03/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS INSÍGNIAS PESSOAIS

A empresa de Carlos V teve enorme fortuna: de emblema pessoal, de caráter programático, evoluiu para símbolo nacional da Espanha.

A partir desta postagem, darei as pranchas que Hieronymus Cock desenhou e Johannes e Lucas van Doetecum gravaram. Como expliquei na postagem anterior, elas não abrangem a pompa toda, mas a parte mais suntuosa, que apresenta, precisamente, precioso conteúdo heráldico. Esta seção inicial estende-se da prancha 2.ª à 6.ª (1). Saltarei a 5.ª, que mostra a nave Vitória e demanda uma postagem à parte, a próxima.

Prancha n.º 2 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Abrindo a seção, a prancha n.º 2 contém uma legenda latina. Em vernáculo, diz o seguinte:

Com esta magnífica suntuosidade e bela ordem, a pompa fúnebre avançou do paço à Igreja de Santa Gúdula, em Bruxelas, na ocasião em que o muito pesaroso Filipe, Rei das Espanhas, foi cumprir as honras para com Carlos V, Imperador Romano, seu pai.

Abaixo da legenda, há dois atabaleiros e catorze trombetas, todos vestidos de preto em sinal de luto. Os seus instrumentos suportam bandeirolas armoriadas com as armas do imperador, ou melhor, a própria bandeirola serve de campo ao brasão, ainda de acordo com o uso medieval (sobre este, leia-se a postagem de 02/02/21).

Pranchas n.º 3 e n.º 4 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Após os atabaleiros e trombetas, vinham três oficiais de armas, mais precisamente um rei de armas entre dois passavantes. A estes é possível discernir porque vestiam o tabardo girado, isto é, as mangas sobre o peito e as costas. As armas, reproduzidas sobre a peça inteira, como no caso das bandeirolas, permitem reconhecer igualmente os títulos: o rei de armas, do imperador; o passavante à sua direita, de Hainaut; aquele à sua esquerda, do Artois. Embora tenha havido reis de armas desses títulos, a nomeação e promoção dependia de várias circunstâncias, como a aposentadoria ou morte do titular, a sua experiência no ofício e o pertencimento dele a essa ou àquela casa real (2).

A seguir, alguns gentis-homens da Casa traziam diversas insígnias: Don Pedro de la Cerda, "a corneta das cores de Sua Majestade Imperial"; Jacques de Castre, "o guião"; Prosper de Lullin, o elmo de justa; Don Juan de Castilla, a tarja; Antoine de Vercel e Francisco Marlés de Malla, o cavalo de justa; Stefano Doria, "o grande estandarte das cores".

Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

A corneta, o guião e o grande estandarte eram bandeiras de tafetá com três faixas horizontais — amarela, roxa e parda  as cores pessoais do imperador. Sobre as faixas, as insígnias da Ordem do Tosão de Ouro: um fuzil de ouro, uma pederneira e fagulhas. Na verdade, essas figuras formavam a empresa de Filipe o Bom, duque da Borgonha (1419-67), o fundador dessa ordem, graças à qual o transcenderam e se incorporaram à emblemática da própria dinastia, tanto que nessas bandeiras de Carlos V o fuzil aparece encadeado numa aspa de troncos esgalhados: a cruz de Santo André, padroeiro do ducado e da ordem.

Prancha n.º 2 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

As três bandeiras eram grandes e longas. A corneta, menor e retangular, trazia sobre as extremidades da aspa, a um lado e ao outro, as Colunas de Hércules com o mote Plus oultre (3), ou seja, a empresa do finado imperador. O guião, de cauda arredondada, ostentava a imagem do próprio apóstolo André junto à sua cruz. O grande estandarte, maior e de cauda bífida, carregava a imagem de Santiago Mata-Mouros, padroeiro da Espanha, as armas imperiais entre as Colunas de Hércules e as ditas insígnias borguinhonas. A gualdrapa do cavalo tinha as mesmas cores e o mesmo emblema da corneta, mas a tarja trazia apenas as cores com a empresa do seu proprietário.

Pranchas n.º 3 e n.º 4 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Na postagem de 29/04, argui que o conteúdo heráldico da capela-ardente deixa ver que as armas referentes a cada título do monarca já não se entendiam como pessoais dele, mas como territoriais: a união dos estados sustentando a monarquia comum. Ora, isso contrasta vivamente com a heráldica clássica (séculos XIII e XIV), quando até as armas duma cidade se entendiam como de um senhorio coletivo. Com efeito, essa mudança da heráldica moderna ensejou o aparecimento de outra espécie de emblema: a empresa (4). Ela era mesmo quase o contraponto do brasão: não era constrangida por regras sintáticas, não era hereditária, tinha forte carga simbólica e compunha-se livremente de um "corpo" (figura) e uma "alma" (mote).

