O brasão está, por definição, sujeito a certas regras, resultantes de uma longa construção, para a qual colaboraram de modo especial os arautos.
O que diferencia o brasão de outros símbolos é a sujeição da sua constituição a um conjunto de regras e convenções. Essa espécie de gramática é o que permite a alguém que a estuda julgar que tal emblema é aceitável ou não enquanto brasão, como tenho feito em relação à emblemática estatal brasileira. Tome-se uma bandeira: a combinação das cores e a sua divisão, bem como o que for desenhado nela, são soltos de qualquer código. A bandeira de Portugal, por exemplo, não está errada por combinar verde e vermelho, o que num brasão seria uma infração da regra de iluminura.
Obviamente, a heráldica não surgiu codificada, como se fosse obra de algum demiurgo. Na verdade, ela sequer funcionou de igual modo ao longo da sua multissecular história. Como razoei nas postagens de 31/01 e 14/02, desenvolveu-se durante o século XII. Pode-se afirmar que em meados desse século, o sistema primitivo já estava configurado e em franca expansão. No entanto, o primeiro trabalho de reflexão sobre o assunto foi o Tractatus de insigniis et armis, de Bártolo de Sassoferrato, publicado em 1358, ou seja, depois de uns duzentos anos de desenvolvimento. É mesmo de todo provável que o sistema observado por Bártolo sequer seja o primitivo, mas já o clássico. Muito possivelmente, o brasão primitivo era de uso senhorial e coletivo, em contraposição ao clássico, que era individual e desconhecia estratos sociais.
Depois do tratado de Bártolo, a heráldica rapidamente caiu no gosto dos produtores e consumidores de literatura técnica, ao mesmo tempo que sofria mais uma virada, ou melhor, mudava junto com a sociedade como um todo, pois tudo se passou justamente no momento que a historiografia convencionou como o fim de uma era e o começo de uma nova: da Idade Média para a Moderna. A heráldica tornou-se, então, a dimensão estética da cavalaria, o que já se percebe em Bártolo: na dita postagem de 14/02, vemos que o cavaleiro perfeito trazia as suas armas não só no seu escudo, mas também na sua cota e na gualdrapa do seu cavalo. Essa imagem acabou por se tornar tão natural para o homem do século XV que ele simplesmente não concebia que certas personagens da alta Idade Média e da Antiguidade, tendo sido guerreiros tão célebres, não tivessem tido brasões, daí que se tenham inventado armas para Carlos Magno, Alexandre o Grande ou Davi.
Precisamente, no mundo cavalheiresco a guerra era idealizada a partir da honra, da prova, da façanha. Porém no mundo real, era cada vez mais um negócio de estado, dirigido segundo os interesses da Coroa. Noutras palavras, refiro-me à transição da nobreza medieval, feudal e guerreira para a nobreza moderna, curial e burocrata. Nesse contexto, destacou-se uma figura que veio servir a todos os interesses, seja do príncipe, dos nobres e o seu próprio: o arauto.
Claire Boudreau, Chief Herald/Héraut d'armes do Canadá (2007-2020), investida das insígnias do seu ofício. Imagem disponível no website do jornal l-express.ca. |
Como adiantei na postagem de 13/01, os arautos pertenciam originariamente à mesma classe dos menestréis, jograis e bobos, ou seja, ambulavam de corte em corte, oferecendo a príncipes e senhores os seus serviços. Mas, de cara, tomaram por especialidade um objeto que lhes conferiu mais prestígio do que a qualquer outro segmento da classe: a honra. Ora, como os fidalgos — sob a chefia do príncipe — eram tidos por fonte da honra, os arautos não só ficavam perto dos detentores do poder, mas podiam mesmo fazer as vezes destes, como quando em missões diplomáticas.
