O brasão colonial de São Luís é tão atrelado ao momento da sua feitura que foi apropriado criar outro e, num caso raro, o moderno superou o antigo.
Não deve ter sido difícil para os artesãos contratados esculpir uma pomba com um ramo de oliveira no bico sobre as portas e a casa de câmara e cadeia de Salvador, como testemunha o historiador Rocha Pita, que citei na postagem de 20/12, pois até uma criança consegue desenhar figuras tão singelas. Já o brasão colonial de São Luís, nem o escultor mais habilidoso saberia reproduzi-lo sem que lhe fosse fornecido um modelo. O próprio José Wasth Rodrigues, ao ilustrar Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro, errou ao partir o escudete da destra não com as três flores de lis de França moderno e as armas dos Estados Gerais das Províncias Unidas, mas com o semeado de França antigo e as armas do Reino dos Países Baixos, que se constituiu em 1815.
A isso soma-se a confissão do Pe. José de Morais na citação da postagem anterior: como não achou reprodução do brasão sobre o qual pretendia discorrer, teve de apelar ao procurador-geral das missões do Grão-Pará e Maranhão em Lisboa para buscar aí alguma notícia sobre ele. E acrescenta que, ainda assim, tal tarefa não foi fácil. Tudo sugere que essas armas foram pouco usadas ou mesmo nunca se usaram. De fato, a Coroa manteve-se tão alheia à heráldica municipal durante o Antigo Regime que essa alienação não só atrofiou o desenvolvimento dessa dimensão da armaria portuguesa, mas também fez com que vários concelhos, em meio à carência de símbolos, se apropriassem das armas reais. Segundo Miguel Metelo de Seixas na sua tese de doutorado (2011):
É possível que pela apropriação das insígnias régias os municípios pretendessem exprimir a relação privilegiada que mantinham com a Coroa, de cuja autoridade relevavam diretamente. Aplicando a mesma lógica aos concelhos que dependiam de determinado poder senhorial, verifica-se que estes adotaram por vezes as insígnias dos respetivos senhores, quer se tratasse de armas de família, de ordens militares, de ordens religiosas ou mesmo de empresas. De resto, era comum a figuração dos sinais identificativos do rei ou dos senhores nos principais símbolos da administração e da justiça locais: o pelourinho e a carta de foral. A transposição dessas insígnias para outras manifestações, como estandartes, selos e pedras de armas, pareceria natural. Mesmo que nessa passagem o sentido original da presença das insígnias régias ou senhoriais sofresse uma transmutação de peso: no pelourinho como na carta de foral, elas representavam a autoridade em cujo nome se exercia a justiça ou se promulgava o documento, ao passo que as demais manifestações deveriam ser propriamente identificativas do concelho.
Pessoalmente, hipotetizo que esta era a situação geral da América portuguesa em matéria de heráldica municipal. É certo que ainda estamos na metade desta série, mas os testemunhos que se contradizem quanto à origem de certo brasão, ainda que os coetâneos a acreditassem ao rei ou a um oficial régio, como no caso de Salvador; a falta de testemunhos coetâneos, como no caso do Rio de Janeiro; um testemunho que confessa pouco ou nulo uso das armas que noticia, como no caso de São Luís; e, acrescento agora, o testemunho da câmara de São Paulo, que ostentava as armas reais no seu estandarte e preservou um exemplar do século XVIII, guardado hoje no Museu Paulista; tudo me faz, por enquanto, tender a tal hipótese.
Proposta de brasão para São Luís em Armorial maranhense, de Antônio Lopes (Geografia e história, 1926). |
Seja como for, não convinha a São Luís manter as suas armas coloniais, pois se tinham muito sentido sob o domínio português, no Brasil independente dizer e mostrar que o direito de Portugal pesou mais que as forças da França e da Holanda tem pouco sentido como símbolo. Esse razoamento presidiu à criação das armas hodiernas dessa cidade graças ao artigo Armorial maranhense, que Antônio Lopes, professor, jornalista e inspetor-geral da Instrução Pública, deu a lume no primeiro número (1926) da Geografia e história, a revista do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, do qual ele mesmo era sócio fundador:
Qual o brasão a adotar para São Luís? As suas armas antigas: eis a mais pronta resposta, que representa uma economia de esforço. Complicadas ou não, são as que lhe deram, há séculos, os seus habitantes.
