23/01/21

O QUE SÃO OS SINAIS DE OFÍCIO

O brasão é um conceito e, como tal, pode ser realizado em diferentes estilos artísticos, todos igualmente corretos se obedecido o brasonamento.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(12) Quædam vero sunt insignia alicujus societatis et negotiationis, et hic cum societas non transeat ad heredem non est tractandum de herede. Sed apud quem remanebit signum societate divisa? Quod enim utantur omnes eodem signo non est æquum, ut dictum est. Si quidem erat unus in societate qui erat capitaneus et quasi magister societatis, sicut dicimus in simili (D, 31, 1, 65, 1 [1]), tunc apud eum debet remanere signum, quia ipse erat inter eos majoris honoris (D, 22, 4, 6 [2]). Si vero hic non erat, tunc apud eum remanebit qui erat socius majoris quantitatis (D, 10, 2, 5 [3]). Quid si omnes sunt æquales? Tunc sorte dirimendum est (D, 10, 2, 5).

Puto tamen quod si dissoluta societate unus ex sociis remanet negotiator, alii non, quod apud eum qui remanet negotiator debet remanere signum et hoc quia aliorum non interest. Item quia licet sit dissoluta societas, tamen negotiatio remanet penes illum. Ergo iniquum esset quod signum, quod erat accessorium illius negotiationis, ab eo separetur (C, 3, 38, 11 [4]).

Quædam vero sunt cujusdam artificii seu peritiæ. Et hic advertendum, quandoque sunt signa artificii in quo principaliter operatur qualitas loci. Exemplum: in marchia Anconitana est quoddam castrum nobile, cujus nomen est Fabrianum, ubi artificium faciendi chartas de papyro principaliter viget, ibique sunt multa ædificia ad hoc, et ex quibusdam ædificiis meliores chartæ proveniunt, licet ibi faciat multum bonitas operantis. Et, ut videmus, quodlibet folium chartæ suum habet signum, propter quod significatur cujus ædificii est charta. Dico ergo quod isto casu apud illum remanebit signum apud quem remanebit ædificium in quo fit, sive jure proprietatis, sive jure conductionis, sive quovis alio titulo, sive in totum, sive in partem, sive etiam mala fide teneat, toto tempore quo tenet non potest prohiberi uti signo, sicut in ceteris juribus realibus (D, 8, 3, 23, 3 [5]; D, 8, 5, 2 [6]; D, 8, 5, 3 [7]). Item in conductore talium ædificiorum (D, 19, 2 [8]).

Quædam sunt signa artificii in quo principaliter viget bonitas artificis, ut videmus in signis quæ apponuntur in spathis vel gladiis et aliis operibus metallorum. Et isto casu omnes qui sunt in una statione possunt uti illo signo, quasi magister principalis illius stationis approbet illa opera (N, 44, 1 [9], et notatur in glossa quæ incipit Cave tibi, in fine glossæ). Si vero separantur, tunc signum debet remanere apud eum qui principaliter erat in statione (D, 22, 4, 6, et supra proxime dixi). Si vero omnes erant æquales, nisi in unum conveniant, apud quem remaneat signum sorte dirimatur (D, 10, 2, 5).

(12) Certas insígnias, porém, são de alguma sociedade e negócio. Não tendo passado a sociedade ao herdeiro, não há que se tratar sobre herdeiro. Mas, dividida a sociedade, com quem ficará o sinal? Com efeito, não é justo que todos usem do mesmo sinal, como se disse. Se havia um na sociedade que era o chefe, como que o mestre da sociedade, tal como se diz em semelhantes coisas (D, 31, 1, 65, 1 [1]), então é com ele que deve ficar o sinal, porque entre eles era o de maior honra (D, 22, 4, 6 [2]). Porém, se não o havia, então ficará com o que era o sócio da maior cota (D, 10, 2, 5 [3]). Ora, se todos são iguais? Então se há de dirimir pela sorte (D, 10, 2, 5).

No entanto, penso que, dissolvida a sociedade, se um dos sócios permanece negociante, outros não, o sinal deve ficar com aquele que permanece negociante. Isso porque não afeta os outros. Outrossim porque, embora se tenha dissolvido a sociedade, o negócio permanece, no entanto, nas suas mãos. De fato, é injusto que o sinal, que era um acessório do negócio, seja separado dele (C, 3, 38, 11 [4]).

