26/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: SÃO LUÍS (I)

O brasão colonial de São Luís testemunha uma heráldica distante da clássica, em que mais do que identificador o brasão é uma mensagem sobre o poder.

Tanto o brasão colonial de São Luís como o de Belém estão descritos na mesma crônica, a História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará, escrita pelo padre José de Morais em 1759 e editada pelo jurista Cândido Mendes de Almeida em 1860. Faz todo o sentido.

Primeiro, faz muito sentido que uma mesma obra refira aos brasões dessas duas cidades porque ambas encabeçaram as circunscrições que abrangeram a porção setentrional da América portuguesa. O estado do Maranhão foi criado em 1621 e estendia-se do cabo de São Roque para cima. Em 1655, foi renomeado como estado do Maranhão e Grão-Pará e, em virtude da vinculação da capitania do Ceará ao estado do Brasil pela mesma época, o limite foi deslocado até o delta do Parnaíba. Em 1751, com a transferência da capital de São Luís para Belém, inverteu-se a denominação: estado do Grão-Pará e Maranhão. Em 1772, o governo-geral de São Luís foi restabelecido pela cisão do território em dois estados: o do Maranhão e Piauí a leste e o do Grão-Pará e Rio Negro a oeste. O primeiro chegou ao fim em 1811, quando o governo do Piauí se tornou autônomo, mas o segundo persistiu até a criação do reino do Brasil em 1815, formalmente até a promulgação da Constituição portuguesa de 1822.

Segundo, faz sentido que servindo de sede a um governo-geral e de sé a um bispado, tenha cada uma dessas cidades assumido um dos poucos brasões do Brasil colonial. Na verdade, Brasil colonial é mera convenção historiográfica, pois o Maranhão e o Grão-Pará não tinham nenhuma ligação administrativa com o estado do Brasil. As próprias dioceses de São Luís (1677) e Belém (1720) não foram sufragâneas da arquidiocese de Salvador, mas sim da arquidiocese de Lisboa, depois patriarcado, até 1828. Fazendo mais uma comparação com a América espanhola, assim como os vice-reis da Nova Espanha, do Peru, da Nova Granada e do Rio da Prata respondiam diretamente ao Conselho das Índias, os governadores-gerais do Maranhão e do Grão-Pará faziam-no à Secretaria de Estado, depois à dos Negócios da Marinha e Ultramar, assim como o do Brasil. O que difere a América portuguesa é a sua unificação e elevação a reino pouco menos de sete anos antes da sua separação e independência.

Com efeito, a conquista do Maranhão seguiu diretamente os acontecimentos que garantiram o domínio português desde Sergipe até o Rio Grande: a eliminação do corso francês e a sujeição da resistência indígena, às quais venho referindo desde a postagem de 23/04 e ao longo da série sobre os brasões do Brasil holandês. Assim, como os portugueses só tinham assegurado a costa até Natal ao findar o século XVI, ao norte os franceses continuaram as suas atividades com a amizade de certos povos tupis de tal modo que, enquanto a presença portuguesa no Ceará mal se sustentava (leia-se a postagem de 22/11), empreenderam o estabelecimento de uma colônia — a França Equinocial — no lugar onde já havia uma feitoria desde 1594. Sob o comando de Daniel de la Touche, senhor de La Ravardière, levantaram aí uma fortaleza, que nomearam São Luís (Saint-Louis), onde hoje fica o Palácio dos Leões, sede do governo maranhense, e aos 8 de setembro de 1612 chantaram uma cruz para marcar a soberania de Sua Majestade Cristianíssima.

No entanto, assim como a França Antártica, o empreendimento topou com uma forte reação desde cedo, já em outubro de 1614. A expedição foi capitaneada por Jerônimo de Albuquerque, o mesmo que fundara Natal em 1599, ante quem em novembro de 1615 La Ravardière capitulou. Embora se venha comemorando a fundação de São Luís em 8 de setembro desde o começo do século passado, o município constituiu-se, a rigor, em 1619, quando se instalou a sua câmara. Conservou o nome da fortaleza francesa não mais em homenagem a Luís XIII, mas a Luís IX (1214-70), canonizado em 1297 e seu padroeiro.

