24/03/21

QUE VIRTUDE, QUE COMPLEXÃO, QUAL DOS SETE PLANETAS, QUAL DOS DOZE SIGNOS...

Da relação da heráldica com a cavalaria seguiu-se que todos queriam que as suas armas representassem prodígios e proezas.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le quart chapitre, ouquel est contenu quelle vertu, quelle complexion, quelles des sept planètes, quel des douze signes célestes, quelle pierre précieuse, quel jour de la semaine, quel des trois éléments et quel métal signifie en armes chascun desdits métals et couleurs, et pour ce que la matière de ce présent chapitre est d'excellente utilité et qu'il est assez prolixe, il se divise en sept parties, selon l'ordre des deux métaux et cinq couleurs.

La première partie

Or en blason d'armes signifie quatre vertus : noblesse, bon vouloir, réconfort et hautesse ; en pierrerie, l'escarboucle ; des sept planètes, le soleil ; des jours de la semaine, le dimanche.

La seconde partie

Argent en armes signifie cinq vertus : humilité, loyauté, purité, blancheur et innocence ; des complexions, homme fleumatique ; des planètes, la lune ; des douze signes, trois : l'Escrevisse, l'Escorpion, les Poissons ; des éléments, l'eaue ; en pierrerie, la perle ; des jours de la semaine, le lundi.

La tierce partie

Gueules en armes signifie deux vertus : vaillance et hardiesse ; en complexion, homme colorique ; des planètes, Saturne ; des douze signes, le Mouton, le Lion et le Sagittaire ; en pierrerie, le rubi ; des jours de la semaine, le samedi ; des éléments, le feu, et des métaux, le laiton, dont on fait la rouge mine.

La quarte partie

Azur signifie en vertu louange et beauté et hautesse ; en complexion, homme sanguin ; des planètes, Vénus ; des douze signes, Gemini, Libra et Aquarius ; en pierrerie, le saphir ; des jours de la semaine, le vendredi ; des éléments, l'air ; des métaux, l'argent fin, dont on fait azur.

La quinte partie

Sable signifie deul et douleur ; en complexion, homme mélancolique ; des planètes, Mars ; des signes, Taurus, Virgo et Capricornus ; en pierrerie, le diamant ; des jours de la semaine, le mardi ; des éléments, la terre ; des métaux, le fer, duquel on fait le noir.

La sexte partie

Sinople en vertu signifie amour, honneur et courtoisie ; des planètes, Mercure ; en pierrerie, l'esmeraude ; des jours de la semaine, le mercredi ; des métaux, l'argent vif, dont l'on fait le vert.

La septiesme partie

Pourpre en armes signifie en vertu largesse, abondance et sagesse ; des planètes, Jupiter ; en pierrerie, le balai ; des jours de la semaine, le jeudi ; des métaux, l'estain ; des éléments, les nues.

O quarto capítulo, em que está contido que virtude, que complexão, qual dos sete planetas, qual dos dozes signos celestes, que pedra preciosa, qual dia da semana, qual dos três elementos e que metal simboliza nas armas cada um dos ditos metais e cores, e como a matéria do presente capítulo é de excelente utilidade e é bastante profuso, divide-se em sete partes, segundo a ordem dos dois metais e cinco cores.

A primeira parte

O ouro no brasão de armas simboliza quatro virtudes: nobreza, boa vontade, consolação e alteza; na pedraria, o carbúnculo; dos sete planetas, o sol; dos dias da semana, o domingo.

A segunda parte

A prata nas armas simboliza cinco virtudes: humildade, lealdade, pureza, brancura e inocência; das complexões, homem fleumático; dos planetas, a lua; dos doze signos, três: Câncer, Escorpião e Peixes; dos elementos, a água; na pedraria, a pérola; dos dias da semana, a segunda-feira.

A terceira parte

O vermelho nas armas simboliza duas virtudes: valentia e ousadia; na complexão, homem colérico; dos planetas, Saturno; dos doze signos, Áries, Leão e Sagitário; na pedraria, o rubi; dos dias da semana, o sábado; dos elementos, o fogo, e dos metais, o latão, de que se faz a mina vermelha.

