As pessoas costumam crer que a cada sobrenome corresponde uma família, mas com poucas exceções, não têm o mesmo sobrenome, e sim sobrenomes homófonos.
Quando se comparam frases como o meu nome é em português, my name is em inglês, to ónomá mou eínai (το όνομά μου είναι) em grego, nâm-e man ast (نام من است) em persa e merā nām hai (मेरा नाम है) em híndi, surpreende que em línguas tão diferentes sejam tão semelhantes as palavras que significam "nome". É que o nome pessoal é tão essencial da vida em sociedade que o vocábulo acaba sendo um dos mais estáveis em línguas que têm a mesma origem, ainda que longínqua, como é o caso das citadas, todas indo-europeias.
Em contrapartida, o nome de família é designado sobrenome no Brasil e apelido em Portugal e nos demais países lusófonos, assim como nos Estados Unidos se prefere last name e na Grã-Bretanha e nos demais países anglófonos se diz surname. No catalão continental são os cognoms, ao passo que nas Ilhas Baleares são os llinatges. Em alemão concorrem os sinônimos Familienname, Nachname e Zuname. Isso deixa ver um instituto muito mais recente. Com efeito, o nosso sistema de nominação surgiu no fim da Idade Média, desenvolveu-se durante a Moderna, consolidou-se na Contemporânea e só nas últimas décadas é que começou a funcionar com pleno rigor.
Antes desse surgimento tardo-medieval, na Roma antiga houve um sistema complexo de nominação. O cidadão romano tinha três nomes (tria nomina):
- prænomen: era o nome pessoal;
- nomen: era o nome da gens;
- cognomen: era o nome de certa estirpe (stirps) dentro da gens.
Esse sistema demonstra como evolui a necessidade de usar um ou mais nomes em certa sociedade. Diferentemente de outros povos indo-europeus, que tinham nomes compostos de duas raízes, como o helênico Ἀλέξανδρος (Aléxandros, de ἀλέξω (aléxō) 'defender' e ἀνήρ,ἀνδρός (anēr,andrós) 'homem', daí Alexandre) ou o germânico *Hlūdawīg (de *hlūd 'famoso' e *wīg 'batalha', daí Clóvis e Luís), os itálicos tinham nomes singelos, como o latino Lucius (de lux,lucis 'luz', daí Lúcio). Aquele mecanismo permite a formação de muitos nomes, ao passo que este gera um repertório mais reduzido. Foi, pois, o número pequeno de prænomina que ensejou a adoção de um segundo nome, o nomen gentilicium. A palavra gens,gentis deu gente em português, mas referia a um conjunto de pessoas que acreditava descender do mesmo antepassado e compartilhava certos costumes, aproximadamente o que hoje chamamos de clã.
No entanto, à medida que a população crescia e a recorrência de alguns prænomina se tornava distintiva de certas gentes, algumas alcunhas tornaram-se hereditárias, dando origem aos cognomina. Isso se desenvolveu desde o começo da República entre as gentes patrícias e propagou-se pelas gentes plebeias desde o século II a.C. Assim, César chamava-se Gaius e Cícero, Marcus; aquele pertencia à gens Julia e este, à gens Tullia; dentro da sua gens, aquele descendia dos Cæsares e este, dos Cicerones, daí os seus nomes completos: Gaius Julius Cæsar e Marcus Tullius Cicero, aportuguesados como Gaio (ou Caio) Júlio César e Marco Túlio Cícero.
Como o fim da República e o começo do Império são considerados a era áurea de Roma, os tria nomina foram tidos por convenção exemplar, mas nesse tempo o repertório dos prænomina ficara tão diminuto — os mais comuns não passavam de duas dezenas — que foram caindo em desuso. Além disso, o nomen era um signo da cidadania romana, de modo que a Constituição Antoniniana, do imperador Caracala, que estendeu tal cidadania a todos os homens livres do Império em 212, acelerou o retorno a um sistema de dois nomes: o prænomen rareou a ponto de se tornar excepcional a partir do século IV e nomina como Flavius e Aurelius (Flávio e Aurélio) vulgarizaram-se tanto que não pareciam mais gentilícios, mas sim pessoais. Ao mesmo tempo, o uso de cognomina, tirando proveito da sua origem epitética (Cicero, por exemplo, vem de cicer, que é o grão-de-bico, talvez porque certo ancestral dessa estirpe tinha uma verruga grande como essa semente), multiplicou-se. Por exemplo, o imperador Constantino e todos os seus filhos chamavam-se Flavius e o cognomen era que distinguia cada um: Constantinus, Constantius, Constans, aportuguesados como Constantino, Constâncio, Constante.
