por panos pretos em toda a sua extensão, acima dos quais pendiam sanefas da mesma cor com as armas do finado. Essa tira de tecido era outra forma de armoriar o templo e denominava-se litre em francês (da mesma origem de listra em português). Desse modo, só se entrava pelas portas frontais do edifício. Diante da porta do coro, montou-se um estrado de quatro degraus e sobre ele, o altar para oficiar as exéquias.
A capela-ardente (La magnifique et sumptueuse pompe funèbre..., exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon). |
Além do descrito no livro, vê-se que o design da capela-ardente destaca o conteúdo heráldico dela. Assim, a cobertura piramidal tem quatro níveis para ostentar em cada face as armas dos reinos e senhorios de Carlos V e os enormes castiçais têm formas de cruzes recruzetadas e deitadas para não tapar a visão desses brasões nem do que remata o conjunto: três grandes coroas reais antigas e, sobranceira e maior, uma coroa imperial. A mensagem é de fácil inteligência: mais que pessoais, essas armas representavam os estados que, em união dinástica, constituíam uma só monarquia.
À medida que a leitura passa do continente para o conteúdo, reforça-se o sentido, pois são as insígnias concretas do império o que os signos decorativos da capela abrigam: a coroa, o cetro e o orbe, cada uma sobre um coxim dourado. A coroa foi deposta em cima do féretro, coberto de brocado dourado com uma cruz chã de veludo vermelho; o cetro e o orbe, em cima de pedestais cobertos de veludo preto, tudo elevado por um estrado de três degraus. Esses mesmos tecidos revestem, a propósito, o teto armoriado da capela-ardente.
A leitura é confirmada pela abundância de brasões em volta da capela-ardente: quatro pedestais sustentam círios maiores, cada um um, entre os quais havia outros menores, alinhados diante e detrás da capela-ardente, todos guarnecidos com as armas da própria dignidade imperial: a águia bicípite negra em campo de ouro. Trocando em miúdos, ao olhar para frente, a heráldica leva o observador a ver o imperador romano; ao levantar os olhos, percebe que ele era o rei da Espanha e de seus outros domínios.
Enfim, é curioso que o caixão estivesse vazio. Tendo falecido no Mosteiro de São Jerônimo de Yuste (Monasterio de San Jerónimo de Yuste), Carlos V aí foi sepultado (1). Mas, de acordo com o costume de cada terra, não era incomum que se celebrassem em várias cidades funerais régios. Apesar do caráter sacramental, a cerimônia tinha, afinal, um conteúdo político mais que evidente.
(1) Em 1573, Filipe II resolveu transladar os restos mortais de seu pai para o Mosteiro de São Lourenço de El Escorial (Monasterio de San Lorenzo de El Escorial), que ele mesmo mandara edificar e fundara em 1567. Com efeito, na cripta da basílica desse mosteiro, ou Panteão Real (Panteón Real), repousam os restos de todos os reis espanhóis das casas de Habsburgo e Bourbon, começando pelo próprio Carlos V, exceto Filipe V e Fernando VI.
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