06/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL HOLANDÊS: A CONCESSÃO

Tem-se dito que as capitanias sob o domínio holandês tiveram brasões, mas a leitura atenta das fontes primárias dão a entender que não foi bem assim.

Não é fácil estudar os brasões do Brasil holandês. A referência continua a ser o breve artigo Os brasões d'armas do Brasil holandês: 1638, que Alfredo de Carvalho publicou na Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, número 62, volume XI, junho de 1904. Segue-se que há quase 120 anos aqueles que têm abordado a matéria não têm feito mais que repetir o que esse intelectual pernambucano descobriu e publicou. Isso supõe que não deixou lacunas ou ensejos para questões. Apesar disso, tenho enxergado e guardado algumas.

Desenho do brasão do Brasil holandês no frontispício da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647) (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Desenho do brasão do Brasil holandês no frontispício da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647) (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Com efeito, tem-se afirmado que se deram esses brasões às capitanias. Por que, então, o Ceará não recebeu o seu? Além disso, cada uma das vilas pernambucanas — Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoa do Sul — tinha um. Sendo assim, por que não se ordenaram armas diferentes para as cabeças das capitanias, isto é, Olinda, Conceição, Filipeia e Natal? À falta de discussão na literatura técnica, é preciso recorrer às fontes primárias. Há duas. A primeira, já citada por Tristão de Alencar Araripe em Brasões do Brasil (1891), é a Rerum per octennium in Brasilia et alibi nuper gestarum, sub præfectura Illustrissimi Comitis Joannis Mauritii, Nassoviæ etc. comitis, nunc Vesaliæ gubernatoris et equitatus Fœderatorum Belgii Ordinum sub Auriaco ductoris, historia. Trata-se da crônica que o governador Maurício de Nassau encomendou ao polímata Gaspar Barleu (Caspar van Baerle em holandês, latinizado como Caspar Barlæus), publicada em Amsterdã em 1647 e traduzida por Cláudio Brandão em 1940 como História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras partes sob o governo do Ilustríssimo João Maurício, conde de Nassau etc., ora governador de Wesel, tenente-general de cavalaria das Províncias Unidas sob o príncipe de Orange. À página 100, narra-se, pois:

Qui singulis præfecturis suum commentus insigne, ex omnibus uno scuto comprehensis unum fecit, quod Supremo Senatus ad usus esset et terminorum Reipublicæ Brasiliensis index. Supra hoc Fœderati Belgii insigne attollebatur, characterque Societatis Occidentalis ima parte defluebat. Politico Senatui insigne fecere eadem quatuor provinciarum insignia, pari scuto contenta, supra quod spectare erat Virginem Astræam, manu una gladium, altera lancem gerentem, illam scelerum vindicem, hanc mercantium regulam. Pernambucensi curiæ datum insigne virgo defixis in speculum oculis et velut in formæ suæ admirationem rapta, manu arundinem sacchariferam gestans, quo schemate soli pulchritudo proventusque exprimebatur, adscripto civitatis Olindæ nomine. Fuere et aliis Pernambuci curiis, nempe in Igarazu, Serinhaemo, Portu Calvo, Alagois, sua quoque propria insignia. Præfectura Tamaricensis botrum pro insigni ostentabat, quia æque pulchros et succulentos nulla Brasiliæ pars, ac Tamarica insula, ferebat. Parayba sacchareorum panum formas pyramidales præferebat, quod optimi et laudatissimi sacchari nutricula esset, aut quod dedita nostratibus provincia, major illic sacchari et molarum cœperit esse labor et pretium. Provincia Fluminis Grandis cognomine fluvio gaudebat, cujus ripam in imagine premebat struthius, quarum avium maxima hic frequentia. Atque hæc ipsa argento exhibita fuere a sculptoribus Batavis, non ære aut ferro, ne ærugine aut rubigine exederentur monimenta publica.