Assim, pelo fim do Império ocidental os romanos identificavam-se mediante um nome só, o que foi favorecido pelo cristianismo, pois abriu a antroponímia romana ao vasto repertório grego, como Theodosius (de Θεοδόσιος: θεός (theós) 'deus'; δόσις (dósis) 'dom', aportuguesado como Teodósio), nome do derradeiro imperador do mundo romano unido, o qual não era heleno, mas hispano. No Ocidente, isso foi reforçado pela dominação germânica após a queda do Império. O recurso regular a duas raízes, habitualmente referentes à guerra, tornava a antroponímia germânica muito produtiva. Por exemplo, dos 31 reis que os visigodos tiveram desde o fœdus ('aliança') de 418 até a invasão muçulmana em 711, apenas três nomes repetiram-se, cada um por duas vezes: Teodorico, Liuva e Recaredo. Esse é o estado de coisas que chegou até o século XI: uma inumerável profusão de nomes de origem germânica, empregada por toda a população, a maioria absolutamente desusada hoje em dia.
Plácito pelo qual Flaino e seus herdeiros, Trudildi, Vidisclum, Ariulfo, Honorigo, Leodemundo e Didagu, por intermédio deste, transfere a dotação da Igreja de São Salvador para Alvitu e Senorino, com os testemunhos de Bretus, Eldebredus, Vermudo, Trasmiru, Bellengo, Miro, Fafila e Lovegildo, no ano de 915 (do Mosteiro de São Salvador de Moreira, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e editado por António Emiliano em estudo de 2003). Observe-se a profusão de nomes, dos quais somente Didagu, hoje Diogo, permanece usual. |
A antroponímia portuguesa começou a tomar forma no século IX: desde então, a documentação testemunha com progressiva frequência o uso de um segundo nome. Conforme Ana Isabel Boullón Agrelo em estudo de 1999, o nome único persistiu até meados do século XI e no XIII a nominação dupla já se tornara dominante. Esse segundo nome referia à filiação paterna ou à origem local ou tratava-se de uma alcunha. Portanto, não era como o sobrenome hodierno, mas um identificador individual. Isso dispensou que numa comunidade as pessoas precisassem de muitos nomes, pois se podiam distinguir o Afonso que era filho de Gonçalo (Afonso Gonçalves) e o Afonso que era filho de Rodrigo (Afonso Rodrigues), o Álvaro que morava perto do lago (Álvaro do Lago) e o Álvaro que morava perto do ribeiro (Álvaro Ribeiro), o Pedro que era valente (Pedro Valente) e o Pedro que parecia um pinto (Pedro Pinto). No corpus do estudo citado, que se estende do século VIII ao XIII, 84% dos segundos nomes são patronímicos, 13% são alcunhas e 3% são toponímicos.
Nota de 1175, em que Pelagio Romeu lista os seus fiadores: Stephano Pelaiz, Lecton, Pelai Garcia, Gundisalvo Menendici, Egeas Anriquici, Petro Conlaço, Gundisalvo Anriquici, Egeas Moniici, Jhoane Suarici, Menendo Garcia, Petro Suarici (do Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto, guardada no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e editada por Ana Maria Martins em estudo de 2007). Conhecida como Notícia de fiadores, trata-se de um dos textos mais antigos em português, ainda que em scripta muito conservadora. Observem-se os nomes duplos, que hoje seriam Paio Romeu, Estêvão Pais, Paio Garcia, Gonçalo Mendes, Egas Henriques, Pedro Colaço, Gonçalo Henriques, Egas Moniz, João Soares, Mendo Garcia e Pedro Soares, além da alcunha Lecton, ou seja, Leitão. |
Durante esse período, escrevia-se em latim, entre os tabeliões um latim muito arromançado. Duas opções de patronímico concorriam: o emprego do caso genitivo e o do sufixo -z. Por exemplo, Afonso, filho de Gonçalo, podia ser referido como Adefonsus Gundisalvi ou Adefonsus Gundisalviz; Rodrigo, filho de Álvaro, como Rodericus Alvari ou Rodericus Alvariz. Ainda que de modo bastante escasso, também se empregavam as palavras filius 'filho' e proles 'prole' com o genitivo (Adefonsus filius Gundisalvi, Rodericus proles Alvari) e certos nomes, como Afonso, resistiam ao sufixo patronímico: Pedro, filho de Afonso, era referido como Petrus Adefonsus.
