02/03/21

HERÁLDICA AUTÁRQUICA PORTUGUESA E HERÁLDICA MUNICIPAL BRASILEIRA

Em vários aspectos, pode-se dizer que há uma heráldica luso-brasileira, mas cabe não perder de vista que o Brasil é independente há quase duzentos anos.

Ao longo dos comentários ao Tractatus de insigniis et armis, ressaltei que, a partir da observação, o doutor de Sassoferrato elaborou a primeira classificação dos brasões: armas de dignidade, concedidas ou assumidas. Mas também procurei demonstrar que a evolução da heráldica tornou as coisas mais complexas. Por exemplo, as armas das dignidades principescas foram cada vez menos pessoais e mais estatais, a tal ponto que hoje em dia os brasões mais presentes na nossa vida são os das pessoas jurídicas de direito público: no Brasil, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios; em Portugal, o estado, as regiões autônomas, os municípios e as freguesias.

No tempo de Bártolo, eram inconcebíveis armas sem um senhor ou dono, pois até as comunidades eram tidas por senhorios coletivos. Neste sentido, não é difícil atualizar essa concepção e entender que no caso brasileiro se trata de armas assumidas, porque efetivamente são os próprios estados e municípios que as ordenam e criam para si.

O caso português, por outro lado, não parece tão simples, porque, como expus na postagem anterior, o município ou a freguesia aprova os seus símbolos, mas o estado não lhes permite que os assumam livremente, pois a competência do ordenamento é delegada na Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP). Hoje o ato é publicado pela própria câmara municipal ou junta de freguesia no Diário da República sob a forma de edital, mas antes se fazia por portaria do governo: se não era uma concessão, semelhava muito (1).

Daí se segue que essa dimensão da armaria demanda uma categoria própria. Afonso de Dornelas captou isso e cunhou a expressão heráldica de domínio. Já Luís Gonzaga de Lancastre e Távora, na sua Introdução ao estudo da heráldica (1992), objeta que não foi uma escolha muito acertada. Concordo, apesar de essa expressão ter recebido acolhida na literatura acadêmica. Com efeito, domínio de quem ou do quê? É um substantivo que normalmente pede um complemento ou adjunto. O padre Claude-François Ménestrier, na sua Nouvelle méthode raisonnée du blason (1696), emprega-o:

Demande : Quelles sont les armoiries des fiefs et des domaines ?
Réponse : Celles de diverses terres que possèdent les souverains et les princes, comme nos rois portent de France et de Navarre ; les rois de la Grande-Bretagne : d'Angleterre, d'Ecosse et d'Irlande ; les rois d'Espagne : de Castille, de León, d'Aragon, de Sicile etc. (2)

Talvez por causa dessa conotação feudal, o legislador português tenha preferido dizer heráldica autárquica, já que os municípios e as freguesias são autarquias locais. Portanto, a primeira diferença entre Portugal e o Brasil nesse domínio da heráldica é terminológica: aqui autarquia é outra coisa, a saber, uma categoria da administração pública indireta, de modo que prefiro simplesmente dizer heráldica municipal. Em referência ao conjunto dos brasões cujos titulares são os poderes públicos, heráldica estatal. Efetivamente, o "domínio" que Afonso de Dornelas quis evocar não é senão o próprio estado. (3)

Esclarecida essa questão, cumpre retornar à da capacidade heráldica, que o município português possuía por inteiro, mas o estado, num momento de regime autoritário, a tomou. Muito mais que isso: o estado intrometeu-se em minúcias, como os ornamentos externos, até mesmo uma que, via de regra, é meramente estilística: a forma do escudo. Passo a comentar a coroa mural.

Ao contrário do que a legislação vigente aparenta, a coroa mural não é antiquíssima na heráldica portuguesa. Apareceu pela primeira vez no brasão de Angra do Heroísmo, concedido por Dona Maria II em 1837, um dos raros casos de concessão de armas municipais durante a monarquia constitucional. Com efeito, até a queda desta, o timbre ordinário na heráldica estatal era a coroa real. No armorial de Inácio de Vilhena Barbosa (As cidades e vilas da monarquia portuguesa que têm brasões d'armas, 1860-1862), são, em geral, timbrados de coroa real antiga, ou seja, aberta, os escudos dos concelhos que tinham sido cabeças de comarca no Antigo Regime: representavam o domínio real, pois nelas havia um corregedor, alto oficial do rei. De resto, cabe lembrar que os primeiros pareceres de Afonso de Dornelas não abrangiam ornamentos externos.

