Na heráldica, há peças e figuras. As peças costumam ser qualificadas de honrosas porque os brasões mais antigos são constituídos delas.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le cinquiesme chapitre contient neuf choses, dont chascune desquelles fait le tiers de l'escu, et quand elle est plus petite, c'est devise, et s'y dit en quelle manière l'on doit blasonner chascune d'icelles neuf choses.
Chascune des neuf choses ensuivants, c'est à savoir, chef, pal, bande, faisse, chevron, giron, orle, croix et sautouer, doit tenir la tierce partie de l'escu, et quand elle est plus petite, c'est devise.
Et six desdites neuf choses, c'est à savoir, bande, pal, faisse, chevron, giron et orle, quand sont de plusieurs pièces, se blasonnent à un mot, comme : tel porte d'or à une bande de gueules de six ou sept pièces (1). Et pareillement des autres cinq.
Des croix, chef et sautouer, n'en y a qu'un qui fasse le tiers de l'escu. Toutesfois, se en un escu a plusieurs croix, l'on les doit blasonner selon le nombre qui y est, ainsi que pouez veoir par les figures ensuivants.
D'azur à un chef d'argent. |
D'or à un pal de sable. |
De gueules à une bande d'or. |
D'azur à une faisse d'argent. |
De sable à un chevron d'or. |
De sinople à un giron d'argent. (2) |
De pourpre à un orle d'or. |
D'argent à une croix d'azur. |
D'argent à une sautoer de sable. |
D'argent à une bande de sable de six pièces. (1) |
D'or à un orle de sable de cinq pièces. |
D'argent à une bande de gueules à six croix d'azur. (3) |
O quinto capítulo contém nove coisas, cada uma delas abrange um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa, e diz-se de que modo se deve brasonar cada uma dessas nove coisas.
Cada uma das nove coisas seguintes, a saber, chefe, pala, banda, faixa, asna, girão, orla, cruz e aspa, deve ter um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa.
Seis dessas nove coisas, a saber, banda, pala, faixa, asna, girão e orla, quando são de várias peças, brasonam-se numa só sentença, como: fulano traz de ouro com uma banda de vermelho de seis ou sete peças (1). E similarmente das demais cinco.
Da cruz, do chefe e da asna, quando há apenas um, abrange um terço do escudo. Todavia, se num escudo há várias cruzes, devem-se brasonar segundo o número que há, como você pode ver pelas figuras seguintes.
De azul com um chefe de prata. |
De ouro com uma pala de negro. |
De vermelho com uma banda de ouro. |
De azul com uma faixa de prata. |
De negro com uma asna de ouro. |
De verde com um girão de prata. (2)
|
De prata com uma asna de negro. |
De prata com uma banda de negro de seis peças. (1) |
De ouro com uma orla de negro de cinco peças. |
De prata com uma banda de vermelho entre seis cruzes de azul. (3) |
Comentário:
Um aspecto muito interessante de ler os tratados medievais de armaria é como perspectivas singelas lançam luz sobre questões que acabaram assumindo dimensões mais ou menos intricadas. Assim, o presente capítulo aborda nove coisas: acaso não têm nome? Com efeito, um brasão pode ser constituído apenas pelo campo, mas os casos são raros, pois o normal é que esse campo venha carregado de certos elementos. Tais elementos podem ser desenhos geométricos ou de seres e coisas. Em francês, essas categorias são diferençadas pelas palavras pièce e meuble, ou seja, 'peça' e 'móvel', porque os elementos geométricos costumam ficar firmados nos bordos do escudo, ao passo que os referentes a seres e coisas costumam ficar soltos. Em português diz-se peça e figura.
Com frequência, as peças recebem o epíteto de honrosas, porque preponderam nos brasões mais antigos, e são divididas em duas ou três ordens, segundo diferentes autores. A adscrição de algumas peças à primeira ordem ou à segunda tem sido bastante estável, mas a de outras tem vacilado, também a depender do autor. Curiosamente, o nosso agrupa as peças que menciona neste capítulo sob o critério de abrangerem um terço do escudo.
Em primeiro lugar, cabe precisar que essa medida normalmente não refere a um terço da altura, mas sim da largura do escudo. Depois, convém ressalvar que essa convenção não é taxativa, pois é perfeitamente aceitável diminuir um pouco a peça quando a harmonia do conjunto o requere, como uma cruz ou uma aspa cantonada de quatro figuras. Enfim, nem todas as peças mencionadas medem esse terço, como a orla e o girão.
Seja como for, ao designar esses elementos como coisas que abrangem um terço do escudo, o nosso autor pode ter fornecido um critério razoável para a definição do que seja uma peça de primeira ordem. Na postagem de 04/02, expus que a cada uma das quatro linhas que podem partir o campo corresponde uma peça. Cada uma dessas peças mede, efetivamente, um terço da largura do escudo:
- Ao partido corresponde a pala;
- ao cortado corresponde a faixa;
- ao fendido corresponde a banda;
- ao talhado corresponde a barra;
- ao esquartelado corresponde a cruz;
- ao franchado corresponde a aspa.