Não se sabe a data em que se instalou a câmara de São Luís porque a documentação primitiva se perdeu durante a invasão holandesa. Os holandeses tomaram essa cidade em novembro de 1641 sob o comando do almirante Jan Lichthart, mas o seu domínio foi tão breve quanto o francês, pois enfrentaram tal oposição dos colonos que em fevereiro de 1644, portanto mais de um ano antes da Insurreição Pernambucana, tiveram de evacuar a ilha.

Brasão colonial de São Luís.
Brasão colonial de São Luís.

O brasão colonial de São Luís é, precisamente, uma apologia à vitória portuguesa sobre os invasores francês e holandês. Com efeito, a padroeira da cidade é Nossa Senhora da Vitória. Eis a descrição dessas armas segundo o citado Pe. José de Morais (p. 182-183):

Quero rematar este livro com a breve notícia das armas da cidade de São Luís do Maranhão, a quem a injúria do que devia ser o maior cuidado de seus moradores deu não pequeno trabalho ao nosso padre procurador-geral em Corte, Bento da Fonseca, para lhas descobrir em seus livros, pelas não terem primeiro gravadas nos mármores para eterna lembrança dos vindouros.
São, pois, as armas próprias desta cidade, cabeça em outro tempo do estado, um escudo coroado, no campo do qual se vê um braço armado de uma espada, de cuja mão, como de Astreia, pendem umas balanças a que servem de conchas dous escudos menores. Em um, que pesa menos, se vê as flores de lis e armas de Holanda, com estas letras: Vis; no outro, que pesa mais, se vê as armas de Portugal com as mesmas letras, Jus, e por baixo logo a epígrafe que diz Præponderat, porque pesou mais o jus, ou a justiça das armas de Portugal, que o vis, ou força das de França e Holanda, com imortal desempenho do valor português e não menor glória da valentia daqueles ilustres moradores do Maranhão.

De entrada, o leitor atento terá percebido que, sendo único esse testemunho, não é possível reproduzir essas armas sem tomar uma dose grande de liberdade poética, porque, como é característico desse gênero textual, o autor se cinge a descrever as figuras em linguagem chã, negligenciando pormenores como a disposição e os esmaltes. Assim, no máximo podem-se supor algumas coisas:

  • Como ordinariamente tudo se volta para a destra, pode-se supor que o braço fique movente do flanco sinistro;
  • mas para preencher todo o campo, pode-se supor que a espada fique levantada;
  • se as armas da França e da Holanda dividem o mesmo escudete, pode-se supor que este esteja partido dessas armas, ou melhor, das armas reais francesas e daquelas dos Estados Gerais das Províncias Unidas, tal como se ordenavam no século XVII;
  • levando em conta as cores dos escudetes, pode-se supor que o campo seja de metal (prata?);
  • e levando em conta o gosto da época, pode-se supor que o braço, a espada e a balança tenham as suas cores naturais, isto é, carnação, a cor do aço e a do bronze ou latão;
  • as letras podem ter qualquer cor, mas o negro é, sem dúvida, a menos marcada.

A propósito, a oração latina que as palavras formam contém um erro: o verbo præponderare quer dizer 'pesar mais' e é regido pelo caso ablativo. Como vis é o nominativo singular, o certo é Vi jus præponderat, ou seja, 'O direito pesa mais que a força'. Em suma, o meu "brasonamento interpretativo" fica assim: de prata com um braço movente do flanco sinistro, segurando uma espada levantada e uma balança, tudo ao natural; à balança servem de pratos dois escudetes, o da destra, que pesa menos, partido de França moderno e das armas das Províncias Unidas, e o da sinistra, que pesa mais, carregado das armas de Portugal; o escudete da destra encima a palavra Vi, o da sinistra a palavra Jus e o todo a palavra Præponderat, todas em letras de negro; timbre: coroa real antiga. Em tempo, timbrei o escudo com coroa porque assim consta na descrição do Pe. José de Morais ("um escudo coroado"), real porque a titular das armas é uma cidade e antiga porque é raríssimo o uso da coroa fechada na heráldica municipal portuguesa do Antigo Regime.

Como esta postagem já se alongou, desdobrarei o tópico em dois para, na próxima, tratar das armas ludovicenses hodiernas.

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