Seja como for, é do sufixo -z — que apresenta variações na forma (aparece precedido das vogais a, i, o: -az, -iz, -oz) e na escrita (aparece com c ou z, seguido ou não de i, e até com t ou x: -ci, -z(i), -t, -x) — que vêm os sobrenomes acabados em -es, como Álvares, Gonçalves, Rodrigues. De certo sobre a sua origem sabe-se apenas que é nativo da península Ibérica. Com efeito, a vacilação gráfica demonstra tentativas de transcrever a pronúncia medieval, que era /-ts/: Rodríguez soava /ro'dɾiɡets/ em todas as línguas ibero-românicas, salvo em catalão, em que se desconhece tal sufixo. Contudo, as mudanças fônicas acabaram levando à preferência do s na ortografia do português contemporâneo. Além disso, mesmo o consenso sobre a origem pré-romana deixa lacunas: como ficou latente ao longo do período em que vigeu a nominação única para emergir só no século IX permanece um mistério.
No Livro do Armeiro-Mor, cujo prólogo foi lavrado em 1509, somente quinze dos 287 brasões da realeza e nobreza portuguesas são vinculados a patronímicos, não por acaso todos identificados com o nome do armígero: Gabriel Gonçalves, Afonso Garcês, Pedro Rodrigues, João Garcês, Paio Rodrigues, Antão Gonçalves, Martim Rodrigues, Diogo Fernandes, João Lopes, André Rodrigues, Jorge Afonso, Rodrigo Esteves e Estêvão Martins. As exceções são os Manuéis e os Henriques, sabidamente as linhagens dos infantes castelhanos Manuel, filho do rei Fernando III, e Fernando Henriques, neto do rei Henrique II. Noutras palavras, à falta de um sobrenome epitético ou toponímico, o autor procurou patentear que tais armas pertencem às linhagens desses cavalheiros: Gabriel, filho de Gonçalo; Afonso, filho de Garcia; Pedro, filho de Rodrigo; etc.
Com efeito, a antroponímia e a heráldica parecem ter evoluído de modo interdependente ou, no mínimo, paralelo. A heráldica clássica, quando cada um podia assumir e legar armas independentemente do estamento social, corresponde ao período em que o segundo nome era um mero complemento, referente ao pai, ao lugar de nascimento ou moradia ou a outra condição pessoal. O momento em que os brasões se tornaram marcas de nobreza e honra (ou seja, durante o século XIV) coincidiu com a conversão desse segundo nome em identificador familiar e transmissível. A heráldica atesta que o fenômeno começou pelos sobrenomes epitéticos e toponímicos, com os quais se identifica a maioria das linhagens armoriadas mais antigas. Já a nominação patronímica, esta se desmantelou ao longo do século XVI: pouco a pouco, Rodrigues não identificava mais um filho de Rodrigo, mas uma linhagem começada por certo Rodrigo. É por isso que até então às vezes o sujeito é identificado não por dois, mas por três nomes, como Diogo Rodrigues Botilher, Pedro Lourenço de Guimarães, João Lopes de Leão, João Álvares Colaço, João Afonso de Santarém, Fernão Gomes da Mina, Gonçalo Pires Bandeira e João Fernandes do Arco no citado Livro do Armeiro-Mor. Nesse caso, o segundo nome ainda é um patronímico e o terceiro já é um sobrenome de origem epitética (Botilher, Colaço, Bandeira, Arco) ou toponímica (Guimarães, Leão, Santarém).
Em suma, apesar de o vínculo da nobreza com a antiguidade ser um lugar-comum na genealogia, o sobrenome é uma convenção plenamente moderna. A literatura genealógica menos rigorosa, produzida para satisfazer pretensões vaidosas, criou a ideia de que as pessoas de mesmo sobrenome descendem dos mesmos antepassados. Mas não são só os patronímicos que desmentem isso: assim como há várias famílias Rodrigues a partir de vários Rodrigos, há várias famílias Ribeiro a partir de vários ribeirinhos e várias famílias Valente a partir de vários alcunhados de valente.
Na verdade, até poucas décadas atrás, bastava a condescendência do tabelião para que qualquer um alterasse os seus sobrenomes. Um avô meu chamava-se Raimundo Linhares Xavier, mas como o pai abandonara a mãe quando ele era criança, ao alcançar a maioridade foi ao cartório e fez-se renomear Raimundo Nonato Linhares, compensando a supressão do sobrenome paterno com o acréscimo de um segundo nome. Houve muitos casos semelhantes por aí, e isso já sob a vigência do registro civil. Antes, isto é, de 1889 para trás, nada impedia que alguém tomasse o sobrenome que quisesse: bastava então a condescendência do pároco, responsável pelos assentos de batismo, casamento e óbito.
Ainda mais para trás, é fácil imaginar a quantidade de colonos que, no ímpeto de viver uma vida nova, alteraram os seus sobrenomes ao desembarcar no ultramar, ou, muito maiores, as quantidades de índios aldeados e africanos traficados que receberam forçosamente nomes e sobrenomes portugueses para serem integrados à colônia. Ao fim e ao cabo, convém corrigir: com poucas exceções e para além da memória familiar, as pessoas não têm o mesmo sobrenome; têm sobrenomes homófonos.
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