Certas insígnias, porém, são de certo ofício ou habilidade e cabe advertir que às vezes há sinais de ofício em que se patenteia principalmente a qualidade do lugar. Exemplo: na Marca de Ancona há certo nobre burgo, chamado Fabriano, onde floresce principalmente o ofício de fabricar papel. Há aí muitas fábricas para tal e de certas fábricas saem papéis melhores. Isso pode ter muito a ver com a qualificação do trabalhador. Como vemos, uma folha de papel qualquer tem o seu sinal, por meio do qual se denota de qual fábrica é o papel. Por conseguinte, digo que nesse caso o sinal ficará com aquele com quem ficará a fábrica, seja por direito de propriedade, por direito de arrendamento ou a qualquer outro título, seja no todo, em parte ou mesmo se o tiver de má fé, por todo o tempo que o tem não se pode proibir usar o sinal, assim como nos demais direitos de coisas (D, 8, 3, 23, 3 [5]; D, 8, 5, 2, 3 [6]; D. 8, 5, 3 [7]). Outrossim quanto aos rendeiros de tais fábricas (D, 19, 2 [8]).

Certos sinais são de um ofício em que se patenteia principalmente a qualificação do artesão, como vemos nos sinais que se apõem aos sabres ou às espadas e a outras obras de metais. Nesse caso, todos que se mantêm num posto podem usar desse sinal, como se o mestre principal do posto validasse essas obras (como em N, 44, 1 [9] e confira-se a glosa que começa por Cave tibi, no fim da glosa). Porém se se separam, então o sinal deve ficar com aquele que era o principal no posto (D, 22, 4, 6 e o que disse logo acima). Mas se todos eram iguais e não se avêm, dirima-se pela sorte com quem o sinal há de ficar (D, 10, 2, 5).

Notas:
[1] D, 31, 65: Peculium legatum augeri et minui potest, si res peculii postea esse incipiant aut desinant. Idem in familia erit, sive universam familiam suam sive certam (veluti urbanam aut rusticam) legaverit ac postea servorum officia vel ministeria mutaverit (Pode-se aumentar ou diminuir o pecúlio legado se posteriormente algumas coisas começarem a ser do pecúlio ou deixarem. O mesmo se dará quanto à escravaria, se tiver legado a sua escravaria, seja inteira, seja certa parte (quer urbana ou rural), e depois tiver mudado os deveres ou serviços dos escravos).
[2] D, 22, 4, 6: Si de tabulis testamenti deponendis agatur et dubitetur, cui eas deponi oportet, semper seniorem juniori et amplioris honoris inferiori et marem feminæ et ingenuum libertino præferemus (Se for tratado de se depositar as tábuas de um testamento e se duvidar para qual cabe depositar-se, sempre preferiremos o mais velho ao mais jovem, o de maior honra ao inferior, o macho à fêmea e o livre de nascença ao liberto).
[3] D, 10, 2, 5: Si quæ sunt cautiones hereditariæ, eas judex curare debet ut apud eum maneant, qui majore ex parte heres sit, ceteri descriptum et recognitum faciant, cautione interposita, ut, cum res exegerit, ipsæ exhibeantur. Si omnes isdem ex partibus heredes sint nec inter eos conveniat, apud quem potius esse debeant, sortiri eos oportet: aut ex consensu vel suffragio eligendus est amicus, apud quem deponantur: vel in æde sacra deponi debent (Se algumas são cauções hereditárias, o juiz deve cuidá-las para ficarem com aquele que for o herdeiro da maior parte. Façam os demais uma cópia e uma certidão com uma caução intercalada; quando algo o tiver exigido, mostrem-se-lhes as mesmas. Se todos os herdeiros forem das mesmas partes e não convier entre eles com qual devam preferivelmente estar, é preciso serem sorteados, ou deve escolher-se por consenso ou por votação um amigo junto ao qual sejam depositados, ou devem ser depositados num templo sagrado).
[4] C, 3, 38, 11: Possessionum divisiones sic fieri oportet, ut integra apud successorem unumquemque servorum vel colonorum adscripticiæ conditionis seu inquilinorum proxima agnatio vel affinitas permaneret (É preciso fazerem-se assim as divisões das posses: que a linhagem ou parentela mais próxima dos servos, dos colonos de condição adscritícia ou dos inquilinos permaneça íntegra com cada sucessor).
[5] D, 8, 3, 23, 3: Quæcumque servitus fundo debetur, omnibus ejus partibus debetur: et ideo quamvis particulatim venierit, omnes partes servitus sequitur et ita, ut singuli recte agant jus sibi esse eundi. Si tamen fundus, cui servitus debetur, certis regionibus inter plures dominos divisus est, quamvis omnibus partibus servitus debeatur, tamen opus est, ut hi, qui non proximas partes servienti fundo habebunt, transitum per reliquas partes fundi divisi jure habeant aut, si proximi patiantur, transeant (Deve-se uma servidão qualquer a um fundo, deve-se a todas as suas partes. Por isso, mesmo vendido por partes, a servidão segue todas as partes, de modo que cada qual pleiteia corretamente que tem o direito do fundo. No entanto, se o fundo ao qual se deve a servidão foi dividido entre vários donos por determinados setores, mesmo que se deva a servidão a todas as partes, no entanto é necessário que quem tiver partes não vizinhas no fundo servente tenha por direito a passagem através das partes restantes do fundo dividido, ou que passem se os vizinhos os abrirem).
[6] D, 8, 5, 2, 3: Pro sententia Juliani facit, quod Labeo scribit, etiam si testator usus sit qui legavit usum fructum, debere utile interdictum fructuario dari, quemadmodum heredi vel emptori competunt hæc interdicta (A favor da sentença de Juliano age o que escreve Labeão: que, embora o testador que legou o usufruto tenha usado, deve dar-se o interdito útil ao usufrutuário, do mesmo modo que esses interditos competem ao herdeiro ou ao comprador).
[7] D, 8, 5, 3Sed et si partem fundi quis emerit, idem dicendum est (Mas também se alguém tiver comprado uma parte do fundo, há de se dizer o mesmo).
[8] D, 19, 2: [11, 2] Item prospicere debet conductor, ne aliquo vel jus rei vel corpus deterius faciat vel fieri patiatur. [19, 2] Illud nobis videndum est, si quis fundum locaverit, quæ soleat instrumenti nomine conductori præstare, quæque si non præstet, ex locato tenetur (Outrossim, o rendeiro deve ter cuidado para não tornar nada pior, quer o direito da coisa quer o conjunto, ou sofrer de modo a tornar-se).
[9] N, 44, 1: Nos autem credimus oportere universis auxiliari et communem in omnibus facere legem, quatenus præpositis operi tabellionum ipsis per se omnibus modis injungatur documentum, et dum dimittitur intersint, et non aliter imponatur chartæ completio nisi hæc gerantur: ut habeant unde sciant negotium et interrogati a judicibus possint quæ subsecuta cognoscere et respondere (Nós cremos ser preciso aliviar a todos e fazer uma lei comum em tudo, porquanto o documento seja, de todo modo, imposto pelos próprios presentes ao trabalho dos tabeliões por si mesmos e estejam presentes enquanto se despacha, de outro modo não se imponha acabamento ao papel, a não ser que se administrem de modo que tenham como conhecer o negócio e, interrogados pelos juízes, possam reconhecer e responder o que se subseguiu).