Prancha n.º 6 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

A empresa de Carlos V tem por corpo duas colunas e por alma o mote Plus oultre. Foi inventada por Luigi Marliano, médico e conselheiro seu e depois bispo de Tui, em 1516, quando o jovem duque, tendo alcançado a maioridade havia pouco, presidiu pela primeira vez ao capítulo da Ordem do Tosão de Ouro, o 18.º, celebrado na mesma Igreja de Santa Gúdula, em Bruxelas. Como no ano seguinte teve de viajar à Espanha para ser jurado rei, o mote foi aí latinizado como Plus ultra. Com o tempo, certos pormenores foram-se fixando: em cima da coluna destra a coroa imperial e em cima da sinistra, a real, ambas sobre penedos que surgem do mar; em volta de cada coluna ou de ambas, um listel ou dois, em que se lê o mote.

Os gregos ligaram a Hércules os promontórios que flanqueiam o estreito entre o mar Mediterrâneo e o oceano no contexto do seu décimo trabalho: roubar o gado do gigante Gerião. Versões contaram-se várias, inclusive na corte borguinhona: o dito Filipe o Bom encomendou a Raoul Le Fèvre, capelão seu, Le recueil des histoires de Troie ('A coletânea das histórias de Troia'), cuja redação primitiva foi entregue por volta de 1464. No capítulo intitulado Comment Hercules alla en Espagne; comment il se combattit par mer contre le roi Géryon et le vainquit; et comment il print la cité de Mégida et entra dedans ('Como Hércules foi à Espanha; como combateu por mar contra o rei Gerião e o venceu; e como tomou a cidade de Megida e entrou dentro dela'), conta-se assim:

Tandis que Hercules peupla ceste terre, il y fist aucunes grosses coulonnes hautes à merveilles et les assist sur la mer, et sur chascune coulonne avoit une image de pierre dure comme d'un chevalier vestu à la semblance de Hercules de la peau du lion et y avoit l'une de ces images que tenoit un tableau où il y avoit escrit en lettre d'or : « Ne passe outre pour quérir terre, | ne pour loins royaumes conquerre. | Plus en occident iras | et moins de terre trouveras ». (5)

Portanto, independentemente da versão, o mito tinha um sentido estável: as Colunas de Hércules assinalavam um limite. Acrescido o mote Plus oultre, entende-se que o identificado por essa empresa aspirava a ir além de certo limite. Contudo, nem sempre é fácil interpretar o significado pleno de uma empresa. Na verdade, a ambiguidade favorecia a sua fama, pois quanto mais os intelectuais procuravam dar-lhe sentidos, mais o conhecimento dela se difundia.

Com efeito, os testemunhos mais antigos da empresa de Carlos V descrevem ou mostram as colunas ladeando o fuzil e a pederneira faiscante, com a cruz de Santo André ou sem ela. Como a Ordem do Tosão de Ouro foi fundada, segundo os seus estatutos, "parquoi la vraie foi catholique, l'estat de nostre mère Sainte église et la tranquillité et prospérité de la chose publique soient, comme estre peuvent, défendues, gardées et maintenues" ("para que a verdadeira fé católica, o estado da nossa mãe Santa Igreja e a tranquilidade e prosperidade da coisa pública sejam, como puderem, defendidas, guardadas e mantidas"), isso sugere que originariamente essa empresa conclamava os cavaleiros da ordem à cruzada, de modo que o além estava no Islã, que assediava a cristandade ocidental ao leste por terra e ao sul por mar.

Todavia, durante os cinquenta anos do seu senhorio, reinado e império, Carlos V obteve muito mais sucesso em expandir a conquista da América do que em deter a expansão do poderio otomano. Em 1553, Francisco Gómez de Gómara, ao lhe dedicar a sua Historia general de las Indias, diz:

Quiso Dios descobrir las Indias en vuestro tiempo y a vuestros vassallos, para que las convertiéssedes a su santa ley, como dizen muchos hombres sabios y cristianos. Otorgó la conquista y conversión el papa. Començaron las conquistas de indios acabada la de moros, porque siempre guerreassen españoles contra infieles. Tomastes por letra Plus ultra, dando a entender el señorío del Nuevo Mundo. (6)

O vínculo tornou-se tão forte que em 1650, após um escândalo de adulteração, o rei Filipe IV ordenou que se redesenhassem as espécies que se cunhavam nas casas da moeda peruanas e neogranadinas, pondo-se no reverso as colunas e o Plus ultra. Esse desenho parece ter servido de antecedente ao famoso real de a ocho, que as casas da moeda hispano-americanas fabricaram de 1732 a 1773 e circularam pelo mundo todo: entre as colunas sobre o mar, dois globos terrestres cingidos pela coroa real  em um, por baixo, vê-se o Velho Mundo e no outro, por cima, o Novo Mundo. (7)