Em suma, num momento em que o domínio régio aumentava mais e mais, era útil aos nobres prover alguém para rememorar os grandes feitos dos seus antepassados e exaltar as suas proezas na batalha e no desporto. Ao príncipe era útil alguém que o representasse não só como o chefe da nobreza, mas também como a própria fonte dela. Aos próprios arautos era útil a oportunidade de dignificação: durante o século XV, os soberanos instituíram a hérauderie (1) entre os ofícios das suas cortes. Em Portugal, como já sabemos desde a postagem de 11/01, isso deveio em 1476, quando Dom Afonso V designou o rei de armas Portugal oficial de armas principal, embora a atividade dos arautos remonte nesse país ao reinado de Dom João I (1385-1433). Com efeito, Fernão Lopes, ao narrar a preparação à Batalha de Aljubarrota (1385) no capítulo 38 da segunda parte da crônica desse rei, revela: "E estes tinham ũa alta bandeira de Sam Jorge e outros balsões de mestura, assi que a az da vangoarda com suas alas era semeada de bandeiras e pendões como a cada ũu prazia de ter, ca i nam havia outro rei d'armas nem outro erauto que o a ninguém desdissesse".
Tabardo do rei de armas Portugal, conservado no Museu Nacional dos Coches, em Lisboa. |
Ora, por que "ofício de armas"? Porque, como eu disse, o sistema virou novamente: os brasões foram cada vez mais encarados como marcas dessa honra de que os arautos se ocupavam. Um pouco de tudo pode ter contribuído para isso. Já no De insigniis et armis, é patente a honorificência da concessão de armas pelo príncipe: o próprio Bártolo, professor universitário que sequer usava de sobrenome, ufana-se visivelmente das armas que o imperador Carlos IV lhe concedeu. Também interessava à Coroa controlar as sucessões daqueles com quem compartilhava o poder e a quem tirava do número dos plebeus, como se dizia. À própria nobreza convinha dispor de um sistema semiótico que distinguisse a sua condição privilegiada. Para tudo isso, o brasão afigurou-se como o instrumento ideal.
Assim, de especialistas ambulantes em honra cavalheiresca com múltiplas atuações, os arautos converteram-se em especialistas cortesãos em ordenar, passar e registrar brasões. Daí que na literatura técnica da armaria no século XV sobressaiam os manuais das suas autorias. Na verdade, a própria popularidade dessas obras pode ter difundido a ideia de que brasão é coisa de fidalgo. Em Portugal, os testemunhos dessa virada são claros: a carta de Dom Afonso V em 1476 ainda menciona armas plebeias; já as Ordenações manuelinas, de 1521, tratam do caráter nobiliário da heráldica gentilícia como algo natural e consensual.
Com efeito, Portugal é, na minha opinião, um país que fornece uma ilustração muito evidente dessa evolução do sistema, o que vejo pouco valorado na própria literatura acadêmica vernácula. Já no começo do século, presumivelmente 1416, um arauto português elaborou um manual-armorial muito interessante, embora tido em menor conta se comparado aos armoriais manuelinos, talvez por ter sido escrito em latim, conter poucas armas portuguesas e ter ido parar numa biblioteca estrangeira. Falo do códice Latin MS 28, conservado na John Rylands Library, em Manchester, Inglaterra. É conhecido como De ministerio armorum, título anotado por um dos seus proprietários, e também como Livro de arautos, título dado pelo seu editor e tradutor: Aires Augusto Nascimento (1977).
Armas reais portuguesas no fólio 30r do códice Latin MS 28, conservado na John Rylands Library, Manchester. |
O De ministerio armorum foi produzido a pretexto do Concílio de Constança (1414-1418) e testemunha o momento durante o qual os arautos ainda padeciam de desprestígio por causa da sua extração social, mas já mitificavam as suas origens com o fito de se dignificarem. Assim, o autor já divulga a versão de que Júlio César teria inventado a armaria, mas ante a pobreza em que se achava a classe, protesta que "nemo potest vivere bene de vento sine alio" ("ninguém pode viver bem só de ar sem mais nada"; tradução do editor). Além disso, ainda que contenha 258 armas iluminadas, a obra não aborda a técnica do brasão, mas na sua maior parte descreve várias regiões da Europa, por onde, precisamente, os arautos deviam deambular:
Dicta regula heraldorum requirit homines qui sint magni laboris et vexationis et qui viatici magni fiunt per mare et terram in guerris et patriis diversis torneamentis et hastiludiis et in omnibus rebus honorabilis status et etiam quod habeant magnam capacitatem et retentionem et magni sint ingenii et scientiæ et valeant de præmissis reportare veridice juxta posse. Requirit etiam ulterius dicta regula quod homo talis in tacendo sit modestus et bene facundus in idiomate de iis quæ suo pertinent officio quando ab eo exigitur debite; et quod sciat discernere omnia insignia arma mundi per præfatos colores. Debent præfati heraldi se regere multum habiliter et honorabiliter pro honore suorum dominorum, et quæ eorum officio incumbit conservare, nec debent esse tructani sive veloces ad petendum præterquam ab eorum dominis quibus serviunt excepto in casu necessitatis. (2)
De fato, o gênero que se caracterizou pela abordagem dos aspectos técnicos do brasão e veio ser conhecido como tratado de armaria foi cultivado mormente em francês. Um deles tornou-se um verdadeiro best-seller: o chamado Tratado Prinsault. Escrito por volta de 1444, recensearam-se 23 ou 24 cópias do mesmo século, 23 do seguinte e oito do XVII. Clément Prinsault não é o autor do texto, mas da dedicatória de uma das cópias, a contida no códice Français 5936, conservado na Bibliothèque nationale de France, em Paris, endereçada ao jovem Jaime, filho de Jaime de Armagnac, duque de Nemours, entre 1468 e 1476. A autoria é desconhecida. Essa ausência e mais a de um título são mesmo características do gênero.