Brasão de Lisboa no Tesouro da nobreza de Portugal, o armorial oficial até o fim da monarquia, começado por Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, no século XVIII. Nesse registro, datado de 1897, vê-se que se ordenou uma coroa mural, o que pode ter influído decisivamente na escolha desse ornamento quando da reforma heráldica de 1930.
Brasão de Lisboa no Tesouro da nobreza de Portugal, o armorial oficial até o fim da monarquia, começado por Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza, no século XVIII. Nesse registro, datado de 1897, vê-se que se ordenou uma coroa mural, o que pode ter influído decisivamente na escolha desse ornamento quando da reforma heráldica de 1930. (4)

Nuno Campos, na sua dissertação de mestrado (2007), revela que a coroa mural entrou na pauta da Seção de Heráldica da AAP em 1925, quando António de São Paio, marquês de São Paio, apresentou um parecer sobre o assunto. Com o apoio de Afonso de Dornelas, que praticamente fora feito oficial de armas, aprovou-se a ordenação que se tornou célebre:

Artigo 13.º
Coroa
1 – A coroa é mural nas armas das autarquias locais e cívica nas armas das pessoas coletivas de utilidade pública administrativa.
2 – A coroa mural obedece às características seguintes:
a) Para as regiões administrativas, é de ouro, com cinco torres aparentes, tendo entre estas escudetes de azul, carregados de cinco besantes de prata;
b) para a cidade de Lisboa, por ser a capital do País, é de ouro com cinco torres aparentes;
c) para os municípios com sede em cidade é de prata com cinco torres aparentes;
d) para os municípios com sede em vila é de prata com quatro torres aparentes;
e) para as freguesias com sede em vila é de prata com quatro torres aparentes, sendo a primeira e a quarta mais pequenas que as restantes;
f) para as freguesias com sede em povoação simples é de prata com três torres aparentes;
g) para as vilas que não são sede de autarquia é de prata com quatro torres aparentes, todas de pequena dimensão.
3 – A coroa cívica é formada por um aro liso, contido por duas virolas, tudo de prata e encimado por três ramos aparentes de carvalho de ouro, frutados do mesmo. (5)

Em suma, a coroa mural não era tradicional e o modelo adotado sequer era genuíno da heráldica portuguesa: optou-se pelo modelo alemão "por um princípio de clareza, simplicidade e atenção às proporções", segundo o próprio marquês de São Paio, citado por Nuno Campos no referido trabalho.

Exemplos da heráldica autárquica portuguesa: bandeira e armas da cidade de Aveiro, da vila da Mealhada e da freguesia de Luso, todos ordenados por Afonso de Dornelas. Imagens publicadas no Elucidário nobiliárquico (volume 1, números 6, 2 e 3).
Exemplos da heráldica autárquica portuguesa: bandeira e armas da cidade de Aveiro, da vila da Mealhada e da freguesia de Luso, todos ordenados por Afonso de Dornelas. Imagens publicadas no Elucidário nobiliárquico (volume 1, números 6, 2 e 3).

Os exemplos acima não só mostram o estilo do desenhista João Ricardo da Silva e do iluminador António Lima, colaboradores artísticos de Afonso de Dornelas, mas também demonstram certa complexidade do sistema ou mesmo dificuldade em seguir a evolução das autarquias. O parecer sobre o brasão do Luso foi aprovado em 1923, mas só foi homologado em 2001, com coroa mural de quatro torres, porque essa povoação foi elevada a vila em 1937, mesmo não sendo sede de município. O da Mealhada foi aprovado em 1925 e homologado em 1956, mas a sede foi elevada a cidade em 2003 e o concelho ainda não regularizou a devida alteração da coroa mural. O de Aveiro foi aprovado em 1926 e homologado em 1960. (6)

No Brasil, um usuário da Wikipédia saiu editando vários artigos sobre brasões municipais com o mesmo texto: "O brasão de ... possui erros crassos, considerando-se as convenções da heráldica municipal (também denominada 'civil') brasileira". Em seguida, lista os tais erros segundo as convenções da heráldica municipal... portuguesa! O improvável leitor deste blog sabe o quanto realço o caráter comunitário da heráldica brasileira junto da portuguesa; ao mesmo tempo, o Brasil é um estado-nação independente de Portugal desde 7 de setembro de 1822. Por conseguinte, o que a República Portuguesa estabelece em matéria heráldica é, para todos os efeitos, legislação estrangeira para a República Federativa do Brasil.

