06/03/21

BRASÕES APERFEIÇOÁVEIS

Com um olhar construtivo, é possível enxergar que a heráldica municipal brasileira têm brasões que, com retoques, se tornariam impecáveis, como o de Caicó.

Em se tratando de heráldica, acredito numa abordagem construtiva. Ora, do que adianta ter adquirido certo conhecimento se usar dele apenas para a crítica destrutiva? Desde o dia 22 de fevereiro, tenho feito uma série de postagens sobre a heráldica estatal brasileira. Com efeito, o Brasil é possivelmente um dos países mais "emblematizados" do mundo: todos os estados e a generalidade dos municípios têm emblemas próprios. Alguns são brasões aceitáveis, bons ou excelentes; outros são inaceitáveis, o que chamo de "insignoides"; há também aqueles que nem mesmo parecem brasões, ainda que todos acabem, invariavelmente, recebendo esse qualificativo por senso comum.

Na postagem anterior, disse que se no Brasil houvesse uma autoridade heráldica, descentralizada pela União para os estados e delegada por estes nos institutos históricos e geográficos, os municípios poderiam e deveriam peticioná-la para diversas finalidades: corrigir o brasonamento das suas armas, aperfeiçoá-las, reformar o seu emblema ou assumir armas novas. Nesta postagem e nas próximas, vou dar um exemplo de cada uma dessas situações.

Esses exemplos serão todos de municípios localizados no Seridó. A razão de escolher esta região é, primeiro, o fato de eu morar aqui e, segundo, o de que parece um microcosmos da heráldica municipal brasileira: na emblemática dos municípios seridoenses há um pouco de tudo que razoei acima. Mas antes de seguir, uma brevíssima contextualização. O Seridó potiguar é uma região perfeitamente coesa de várias perspectivas: da física, estende-se maiormente pela bacia do rio Seridó, afluente do Piranhas, portanto abrange também parte da Paraíba, mas o próprio rio entra no Rio Grande do Norte pelo Boqueirão de Parelhas e a divisa entre os dois estados corre em cima de serras; da histórica, todos os municípios foram desmembrados a partir de Príncipe, hoje Caicó; da geográfica, conforma a região intermediária de Caicó; da cultural, coincide com a diocese de Caicó. Ao todo, é formada por 24 municípios e tinha 299.960 habitantes em 2020.

Retomando o fio da meada, no Seridó há quatro brasões municipais bons: os de Cerro Corá, CruzetaJucurutu e Florânia, nesta ordem. É o que julgo pelos desenhos usados pelas prefeituras. Para tecer uma crítica mais consistente precisaria ler a descrição legal de cada um. Vou tentar obtê-la para escrever uma postagem específica sobre brasonamento.

Na categoria seguinte, a dos brasões aperfeiçoáveis, enquadra-se o da própria metrópole seridoense: Caicó. Como não dispenso uma sumária contextualização: esse município tinha 68.343 habitantes em 2020, o seu PIB (R$ 1.184.463.000) era o sétimo do estado em 2018 e o IDH (0,710), o quarto em 2010. Em 1748, a Capela de Sant'Ana do Caicó foi elevada a freguesia, desmembrada da do Piancó; em 1788, a freguesia foi elevada a Vila Nova do Príncipe; em 1868, a vila foi elevada a Cidade do Príncipe; enfim, em 1890, a cidade foi renomeada primeiro como Seridó e em seguida como Caicó. Os limites com a Paraíba foram fixados em 1831.

Brasão de Caicó. Imagem disponível em perfil antigo da prefeitura no Facebook.
Brasão de Caicó. Imagem disponível em perfil antigo da prefeitura no Facebook.

No que diz respeito à constituição das peças e figuras, as armas de Caicó são irretocáveis: têm uma figura principal, um algodoeiro, fonte de riqueza de que tratei na postagem de 26/02; o algodoeiro está plantado numa campanha carregada de um rio, claramente a artéria que dá vida e nome à região: o Seridó; têm, ainda, um chefe carregado de três estrelas. Tudo singelo, belo e representativo. Entretanto, há um erro clássico: a combinação dos esmaltes.

Como expus na postagem de 08/02, a heráldica estrutura-se com dois metais, o ouro e a prata; cinco cores, o vermelho, o azul, o negro, o verde e a púrpura; e duas peles, o arminho e os veiros. São os chamados esmaltes, cujo funcionamento contém duas restrições: não se deve combinar metal com metal nem cor com cor, o que é conhecido como regra de iluminura. Na Idade Média, o ordenamento que a infringisse recebia a qualificação de armas falsas, ou, nos casos justificados, armas a inquirir (subentenda-se: 'a exceção'). Dispõe-se, ainda, do recurso de iluminar uma figura ao natural (ou de sua cor), mas convém ter cuidado para não abusar, como argui na postagem de 24/02.