Em vernáculo:

Para cada governação, ele engenhou o seu brasão e de todos, compreendidos num só escudo, fez um que servisse ao Conselho Supremo e indicasse os limites do domínio brasileiro. Acima dele, elevava-se o brasão das Províncias Unidas e, na parte inferior, destacava-se a divisa da Companhia Ocidental. Para o Conselho Político, os mesmos brasões das quatro províncias, contidos num escudo semelhante, formaram um brasão, acima do qual havia a visão da Virgem Astreia, segurando com uma mão uma espada e com a outra uma balança, aquela vingadora dos crimes, esta regradora dos comerciantes. À câmara de Pernambuco deu-se como brasão uma virgem com os olhos fixos num espelho e como que arrebatada na admiração da sua formosura, segurando com a mão uma cana-de-açúcar; por tal figura exprimia-se a beleza do solo e das colheitas, com o acréscimo do nome da cidade de Olinda. Evidentemente, as outras câmaras de Pernambuco, em Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo, Alagoas, também tiveram os seus próprios brasões. A governação de Itamaracá ostentava por brasão um cacho de uvas, pois nenhuma parte do Brasil os dava tão belos e suculentos quanto a ilha de Itamaracá. A Paraíba apresentava as formas piramidais dos pães de açúcar, porque era produtora de um açúcar muito bom e elogiado ou porque, após a entrega da província aos nossos, o trabalho e o preço do açúcar e dos engenhos começaram a ser maiores ali. A província com a denominação de Rio Grande ufanava-se do seu rio, em cuja margem figurada pisava um avestruz, por ser muito grande aí a abundância de tais aves. Além disso, esses brasões foram fabricados em prata por escultores holandeses, não em bronze ou ferro, de modo que os sinais públicos não fossem carcomidos pelo azebre ou pela ferrugem. (tradução minha)

Creio que o fato de o primeiro artigo citado ter copiado a tradução que o autor do segundo fez contribuiu para que desde então se fizessem leituras pouco ou nada críticas dessa passagem, a qual, ao que me parece, esclarece muito das questões que lancei no começo desta postagem. Ora, Barleu (1) começa o episódio declarando que foi o próprio Maurício de Nassau que criou os brasões "singulis præfecturis". Tristão de Alencar Araripe traduz præfectura como 'capitania' e Cláudio Brandão, como 'província', mas ao relatar a concessão do que se tem interpretado como o brasão do Pernambuco holandês, Barleu emprega o termo curia e acrescenta em seguida que, "evidentemente" (nempe), as demais curiæ pernambucanas tinham os seus próprios brasões: Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoas. Por curia, o cronista refere-se, inequivocamente, às câmaras de escabinos.

Agora o prezado leitor terá entendido por que dediquei a postagem anterior inteira a tecer uma compreensão mínima da conquista holandesa: se considerarmos que esses brasões foram concedidos às câmaras de escabinos, todos os problemas terão acabado! Como expus na dita postagem, esses colégios de magistrados visavam à constituição de uma instância administrativa municipal no Brasil, tanto que, à falta de burgomestres, os escabinos batavo-brasileiros atuavam quase como os vereadores luso-brasileiros. A própria palavra câmara foi emprestada ao domínio português, já que nos Países Baixos a municipalidade tinha diversas denominações, como vroedschap, mas não a de kamer. Para avaliar esta leitura, passemos à outra fonte primária.

No império holandês, os administradores coloniais tinham de se reportar constantemente à companhia de comércio para a qual trabalhavam, ou a das Índias Orientais (VOC) ou a das Ocidentais (WIC). Em particular, o assunto que nos ocupa consta da carta que o governador Maurício de Nassau e os conselheiros Mathias van Ceulen, Johan Ghijselin e Adriaan van der Dussen endereçaram ao Conselho dos XIX, o colégio gestor da WIC, aos 6 de outubro de 1638, no Recife. Atualmente, esse documento está disponível no portal do Nationaal Archief (à página 490 da digitalização). Alfredo de Carvalho dá a tradução seguinte do trecho pertinente no seu artigo:

Havendo as câmaras de justiça [de Cameres van Justitie] solicitado que lhes fossem concedidas armas, com as quais selassem as suas atas e mais papéis, Sua Excelência (o conde de Nassau) se dispôs a organizar algumas armas que, de certo modo, tivessem analogia com a situação de cada capitania [ijder Capitanie] e expressassem algum dos seus característicos.
Assim, deu Sua Excelência primeiramente a cada uma das quatro capitanias [vier Capitanie] as suas armas e reuniu-as depois em um só escudo para constituírem as armas do Supremo Governo do Brasil, tendo acima da coroa as armas dos Estados Gerais da Holanda, com o emblema da Companhia das Índias Ocidentais pendente das mesmas, circundadas de uma grinalda de flores de laranjeiras.
Da mesma forma, as armas do colégio do Conselho Político ou Conselho de Justiça foram constituídas por um escudo contendo as armas das quatro capitanias [vier Capitanies], tendo por timbre uma donzela empunhando a espada e a balança simbólicas da justiça.
A capitania [De Capitanie] de Pernambuco tem uma donzela que admira a própria beleza em um espelho, simbolizando a formosura da terra e a situação e o nome da sua capital, Olinda, e tendo na mão direita uma cana-de-açúcar.
As outras jurisdições [De andere Jurisdicties] de Pernambuco, como Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoas, têm também as suas armas.
A capitania [De Capitania] de Itamaracá tem uns cachos de uvas, porque esta ilha produz as melhores uvas do Brasil.
Paraíba tem seis pães de açúcar, porque ali se fabrica excelente açúcar ou bem porque depois da conquista dos seus engenhos pelo nosso governo é que começou a prosperar.
Rio Grande é simbolizado pelo respectivo rio, tendo à margem um avestruz, de que há muitos ali.
Vossas Excelências queiram examinar estas armas e se dignarem de mandar abri-las em prata, um pouco maiores do que os desenhos que a esta acompanham. Não convém mandar abri-las em ferro, aço ou cobre, porquanto com a ferrugem aqui logo ficariam estragados.

Embora eu não saiba holandês, o acesso ao texto original permitiu-me ler as palavras que pus entre colchetes e revelam o que o latim de Barleu encobre: os holandeses incorporaram não só o vocábulo câmara na administração das conquistas brasileiras, mas também capitania, de modo até desajeitado: adaptada (Capitanie) e não adaptada (Capitania), flexionada (vier Capitanies) e inflexionável (vier Capitanie).

Aí está a fonte do mal-entendido: para os holandeses, o território estava dividido em jurisdições, cada uma competente a um diretor, membro do Conselho Político, depois Conselho de Justiça, e uma câmara de justiça, composta por um número variável de escabinos. Para traçar essas jurisdições, os conquistadores simplesmente as sobrepuseram aos municípios portugueses:

  • Na capitania de Pernambuco, as vilas de Olinda, Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo, Alagoa do Sul e São Francisco;
  • na capitania de Itamaracá, a vila da Conceição;
  • na capitania da Paraíba, a cidade Filipeia;
  • na capitania do Rio Grande, a cidade do Natal.

Assim, esperar-se-ia, por exemplo, que se denominasse câmara de Frederícia (Camera van Frederikstad) aquela à qual competia a jurisdição correspondente ao termo da antiga cidade Filipeia, mas era indiferente dizer jurisdição, câmara ou capitania da Paraíba (Jurisdictie, Camera, Capitanie van Paraiba), porque nessa antiga capitania havia apenas uma câmara de justiça.

Cabe lembrar que a capitania era a jurisdição de um capitão. Assim, quando os holandeses conquistaram o Ceará, o capitão-mor era Bartolomeu de Brito, mas os portugueses não tinha fundado aí nenhuma vila; o único assentamento era o Fortim de São Sebastião, junto à barra do rio Ceará. Por conseguinte, não se instalou aí câmara de escabinos e não há "brasão do Ceará holandês".

Apesar de não ter havido capitanias nem capitães-mores na administração holandesa, é indubitável que, após um centênio de colonização portuguesa, essa divisão já fazia parte da identidade dos colonos, como o provam os fatos de ser chamada de província por Barleu e de que o brasão mesmo do Brasil holandês se compõe da esquarteladura das armas concedidas às câmaras de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande. Além disso, é curioso que essas armas sejam timbradas por um coronel, enquanto as concedidas às câmaras de Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoa do Sul não têm timbre. Isso sugere que, embora não houvesse diferença administrativa entre umas câmaras e outras, os holandeses devem ter julgado que convinha manter na aparência as capitanias, dando maior preeminência aos emblemas das suas câmaras e, no caso de Pernambuco, daquela que lhe servira de cabeça.

Nota:
(1) Creio que a forma mais coerente de se aportuguesar Barlæus seja Barleu, já que o sufixo -æus é o mesmo de europæus, que deu europeu.

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