Com efeito, muito antes de a coroa mural se tornar norma na heráldica portuguesa, vários municípios que assumiram armas durante a República Velha adotaram-na, como se pode comprovar no Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, de 1933. Ora, como no Brasil não há legislação heráldica, aplica-se o que é convenção da armaria geral e o que é tradicional da armaria nacional. Luís Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, no seu Vocabulário heráldico (1985), dá-lhe a seguinte definição:

Coroa mural – Nome de uma coroa que davam nos exércitos romanos ao primeiro soldado que subia às muralhas de uma fortaleza. As coroas murais mudaram de significação, servindo para encimar as armas das povoações, províncias e até estados. Passaram, então, a ter o aspecto de um circuito muralhado. Em Portugal, a legislação vigente determinou que a coroa mural fosse de prata com cinco torres para as cidades, de quatro torres para as vilas e de três torres para as restantes povoações. A capital do estado tem a coroa mural de oiro com cinco torres. Certas repúblicas, sentindo a necessidade estética de encimar as suas armas por uma coroa, adotaram para tal fim a coroa mural de oiro. (grifo meu)

Assim, isto é uma coroa mural correta:

Brasão de São Paulo
Brasão de São Paulo na marca atual da prefeitura.

E isto também:

Brasão de Salvador
Brasão de Salvador na marca atual da câmara municipal.

E isto também:

Brasão de Fortaleza
Brasão de Fortaleza na marca atual da prefeitura.

E isto também:

Brasão de Natal
Brasão de Natal na marca atual da prefeitura.

Outra coisa é que umas sejam mais bonitas que outras...

Precisamente, outro mito é que haja um padrão para a coroa mural brasileira. Mais uma vez, a Wikipédia contribui, e muito, com a difusão do mito: um usuário desenhou uma série de coroas murais conforme a norma portuguesa a partir do modelo usado pela prefeitura de São Paulo. O suficiente para correr por aí como lei consolidada.

A propósito, o desenho original do brasão paulistano foi feito por José Wasth Rodrigues, que, como coloquei na postagem de 26/02, elaborou outros vários em parceria com Afonso Taunay. Nele a coroa tem três torres aparentes. Conta a Sociedade Brasileira de Heráldica e Humanística que foi por iniciativa sua que se "corrigiu" a coroa para cinco torres em 1987, o que parece ter sido a única realização dessa estranha entidade no campo heráldico. O mito vem, pois, de longe.

Brasão da cidade de São Paulo pintado por José Wasth Rodrigues no Museu Paulista (1926). Imagem disponível na Wikimedia Commons.
Brasão da cidade de São Paulo pintado por José Wasth Rodrigues no Museu Paulista (1926). Imagem disponível na Wikimedia Commons.

Às vezes, o nível da crítica rebaixa-se à mera implicância, como a que visa o esmalte das portas. Em heráldica, um edifício que tem portas de esmalte diferente das paredes ou muros diz-se que é aberto de tal esmalte. Nos desenhos usados por diversas prefeituras, inclusive a de São Paulo, a coroa mural é aberta de vermelho, o que tem suscitado picuinhas, como se a iluminura de negro não fosse, igualmente, de uma porta aberta.

Brasão de Simões Filho (BA), desenhado pelo Ir. Paulo Lachenmayer. Imagem disponível no site da Rio Antigo Leilões.

Não se entenda, contudo, que estou desestimando a norma portuguesa da coroa mural. Pelo contrário, considero que seja muito boa sob todos os aspectos. O que não dá é aplicá-la aos usos brasileiros para julgá-los em termos de certo e errado. Reconheço, inclusive, que é um modelo bastante interessante para reformar brasões vigentes e criar novos, se bem que na divisão administrativa do Brasil, só faz sentido a coroa mural de cinco torres de ouro para as capitais e de prata para as demais cidades, já que, como os distritos não constituem uma esfera de poder, não têm por que possuir brasão. Na verdade, emulou-se a norma alienígena de modo tão irrefletido que teria sido mais construtivo alguma espécie de adaptação, por exemplo: de cinco torres de ouro para Brasília, de cinco torres de prata para as capitais e de quatro torres de prata para as demais cidades.