Uma objeção pode surgir ao alvitre, solidamente baseada no fato de não ser o antigo escudo tradição consagrada pelo uso, pois, como declara José de Morais, nunca o usaram. Para estar de acordo com esta maneira de pensar, cumpre adotar novo brasão.
Desde que se começa a cogitar de novas armas aparece, porém, a dificuldade de aproveitar os símbolos das antigas: coroa, espada, balança, armas de Holanda, de Portugal, lises de França, letras, epígrafe. Basta a enumeração para desanimar.
Busquem-se, então, novos elementos, resolvendo em primeiro lugar a questão da forma.
Não sendo aconselhável a do brasão estadual, pode lançar-se mão de outra, que permita representar nas armas da cidade a posição da ilha, em que está situada, em relação ao território do Estado, inscrevendo num escudo, por exemplo, francês, antigo ou moderno, em chefe, um escudete.
Traçada a forma do escudo, seria de bom aviso orná-la descrevendo os fatos dominantes da história da cidade: fundação; restauração definitiva e consequente integração na unidade brasileira; lutas e sacrifícios do povo pelas suas garantias, representadas no episódio do Bequimão, o mais notável da vida municipal; irradiação intelectual numa fase da vida nacional.
Seria tudo isso representado colocando-se nas armas: no escudete, parte superior, em ouro, as três naus da expedição francesa com flores de lis nas velas, e na parte inferior, as quinas de Portugal, em azul; no escudo, algo que afirme a democrática aspiração de liberdade (a simples palavras libertas ou a data MDCLXXXV do desenlace da luta popular contra o monopólio) e o valor da inteligência (três abelhas de ouro, que são também, em heráldica, os símbolos da esperança, ou a figura de Palas Ateneia, protetora de Atenas, ou ainda melhor sete estrelas de ouro representando as figuras primaciais do movimento conhecido na história da literatura brasileira pela denominação Grupo Maranhense, a saber: Gonçalves Dias, João Lisboa, Odorico Mendes, Gomes de Sousa, Sotero dos Reis, Antônio Henriques Leal e Belarmino de Matos).
Com efeito, em abril do mesmo ano a câmara de São Luís passara uma lei, a de número 362, autorizando a intendência a adotar um brasão para o município, o que esta levou a cabo por decreto em 31 de dezembro. Não encontro os textos dessas normas, mas a comparação do desenho que acompanha a proposta de Antônio Lopes com o que a prefeitura usa deixa ver poucos ajustes: as estrelas foram postas como o aglomerado das Plêiades, a data foi movida do campo para um listel e as naves francesas deram lugar a flores de lis.
Brasão de São Luís (desenho usado pela prefeitura, disponível na Wikimedia Commons). |
Na verdade, digo que a prefeitura usa esse desenho (daqueles que se já foram bonitos um dia, estão muito estragados pelas redigitalizações) porque figura na bandeira municipal. O executivo ludovicense ainda é adepto da má prática da marca de gestão, ao passo que o legislativo converteu as armas municipais numa marca de forma tão infeliz que nem vale a pena comentar os evidentes equívocos. Tudo isso é uma pena, porque essas armas superam as suas antecessoras coloniais sob qualquer aspecto e merecem uma boa nota no conjunto da armaria nacional.
Proposta de adequação para o brasão de São Luís: de azul com sete estrelas de prata, postas como as Plêiades, e um escudete partido de França moderno e Portugal antigo, firmado em chefe. |
Assim, atrevo-me a acabar esta postagem fazendo uma proposta de adequação para o brasão de São Luís: de azul com sete estrelas de prata, postas como as Plêiades, e um escudete partido de França moderno e Portugal antigo, firmado em chefe. Embora a troca das naves pelas flores de lis tenha sido bastante interessante, o campo de verde e o alinhamento em barra ficaram muito estranhos. Entendo que o escudete queira evocar conjuntamente a França Equinocial e a conquista portuguesa, então o expediente mais adequado da perspectiva heráldica é parti-lo, o primeiro de azul com três flores de lis de ouro, que é de França moderno (em contraposição ao semeado das mesmas lises, que é de França antigo), e o segundo de prata com cinco escudetes de azul, carregados de cinco besantes do campo e postos em cruz, que é de Portugal antigo (em contraposição a isto mesmo com a bordadura de vermelho, carregada de sete castelos de ouro, que é de Portugal moderno). Que a cor do primeiro partido do escudete repita a do campo não é defeituoso, presumindo que por isto se tenha escolhido o verde.
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