No caso do brasão caicoense, o campo é de cor (azul); a campanha, também (verde); o chefe, também (vermelho). Quanto ao algodoeiro, veem-se variações nas imagens que circulam na Internet e, de todo modo, há certa vacilação na heráldica em relação ao brasonamento das plantas. Um dos dispositivos do sistema consiste em segmentar e hierarquizar os elementos em primários e secundários. Ora, o que é principal numa planta: o tronco, ramo ou talo? As folhas? Os frutos? Pelo que tenho estudado, digo que depende do que é exatamente a figura vegetal. Assim, se a figura é um algodoeiro, entende-se que o principal seja a própria planta e que os capulhos sejam, portanto, acessórios.

Bandeira de Caicó, usada na marca de uma gestão municipal passada. Imagem disponível em perfil antigo da prefeitura no Facebook.
Bandeira de Caicó, usada na marca de uma gestão municipal passada. Imagem disponível em perfil antigo da prefeitura no Facebook.

Resumindo, é fácil aperfeiçoar as armas municipais de Caicó: basta trocar o esmalte do campo por um metal. Ouro ou prata? A bandeira usada pelo município é amarela e verde, então é razoável escolher o ouro. Na verdade, mal se entende por que o campo do escudo seja de azul; talvez para representar o céu. O problema é que o simbolismo não deve antepor-se às regras da armaria.

Proposta de aperfeiçoamento para o brasão de Caicó: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma flor de lis de prata; abaixo do escudo, listel de vermelho com a legenda Caicó em letras de prata e as datas 1748 à destra e 1868 à sinistra, tudo do mesmo metal.
Proposta de aperfeiçoamento para o brasão de Caicó: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma flor de lis de prata; abaixo do escudo, listel de vermelho com a legenda Caicó em letras de prata e as datas 1748 à destra e 1868 à sinistra, tudo do mesmo metal.

Segue-se, pois, que o ordenamento ficaria assim: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma flor de lis de prata; abaixo do escudo, listel de vermelho com a legenda Caicó em letras de prata e as datas 1748 à destra e 1868 à sinistra, tudo do mesmo metal. Observe, prezado leitor, que se trata do mesmo brasão em tudo, exceto na infração da regra de iluminura, que fica corrigida.

Todavia, sabe o improvável leitor que não gosto desses listéis com o topônimo e datas. A ostensão do topônimo no brasão é uma inovação infeliz de Afonso de Dornelas, quando reformou a heráldica municipal portuguesa, na segunda década do século passado. Como argumentei na dita postagem de 26/02, um brasão é, por si, um identificador do seu titular, exatamente como um nome, sobrenome ou apelido, de modo que essas legendas acabam sendo redundantes. Já a inclusão de datas, esta é uma verdadeira jabuticaba, ausente de toda boa heráldica, dentro e fora do Brasil. A propósito, o criador do brasão de Caicó omitiu a data mais relevante: 1788, o ano da elevação do povoado a município. Na verdade, por algum motivo que não sei precisar, os caicoenses parecem ter esquecido essa data, porque o feriado municipal é a data da elevação da vila a cidade.

Buscando, pois, uma divisa representativa (esta, sim, elemento heráldico tradicional, presente no melhor da armaria nacional), cheguei à seguinte frase latina: Princeps natus, pro bono augeo. É da minha própria lavra e quer dizer 'Nasci príncipe, cresço pelo bem'. A primeira sentença, princeps natus [sum] 'nasci príncipe', refere ao nome que Caicó teve de 1788 a 1890: Príncipe. A segunda, pro bono [publico] augeo 'cresço pelo bem [comum]', contrasta a memória do Antigo Regime, que a primeira evoca, com o valor republicano do bonum publicum, isto é, o bem comum. O verbo augere também significa 'aumentar' ou 'desenvolver-se'.

Enfim, a coroa mural das armas caicoenses exibe um detalhe interessante, de certa difusão na heráldica municipal brasileira: um escudete oval. A meu ver, a figura que o carrega não deveria ser uma flor de lis, mas uma concha aberta com uma pérola. Explico: a flor de lis é um símbolo mariano, ao passo que a figura que representa Sant'Ana, a padroeira do município, é a concha aberta com uma pérola. Essa convenção icônica está bem assentada no Brasil graças à escola heráldica do irmão Paulo Lachenmayer e está presente no brasão da diocese de Caicó, cujo estilo deixa ver que é obra de algum seguidor dele, se não for obra do próprio.

Leitura para o brasão de Caicó: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma concha aberta com uma pérola, tudo de prata; divisa: Princeps natus, pro bono augeo, escrita de prata em listel de vermelho.
Leitura para o brasão de Caicó: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma concha aberta com uma pérola, tudo de prata; divisa: Princeps natus, pro bono augeo, escrita de prata em listel de vermelho.

Tudo justificado, a minha leitura para o brasão de Caicó é: de ouro com um algodoeiro de verde, folhado do mesmo, com capulhos de prata, plantado numa campanha de verde, carregada de um rio de prata; chefe diminuto de vermelho, carregado de três estrelas de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata, a do meio carregada de um escudete de azul, sobrecarregado de uma concha aberta com uma pérola, tudo de prata; divisa: Princeps natus, pro bono augeo, escrita de prata em listel de vermelho.

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