Comentário:

Na postagem de 13/01, falei pela primeira vez do Regimento de nobreza dos reis de armas, promulgado pelo rei Dom Manuel I em 1512 e vigente em Portugal e no Brasil até o fim das monarquias, e desde então não parei de mencioná-lo. Hoje chamo a sua atenção, caro leitor, para um aspecto observável pelo modelo de carta de armas novas, que transcrevi em 17/01. Assinalando o auge do fortalecimento da potestade régia, o rei compara-se a Deus e entende que o brasão é um prêmio imperecível, assim como a glória para o justo na vida eterna. De fato, um brasão não é um objeto concreto, pintado ou esculpido, mas um conceito. É por isso que ele é o que em linguística se denomina multimodal: é imagem e também texto em linguagem verbal. Afinal, o tempo carcome a pintura e a escultura, mas a palavra escrita e lida é imortal.

Detalhe do padrão chantado pelos portugueses na costa do Rio Grande do Norte em 1501, daí chamada Praia do Marco (atualmente termo do município de São Miguel do Gostoso), um dos mais antigos exemplares das armas reais portuguesas no Brasil, hoje conservado no museu da Fortaleza dos Reis Magos, em Natal (foto de Alex Uchoa).
Detalhe do padrão chantado pelos portugueses na costa do Rio Grande do Norte em 1501, daí chamada Praia do Marco (atualmente termo do município de São Miguel do Gostoso), um dos mais antigos exemplares das armas reais portuguesas no Brasil, hoje conservado no museu da Fortaleza dos Reis Magos, em Natal (foto de Alex Uchoa).

Apesar da falta de concretude, um brasão de armas também é um bem: tem um dono, que pode usá-lo como dita o costume e legá-lo ao seu herdeiro. Daí que a carta cuide em enunciar que "com elas possa entrar em batalhas, campos, duelos, reptos, escaramuças, desafios, justas e torneios, e exercitar com elas todos os outros autos lícitos de guerra e paz; e assim as poderá trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas, e as pôr em suas casas e edifícios, e deixá-las sobre sua própria sepultura, e finalmente servir-se e honrar-se e aproveitar e gozar delas em tudo e por tudo".