Em 1772, sempre nas casas da moeda ultramarinas, as pequenas armas, isto é, o esquartelado de Castela e Leão com o embutido em ponta de Granada e o escudete de Bourbon-Anjou sobre o todo, deram lugar à efígie do rei, então Carlos III. Essas pequenas armas suplantaram, então, os globos, ficando entre as colunas no reverso dessas espécies novas, tal como as grandes armas de Carlos V, que se veem na primeira postagem desta série. Em 1868, a Real Academia de la Historia, instada pelo governo provisório a opinar sobre as cunhagens novas de moeda após a queda de Isabel II, emitiu um relatório que sacramentou a empresa de Carlos V como suportes das armas nacionais da Espanha:

Costumbre ha sido colocar a los lados del escudo figuras en ademán de sostenerlo: Felipe I puso algún tiempo por soportes dos grifos; el emperador el águila esplayada; los demás Felipes dos leones, y últimamente se adoptaron dos ángeles. Ninguno de estos ornamentos cabe cómodamente en una moneda ni tendría razón de ser en un nuevo escudo, como no fueran los leones, por la regla general que pide que los soportes sean sacados del campo del mismo escudo. Pero hay un ornamento especial y propio de las armas de España, glorioso emblema del descubrimiento y ocupación de las tierras ultramarinas: las columnas de Hércules con el plus ultra de Carlos V, que completan el significado de dominio territorial, ya que los países aludidos no pueden aportar a los cuarteles interiores piezas ni muebles propios de una edad en que no eran conocidos a los reyes de armas de Europa. (8)

É mesmo curioso que a empresa de Carlos V tenha tido um destino de todo semelhante ao daquela de seu sogro: Manuel I de Portugal. Ora, a empresa de Dom Manuel também se tornou emblemática das conquistas além-mar, especialmente na América, e, no momento de ordenar armas nacionais diferentes das reais, se tornou o suporte do escudo.

Em suma, as empresas foram uma moda do século XV que não vigorou muito além do XVI, mas algumas, ao se vincularem a certos brasões, não só transcenderam a sua vigência, mas acabaram incorporadas numa identidade nacional.

Notas:
(1) Aparentemente, a prancha n.º 1 é aquela que dá a capela-ardente, porém nela se imprimiu o número 4. Erro?
(2) Convém lembrar que os monarcas espanhóis mantiveram várias casas reais: de Borgonha, de Castela, de Aragão, de Navarra e, durante a união ibérica, de Portugal. Funcionavam concomitantemente e, por vezes, sobrepunham-se.
(3) Hoje se escreve outre. Esse l nunca se pronunciou, já que se deve à tendência hiperetimológica da ortografia do francês médio.
(4) A empresa tem vários nomes nas línguas europeias ocidentais. Em italiano, como em português, diz-se impresa, mas em francês e espanhol prefere-se, atualmente, dizer devise e divisa. No nosso idioma também se diz divisa, mas por "divisa de fulano" pode entender-se apenas o mote, por causa da polissemia dessa palavra. Em inglês, pode-se empregar o vocabulário device, mas sob o termo mais geral badge, essa espécie de emblema diversificou-se na heráldica britânica de tal modo que ainda hoje não lhe faltam usos.
(5) "Enquanto Hércules povoou essa terra, fez algumas grossas colunas altas maravilhosamente e assentou-as sobre o mar, e cada coluna tinha uma imagem de pedra dura como de um cavaleiro vestido à semelhança de Hércules com a pele do leão e havia uma dessas imagens que segurava um quadro em que se escrevera em letra de ouro: 'Não passes além para buscar terra | nem para longes reinos conquistar. | Quanto mais ao ocidente fores | menos terras acharás'." (tradução minha)
(6) "Quis Deus descobrir as Índias em vosso tempo e vossos vassalos, para que as convertêsseis à sua santa lei, como dizem muitos homens sábios e cristãos. Outorgou a conquista e conversão o papa. Começaram as conquistas de índios acabada a de mouros, para que sempre guerreassem espanhóis contra infiéis. Tomastes por mote Plus ultra, dando a entender o senhorio do Novo Mundo." (tradução minha)
(7) No site de Daniel Franck Sedwick podem-se ver imagens dessas moedas.
(8) "Costume foi colocar aos lados do escudo figuras como se o sustentassem: Filipe I pôs algum tempo por suportes dois grifos; o imperador, a águia estendida; os demais Filipes, dois leões e, ultimamente, adotaram-se dois anjos. Nenhum desses ornamentos cabe comodamente numa moeda nem teria razão de ser num novo brasão, a não ser os leões, pela regra geral que pede que os suportes sejam tirados do campo do próprio escudo. Mas há um ornamento especial e próprio das armas da Espanha, glorioso emblema do descobrimento e ocupação das terras ultramarinas: as colunas de Hércules com o plus ultra de Carlos V, que completam o significado de domínio territorial, já que os países aludidos não podem aportar aos quartéis interiores peças nem figuras próprias de uma idade em que não eram conhecidos pelos reis de armas da Europa." (tradução minha)

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