A quarta parte

O azul simboliza na virtude lisonja, beleza e alteza; na complexão, homem encarniçado; dos planetas, Vênus; dos doze signos, Gêmeos, Libra e Aquário; na pedraria, a safira; dos dias da semana, a sexta-feira; dos elementos, o ar; dos metais, a prata fina, de que se faz o azul.

A quinta parte

O negro simboliza luto e dor; na complexão, homem melancólico; dos planetas, Marte; dos signos, Touro, Virgem e Capricórnio; na pedraria, o diamante; dos dias da semana, a terça-feira; dos elementos, a terra; dos metais, o ferro, de que se faz o negro.

A sexta parte

O verde simboliza na virtude amor, honra e cortesia; dos planetas, Mercúrio; na pedraria, a esmeralda; dos dias da semana, a quarta-feira; dos metais, o azougue, de que se faz o verde.

A sétima parte

A púrpura nas armas simboliza na virtude largueza, abundância e sabedoria; dos planetas, Júpiter; na pedraria, a espinela; dos dias da semana, a quinta-feira; dos metais, o estanho; dos elementos, as nuvens.

Comentário:

Armas primitivas dos reis cristãos hispânicos.
Armas primitivas dos reis cristãos hispânicos.

Quando Teobaldo II incorporou o brocal do escudo paterno às armas reais de Navarra, houve na península Ibérica cinco brasões régios bem reconhecíveis. De oeste a leste:

  • Portugal: de prata com cinco escudetes de azul, besantados do campo, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro (depois com uma bordadura de vermelho, castelada de ouro). Atestação mais antiga: selo de Dom Sancho I, 1187.
  • Leão: de prata com um leão de púrpura (depois armado e lampassado de vermelho). Atestação mais antiga: selo de Fernando II, 1159.
  • Castela: de vermelho com um castelo de ouro (depois aberto e iluminado de azul). Atestação mais antiga: selo de Afonso VIII, 1176.
  • Navarra: de vermelho com um brocal de ouro (antes de vermelho liso). Atestação mais antiga: selo de Teobaldo II, 1259.
  • Aragão: de ouro com palas de vermelho (depois quatro) ou palado de ouro e vermelho. Atestação mais antiga: selo de Raimundo Berengário IV, 1150.

Esses reinos não só ficavam no mesmo espaço, definido natural e, desde a Antiguidade, culturalmente — a Hispânia ou Espanha —, mas também eram governados por reis cujos interesses convergiram e divergiram durante toda a baixa Idade Média: estavam enlaçados por parentescos diversos, que levaram a duas uniões duradouras (Aragão e Barcelona desde 1164, Castela e Leão desde 1230), e tinham o Islã por antagonista comum, porém todas essas relações amiúde causavam pretensões, disputas e guerras.

Em meio às convergências e divergências, os brasões régios hispânicos são perfeitamente distinguíveis. Dois são armas falantes: o rei de Leão trazia um leão e o de Castela, um castelo (1). Outros dois são constituídos de peças repetidas: as palas de Aragão (ou palado, as reproduções variam) e os escudetes besantados de Portugal. O quinto, o de Navarra, era liso, mas ornado com uma peça de existência real, que servia para reforçar o escudo, o brocal, o qual acabou sendo convertido em figura.

Com efeito, nas heráldicas primitiva e clássica os brasões eram mormente arbitrários, pois prevalecia a marcação dos laços feudais: suserania × vassalagem, primogenitura × demais genituras, domínio principesco × domínio senhorial. Nessa linha de raciocínio, as armas do rei português não simbolizavam nada, mas simplesmente marcavam a sua soberania em relação aos seus congêneres próximos. Daí que eu tenha elaborado a imagem e o texto pela situação de cada reino, de oeste a leste. Se continuasse França adentro, o raciocínio seria confirmado pelas armas do conde de Foix: de ouro com três palas de vermelho. Vassala do conde de Toulouse, a Casa de Foix não só entroncava na de Barcelona, mas manteve relações estreitas com os condados catalães, daí que nesse caso as armas não contrastem, mas se assemelhem (2).