Armas imperiais brasileiras no frontispício da Câmara Municipal de Sobral (1851). É a única sede de poder público que preservou esse brasão e já observei pessoalmente (recorte de foto disponível na Wikimedia Commons).
Armas imperiais brasileiras no frontispício da Câmara Municipal de Sobral (1851). É a única sede de poder público que preservou esse brasão e já observei pessoalmente (recorte de foto disponível na Wikimedia Commons). (1)

À medida que a maioria das monarquias ocidentais foi dando lugar a repúblicas, aboliram-se os foros de nobreza e desses usos os poucos que então restavam tornaram-se assunto privado do cidadão. Não obstante, nalguns desses países quem fizer questão de procurar a tutela do estado para as suas armas terá de pedir um registro de marca. Coincidência com o texto de Bártolo? Acho que o brilhante doutor de Sassoferrato é que, tendo observado que o amparo legal do brasão podia ser análogo ao da marca, se adiantou em muitos séculos ao destino dessa matéria nos nossos dias, se bem que me custa imaginar alguém dispendendo tempo e dinheiro para tentar registrar um brasão pessoal por esse meio. Penso que a proteção mais efetiva que alguém pode dar às suas armas é usá-las, de modo que ante uma remota usurpação, disponha de provas de que lhe pertencem por direito de uso.

Brasão do Rio Grande do Norte na fachada do Instituto Histórico e Geográfico (IHGRN).
Brasão do Rio Grande do Norte na fachada do Instituto Histórico e Geográfico (IHGRN).

Por outro lado, à "deseraldização" das relações sociais entre as pessoas físicas na Idade Contemporânea corresponde à "heraldização" das pessoas jurídicas de direito público (2). Vivemos cercados por essas armas, desde o brasão imperial, preservado na frontaria de um prédio histórico até a marca da gestão municipal recém-iniciada, com a incorporação do respectivo brasão. Com efeito, nos últimos anos vários estados e municípios brasileiros aprovaram leis que puseram fim à má prática da marca de governo e impuseram a boa prática do símbolo oficial: sai um mandatário, entra outro, este pode até adotar um desenho novo, mas o símbolo trascende e remanesce, tal como deve ser. Quem dera o Congresso Nacional aprovasse algo semelhante para a União e toda a administração pública federal uniformizasse o uso das armas nacionais, nomeadamente em reprodução monocromática.

Marca do governo do Rio Grande do Norte durante a gestão de Robinson Faria (2015-2018).
Marca do governo do Rio Grande do Norte durante a gestão de Robinson Faria (2015-2018).

Marca do governo do Rio Grande do Norte na gestão de Fátima Bezerra (2019-atual).
Marca do governo do Rio Grande do Norte na gestão de Fátima Bezerra (2019-atual).

Há poucos dias, viajei ao Ceará (minha terra natal) e dá gosto ver que o governo do estado e a prefeitura de Fortaleza apõem o respectivo emblema em toda a parte onde se fazem presentes, seja nos muros das escolas, nas latarias dos transportes públicos ou mesmo nas placas de identificação ao longo das rodovias estaduais. Isso é a essência da heráldica, que atravessou séculos e não feneceu, apesar de todas as mudanças sociais: um brasão diz do seu titular "eu estou aqui, isto é propriedade minha". A gente até esquece que o brasão cearense tem uma qualidade heráldica um tanto duvidosa...

Notas:
(1) No Rio Grande do Norte, a Casa de Câmara e Cadeia de Acari, hoje Museu Histórico, o brasão esculpido no tímpano claramente seria o imperial, mas como o prédio foi acabado em 1887, parece que as armas ficaram inacabadas. Desconheço outras reproduções coetâneas das armas imperiais no estado.
(2) Com efeito, os brasões desses entes são protegidos atualmente não só pelas legislações nacionais e subnacionais, mas também por uma convenção internacional, não por coincidência relativa ao registro de marcas: a Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial, cujo Art. 6.º ter. diz que "(1)a)) [o]s países da União acordam em recusar ou invalidar o registro e em impedir, através de medidas adequadas, o uso, sem autorização das autoridades competentes, quer como marcas de fábrica ou de comércio, quer como elementos dessas marcas, de armas, bandeiras e outros emblemas de Estado dos países da União, sinais e timbre oficiais de fiscalização e de garantia por ele adotados, bem como qualquer imitação do ponto de vista heráldico". Tanto o Brasil como Portugal são signatários originais e desenvolveram esse dispositivo nas suas legislações, respectivamente o Art. 191 da Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996, e o Art. 192 do Decreto-Lei n.º 110/2018.

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