Coroa mural da minha proposta de brasão para Currais Novos.
Coroa mural da minha proposta de brasão para Currais Novos.

Tanto penso assim que na minha proposta de brasão para Currais Novos, publicada em 26/02, pus cinco torres na coroa mural. No entanto, preferi seguir o estilo do irmão Paulo Lachenmayer (a "escola heráldica do Nordeste", como ousei formular na mesma postagem), porque imitar o desenho de quem for como se fosse padrão também não dá.

Notas:
(1) O texto que se lê, por exemplo, na criação dos símbolos de Paredes, de 2020, é "[...], Presidente da Câmara Municipal de Paredes, faz público que após parecer emitido pela Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, nos termos da Lei n.º 53/91, de 7 de agosto, a Assembleia Municipal de Paredes, no uso da competência conferida pela alínea n), do n.º 2 do artigo 25.º do Anexo I à Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, deliberou, em Sessão Ordinária realizada no dia vinte e cinco de setembro de dois mil e vinte, aprovar por unanimidade, a ordenação heráldica do brasão, bandeira e selo do Município" (grifo meu). O exemplo de Guimarães, que data de 1985, é diferente: "Atendendo à concordância formulada pela Câmara Municipal de Guimarães, distrito de Braga, e ao parecer favorável da Secção de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses: Manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro da Administração Interna, que a constituição heráldica das armas, bandeira e selo do referido Município seja aprovada, de harmonia com o disposto no artigo 14.º do Código Administrativo".
(2) "Pergunta: Quais são as armas dos feudos e dos domínios? Resposta: Aquelas de diversas terras que possuem os soberanos e os príncipes, como os nossos reis trazem da França e de Navarra; os reis da Grã-Bretanha: da Inglaterra, da Escócia e da Irlanda; os reis da Espanha: de Castela, de Leão, de Aragão, da Sicília etc." (tradução minha)
(3) Rejeito também heráldica civil e heráldica domiciliar. A primeira, porque a acepção comum de civil em português é 'relativo ao cidadão', o que, de resto, é o sentido etimológico (civis é 'cidadão' em latim, daí o adjetivo civilis); ou, ainda, refere ao que nem é clerical nem militar. Com relação à segunda é até difícil argumentar por quê, pois mal se entende por que seria uma opção razoável.
(4) Miguel Metelo de Seixas, em artigo de 2012, razoa o quão inusitado foi esse registro das armas olisiponenses. Na postagem de 24/02, dei-as para exemplificar a evolução do desenho heráldico: por remontarem ao século XIII, inevitavelmente a sua reprodução variou de estilo e o seu ordenamento sofreu alterações ao longo de tanto tempo. Em 1896, a Câmara Municipal buscou o ordenamento genuíno no seu arquivo, mas não o achou, daí que tenha peticionado o governo para que, ao amparo da Portaria de 26 de agosto de 1881, que tentara infrutuosamente interferir na heráldica municipal, o Cartório da Nobreza lhe passasse uma carta de brasão que lhe servisse de "padrão invariável das armas".
(5) Redação da Lei n.º 53/91, de 7 de agosto. A do Despacho de 14 de abril de 1930 é "6.º [...] a) As armas serão encimadas por uma coroa mural prateada de cinco torres para as cidades, de quatro para as vilas e de três para as freguesias; b) a coroa mural da cidade de Lisboa será de ouro, atendendo a que é a capital do país".
(6): Aveiro: "de verde com uma águia estendida de prata, armada e bicada de vermelho, acompanhada de um sol de ouro e de uma lua de prata e carregada de um escudo das quinas". Mealhada: "de prata com um carvalho de sua cor sobre um terrado, acompanhado de dois cachos de uvas de púrpura, folhados de verde". Luso: "de azul fonte de ouro, repuxando de prata; em chefe águia volante de negro, realçada e perfilada de ouro".

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