Precisamente, as armas reais aragonesas, portuguesas e navarras foram objeto de mitificação desde o fim da Idade Média. Para cada um desses brasões criou-se uma lenda que lhe dá uma origem mística ou heroica com um apelo tão forte que a tornou célebre, quase canônica ou mesmo tida por fato histórico até o desenvolvimento das ciências no século XIX. A saber:

  • Portugal: O chamado Milagre de Ourique, elaborado desde a segunda redação da Crônica Geral de Espanha de 1344 (1454-1463), passando pela Crônica de Dom Afonso Henriques, de Duarte Galvão (1505; daí divulgado por Luís de Camões n'Os lusíadas, 1572), até a Monarquia lusitana, de Frei Antônio Brandão (1632). Segundo a última versão, Jesus Cristo apareceu a Dom Afonso Henriques na véspera da Batalha de Ourique e deu-lhe os escudetes postos em cruz em memória do preço com que comprou o gênero humano — a crucificação — e os besantes, daquele com que foi comprado pelos judeus — as trinta moedas de prata pelas quais Judas Iscariotes o traiu.
  • Navarra: A lenda segundo a qual Sancho VII o Forte, rei de Navarra, rompeu as correntes que cingiam a paliçada de Maomé Násser, califa almóada, na Batalha de Las Navas de Tolosa, em 1212. Neste caso, o mito foi de tal modo difundido desde o começo do século XV e ganhou tal prestígio que na Idade Moderna acabou preponderando a troca do brocal por correntes postas em cruz, aspa e orla, com uma esmeralda no centro, a qual também teria feito parte do butim da dita batalha.
  • Aragão: A lenda das quatro barras de sangue, divulgada pela Segunda parte de la crónica general de España, de Pere Antoni Beuter (1551), segundo a qual Vilfredo o Peludo, conde de Barcelona (878-897), pediu ao "imperador Luís" que lhe desse armas, já que trazia um escudo de ouro liso. O conde estava ferido, pois fora acudir o imperador contra os normandos. O imperador molhou, então, a mão direita no sangue do conde e passou os dedos sobre o escudo, fazendo quatro listras vermelhas.

Será mera coincidência que desses cinco brasões, os três que não contêm figuras unívocas tenham sido mitificados? Em absoluto. Concorda plenamente com a virada da heráldica cuja consolidação o Tratado Prinsault testemunha. Ora, se as armas foram inventadas para recompensar as proezas de cavaleiros valorosos e transmitir a recordação de tais feitos aos descendentes deles, parecia muito razoável que tivessem uma origem façanhosa.

Efetivamente, foi perene a mudança de um sistema em que grande parte dos brasões era constituída de signos, porque o mecanismo de funcionamento era o contraste ou a semelhança, para um sistema de forte carga simbólica: até hoje, ao se ordenar um brasão novo, nada se escolhe ao léu. A questão é: com o grau de reflexão que alcançamos, como lidar com esse caráter simbólico? Respondo que com clareza: no século XV, as sociedades europeias ocidentais viviam um frenesi pela alegoria. Este capítulo exemplifica isso e a cópia contida no códice Français 14357, conservado na Bibliothèque nationale de France, reforça-o, porque a partir do fólio 30 dispõe um bestiário heráldico. Para citar um item curto: "Porter le chien en armes signifie un loyal batailleur, qui ne veut point laisser son seigneur, ne en vie ne en mort, mais s'appareille à souffrir mort pour son seigneur, ainsi comme note Barthélemy ès Propriétés des choses, au chapitre Du chien" (3).

Uma alegoria é a representação de um conceito por meio de algo concreto, seja um ser vivo ou uma coisa, como o busto de mulher que figura nas cédulas do real brasileiro: representa a república. Na baixa Idade Média, não só os animais podiam representar certos conceitos, como o cão a lealdade, mas vários conceitos podiam ser representados por alegorias. Por exemplo, Raimundo Lúlio, no Llibre de l'orde de cavalleria, dá um significado a cada petrecho da cavalaria: a espada simboliza a justiça; a lança, a verdade; o escudo, o próprio ofício de cavaleiro; o brasão "és donat a cavaller per ésser lloat en los ardiments que fa e de los colps que dona en la batalla" (4). Isso num livro escrito entre 1274 e 1276!

Atualmente, entendemos que a relação entre o negro e o luto, entre o cão e a lealdade, entre a espada e a justiça não é imanente, mas construída. Isso não implica em desprezar tudo como se não passasse de fábulas absurdas nem em se deixar levar pelo relativismo extremo de que cada um pode dar a qualquer coisa o significado que bem lhe der na telha. Quer dizer que é preciso circunstanciar a asserção: não é que o negro simbolize luto, mas sim que simbolize isso no Ocidente, por herança da cultura romana (5).