Além dessas correspondências, a linha do cortado faz mais duas peças que medem esse terço: o chefe e a campanha (ou contrachefe ou pé). Ademais, os braços inferiores da aspa formam outra peça que pode ter essa mesma medida: a asna. Para fechar esse rol, o perle, que combina os braços superiores da aspa e a metade inferior da pala. Sob essa perspectiva, bem se poderiam classificar essas dez peças como os componentes da primeira ordem.
Na dita postagem de 04/02, também observei que a pala, a faixa, a banda e a barra tomam outros nomes quando se repetem em número maior que quatro:
- a pala passa a denominar-se vergueta;
- a faixa passa a denominar-se burela;
- a banda passa a denominar-se cotica;
- a barra passa a denominar-se travessa.
Agora cabe acrescentar que a vergueta, a cotica e a travessa podem igualmente figurar como peça única, mais precisamente como formas diminutas da pala, da banda e da barra. Essa diminuição varia de metade a um terço, segundo o autor. Com efeito, ensina o nosso texto que "cada uma das nove coisas seguintes [...] deve ter um terço do escudo, e quando é menor, é uma divisa", mas atualmente a divisa é a forma diminuta específica da faixa, quando peça única. Em francês, tanto as diminuições da cruz, da aspa e da asna como as do chefe e da campanha também têm nomes próprios: respectivamente estrez, flanchis, étai, comble e plaine. Para o português estes podem ser traduzidos como escora, cúmulo e planície (ainda assim, talvez asna diminuta, chefe diminuto e campanha diminuta soem menos forçados), mas as diminuições da cruz e da aspa não costumam ser brasonadas (cruz/aspa de coticas ou de verguetas é um preciosismo francamente dispensável).
Na segunda ordem ficam, então:
- o escudete, cuja largura equivale normalmente a um terço da do escudo;
- a bordadura, cuja largura equivale normalmente a um sexto da do escudo;
- a orla, cuja largura equivale normalmente à metade da bordadura e é separada do bordo do escudo pela mesma medida;
- o lambel, que se assemelha a um banco, tanto que na heráldica portuguesa também se denomina banco de pinchar, cujo número de pés ou pendentes varia e, por isso, é preciso brasonar;
- o franco-quartel, que é a partição do esquartelado convertida em peça, normalmente equivalente ao primeiro quartel;
- o girão, que é a partição do gironado convertida em peça, normalmente equivalente à última, de modo que o lado oposto ao centro do escudo se firma no flanco destro;
- a pila, que é a partição do calçado convertida em peça, isto é, um triângulo cuja base se firma no chefe;
- a pira, que é a partição do chapado convertida em peça, isto é, um triângulo cuja base se firma na ponta.
Em francês, há nomes específicos para as reduções da bordadura, da orla e do franco-quartel: respectivamente filière, trécheur e franc-canton. Na nossa língua, diz-se debrum, orleta e franco-cantão, sabendo-se, porém, que, como rareiam nas armarias portuguesa e brasileira, não receberam um tratamento claro dos autores lusófonos.
Em síntese:
|
Peça |
Diminuição
(½ ou ⅓) |
Em número |
|||
Francês |
Português |
Francês |
Português |
Francês |
Português |
|
1.ª ordem |
chef |
chefe |
comble |
cúmulo |
Não há. |
|
pal |
pala |
vergette |
vergueta |
pals (≤ 4) vergettes (≥ 5) |
palas (≤
4) verguetas (≥
5) |
|
fasce |
faixa |
divise |
divisa (½) faixeta (⅓) |
fasces (≤ 4) trangles (5 ou 7) burèles (6 ou 8) |
faixas (≤
4) burelas (≥
5) |
|
bande |
banda |
cotice |
cotica |
bandes (≤ 4) cotices (≥ 5) |
bandas (≤
4) coticas (≥
5) |
|
barre |
barra |
traverse |
travessa |
barres (≤ 4) traverses (≥ 5) |
bandas (≤
4) travessas (≥
5) |
|
croix |
cruz |
estrez |
Não se brasona. |
croisettes |
cruzetas |
|
sautoir |
aspa |
flanchis |
Não se brasona. |
flanchis |
aspas |
|
chevron |
asna |
étai |
escora |
chevrons |
asnas |
|
champagne |
campanha |
plaine |
planície |
Não há. |
||
pairle |
perle |
Não se brasona. |
Não há. |
|||
2.ª ordem
|
écusson
|
escudete
|
Não se brasona. |
écussons |
escudetes |
|
bordure |
bordadura |
filière |
debrum |
Não há. |
||
orle |
orla |
trécheur |
orleta |
double,
triple trécheur etc. |
orleta dupla, tripla etc. |
|
lambel
|
lambel
|
Não se brasona.
|
lambels
|
lambéis
|
||
franc-quartier |
franco-quartel |
franc-canton |
franco-cantão |
Não há. |
||
pile
|
pila
|
Não se brasona.
|
piles
|
pilas
|
||
pointe
|
pira
|
Não se brasona.
|
pointes
|
piras
|
||
giron |
girão |
Não se brasona. |
girons |
girões |
(2) Atualmente, tanto em francês como em português, giron/girão é a peça, ao passo que a partição se denomina gironné/gironado. Além disso, o artista inverteu os esmaltes: no gironado, o primeiro esmalte é o do girão que se firma na destra do chefe.
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