Fólio 8v do códice Français 5936, conservado na Bibliothèque nationale de France, Paris. |
Na verdade, o Tratado Prinsault é semelhante a três outros tratados de armaria: o do Livre des armes remonta aos primeiros anos do século; o Tratado em forma de questionário (título dado por Claire Boudreau, máxima autoridade no assunto e Chief Herald/Héraut d'armes do Canadá até o ano passado, quando faleceu aos 55 anos) já circulava antes de 1437; o Tratado Argentaye (nome do primeiro dono da única cópia remanescente: Jean Guillemot, senhor de Largentaye) foi composto entre 1482 e 1492. Mas apesar de dizerem o mesmo com os mesmos exemplos, não têm, curiosamente, uma relação genética que induza a um arquétipo. Isso demonstra que os arautos compilavam, reescreviam, ampliavam e reduziam a mesma matéria de acordo com o público para o qual produziam. O próprio Tratado em forma de questionário foi refundido, impresso e, tendo sido atribuído ao arauto Sicília, que servira a Afonso o Magnânimo, rei de Aragão, teve notável fortuna crítica: em 1494 com o título de Blason de toutes armes e em 1505 com o de Blason des couleurs.
Fólio 19r do códice Français 11464 (Tratado Argentaye), conservado na Bibliothèque nationale de France, Paris. |
O que distingue o Tratado Prinsault é o seu público destinatário: como atesta a dedicatória de Clément Prinsault, o autor reescreveu o Tratado em forma de questionário para adequá-lo à educação dos nobres. Essa vertente didática seria característica do gênero até o fim do Antigo Regime. Efetivamente, o melhor tratado de armaria publicado em Portugal durante esse período é o contido no terceiro livro dos enciclopédicos Elementos da história, de Pierre Le Lorrain, abade de Vallemont, traduzido por Pedro de Sousa de Castelo Branco (1756). A heráldica identificou-se de tal maneira com a nobreza que qualquer cavalheiro deveria dominar os seus rudimentos, supunha-se.
A partir da próxima postagem, começarei, pois, um projeto novo: traduzir o Tratado Prinsault do francês para o português. Diante da impossibilidade de levar a cabo uma edição crítica, em virtude da difusão do texto, escolhi o manuscrito 3711, conservado na Bibliothèque Mazarine, em Paris. É o códice rico da tradição desse texto: o mais bem ilustrado, o mais bem acabado e o que Louis Douët d'Arcq editou e publicou em 1858.
Fólios 11v e 12r do códice 3711, conservado na Bibliothèque Mazarine, Paris. |
Enfim, o Tratado Prinsault é um texto curtinho, composto de doze brevíssimos capítulos, mas abarca o básico da armaria, não só com explicação por escrito, mas também com exemplos desenhados e iluminados.
(1) A palavra francesa hérauderie é formada por héraut 'arauto' mais o sufixo -erie, que em português é -aria, ou seja, se existisse na nossa língua, seria "arautaria". Designa, pois, o ofício do arauto e dela provém o inglês heraldry. Na nota 1 da postagem de 05/01 detalhei a etimologia de heráldica.
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