À luz de todas estas razões, compreende-se que alguns dos significados apontados no presente capítulo se devem à similitude do esmalte com a cor do objeto: o ouro com o sol, a prata com a lua e a pérola, o vermelho com o rubi e o fogo, o azul com a safira, o negro com o diamante e o ferro, o verde com a esmeralda, a púrpura com a espinela. Mas para se ter uma ideia do caráter convencional desses significados, hoje relacionamos a água mais ao azul que ao branco, o ar mais ao branco que ao azul e a terra mais ao verde que ao negro.

Outros significados devem-se às práticas sociais, algumas legadas pela Roma antiga, como as relações das virtudes com os esmaltes, mas outra vez os rumos da história alteraram algumas, como a do amor com o verde, já que para nós a sua cor é o vermelho. A influência romana também se faz sentir nas ligações com os chamados sete planetas, que eram o sol, a lua mais os cinco planetas conhecidos então, associados a certos deuses: sendo Júpiter o maior (Maximus) e Saturno seu pai, a um e ao outro atribuíram-se as cores do poder, a púrpura e o vermelho; sendo Marte o deus da guerra, que causa a morte, e tendo Vênus nascido de uma concha no mar, a um e à outra atribuíram-se o negro e o azul. A Mercúrio coube a cor sobrante. Os dias da semana correspondem exatamente aos "sete planetas", cujos nomes carregam (6).

No fim de todas as contas, não é papel da ciência hostilizar a cultura, mas elucidar como a cultura produziu as crenças e práticas sociais. O Milagre de Ourique não é um fato da história portuguesa, mas incontestavelmente faz parte da cultura portuguesa, assim como fazem parte da civilização ocidental muitos significados que se dão a diversos seres e coisas, frequentes na armaria.

Notas:
(1) Esses dois exemplos ilustram bem como funcionam as armas falantes: a relação dá-se entre o que o nome do titular sugere e a figura, independentemente da exatidão dessa sugestão, quer da perspectiva diacrônica, quer da sincrônica. Assim, no caso de Castela, esse nome efetivamente vem do latim castella, plural de castellum, mas no caso de Leão, esse nome nada tem a ver com o animal, porque vem do latim legio,legionis, devido ao fato de que a cidade de Leão surgiu do acampamento da legião romana VII Gemina, de modo que a homofonia com a palavra leão foi causada pela evolução da língua.
(2) O primeiro conde de Foix, Bernardo Rogério (979/981-c. 1034), era irmão da poderosa Ermesinda de Carcassonne (975/977-1058), que dominou a política catalã desde o seu casamento com Raimundo Borrell, conde de Barcelona, por volta de 991, até a sua morte. Até hoje o presidente da França é copríncipe de Andorra porque em 1278 o conde Rogério Bernardo III firmou um pariatge com o bispo de Urgell sobre os direitos de cada um sobre esses vales, que pelo lado do conde acabaram passando ao rei da França e depois aos chefes do estado.
(3) "Trazer o cão nas armas simboliza um leal batalhador, que não quer deixar o seu senhor, nem na vida nem na morte, mas se prepara para sofrer a morte pelo seu senhor, assim como nota Bartolomeu nas Propriedades das coisas, no capítulo Do cão." (tradução minha)
(4) "É dado ao cavaleiro para ser louvado nas proezas que faz e pelos golpes que dá na batalha." (tradução minha)
(5) Uma das variantes da toga, a veste do cidadão romano, era a toga pulla, de cor escura, que se trazia durante o luto.
(6) Solis dies 'dia do sol', Lunæ dies 'dia da lua', Martis dies 'dia de Marte', Mercurii dies 'dia de Mercúrio', Jovis dies 'dia de Júpiter', Veneris dies 'dia de Vênus', Saturni dies 'dia de Saturno'. Com a troca de Solis dies e Saturni dies por Dominicus dies 'dia do Senhor' e Sabbatum 'sábado' e por diferentes evoluções, esses nomes permaneceram nas línguas românicas, exceto em português, em que se adotou a nomenclatura eclesiástica (secunda feria, tertia feria etc.), graças à ação do bispo Martinho de Braga no século VI.

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