O estudo da heráldica municipal brasileira torna-se em certos casos quase arqueológico.
À medida que avancei do emblema de 1896 para as armas hodiernas do Rio de Janeiro, deparei-me com tal vacuidade documental que tive de parar a escrita, voltar à pesquisa e montar um novo quebra-cabeças, cuja solução merece postagem à parte.
Retomando o fio da meada, os emblemas que Clóvis Ribeiro em Brasões e bandeiras do Brasil (1933) toma por brasões do Rio em 1826, 1858 e 1893 podem ser meras combinações da divisa concelhia — o molho de setas — com a figura principal das armas imperiais — a esfera armilar —, de modo que à pergunta "por que a municipalidade ficou em dúvida?", ensejada pelo testemunho de Eduardo Prado, citado na postagem anterior, se responderia "porque em 1896 ela debateu e levou a cabo a oficialização das armas municipais". E como estas não apresentavam sequer um escudo (a não ser que, com boa vontade, se aceite a vela de navio como campo), segue-se que até 1963 o Rio não possuiu verdadeiramente um brasão.
Cabe lembrar que em 1763 essa cidade sucedeu a Salvador como cabeça do estado do Brasil, de 1808 a 1821 serviu de sede à corte da monarquia portuguesa e desde 1822 até 1960 foi a capital nacional, primeiro na condição de município neutro (1834-91), depois distrito federal. Quando este foi transferido para Brasília, o artigo 4.º das disposições transitórias da Constituição de 1946 previa compensar a antiga capital convertendo-a numa cidade-estado: o estado da Guanabara. No entanto, à ditadura militar imperante em 1974 conveio fundir a partir do ano seguinte a Guanabara ao estado do Rio, movendo a capital deste de Niterói para a cidade do Rio.
Várias fontes disponíveis na Internet, dentre as quais um trabalho de Isabella Perrotta (2013), expõem, verbalmente ou por imagens, que o emblema de 1896 perdurou até 1957. Para este ano, dá-se um brasão idêntico ao vigente. Segue-se então que a única particularidade das armas cariocas durante a existência do estado da Guanabara seria a estrela de prata sobreposta à coroa mural. O problema é que em parte alguma se acha ato legal ou infralegal referente a essa versão de 1957. Achei, isto sim, duas peças que, solvendo, ao que parece, o quebra-cabeças, sugerem ter havido, mais uma vez, prejulgamento ante a insuficiência documental.
Brasão do estado da Guanabara (cartão vendido pelo leiloeiro Alberto Lopes em 2020). |
A primeira dessas peças é um "plástico" vendido no ano passado pelo leiloeiro Alberto Lopes. Nele vê-se o emblema de 1896 com o nome Guanabara. A não ser que seja um baita erro, demonstra que tal emblema continuou a ser usado pelo novo estado até 1963. Nesse ano, sim, passou-se uma lei, a de número 384, de 23 de outubro, que "atualiza o brasão de armas do Estado da Guanabara". Mesmo sem constar em nenhuma base ou compilação online, é possível topar com uma citação dela aqui e ali. Por sorte, o mesmo leiloeiro, também no ano passado, vendeu um cartão que traz a reprodução do brasão na frente e o texto da lei no verso, cujo artigo primeiro dispõe o seguinte:
O atual brasão de armas do Estado da Guanabara passará a ter a seguinte composição heráldica: escudo português, em campo azul, cor simbólica da lealdade, esfera armilar manuelina, combinada com as três setas que supliciaram São Sebastião, padroeiro da Cidade, tudo de ouro, tendo ao centro o barrete frígio, símbolo do regime republicano. Justificando a cidade capital, encimando o escudo, a coroa mural de cinco torres de ouro, tendo sobre a torre central uma estrela de prata, pousada sobre o arco inferior da base da coroa, símbolo de unidade federativa. Como suportes, dois golfinhos de prata, um à destra, outro à sinistra, simbolizando cidade marítima. O da destra tem um ramo de louro e o da sinistra, um ramo de carvalho, representando, respectivamente, a vitória e a força.
Pessoalmente, brasonaria assim: de azul com uma esfera armilar de ouro, atravessada por três flechas enfeixadas do mesmo, e um barrete frígio de vermelho, brocante sobre a esfera; timbre: coroa mural de cinco torres de ouro; suportes: dois golfinhos de prata, o da destra sobreposto a um ramo de louro e o da sinistra, a um ramo de carvalho. Não obstante, apesar de misturar brasonamento e comentário simbológico, é notável que um conhecimento suficiente da armaria presidiu à redação da dita lei. A legenda do desenho na frente do cartão reforça essa impressão:
BRASÃO DO ESTADO DA GUANABARA
Atualizado pela Lei n.º 384, de 23 de outubro de 1963, promulgada pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembleia Legislativa, Deputado Raul Brunini, em virtude do projeto do Senhor Deputado General Frederico Trotta, membro titular do Instituto Histórico e Geográfico da Cidade do Rio de Janeiro.
Desenho de Alberto Lima.
Parece inverossímil que o concurso da iniciativa de um deputado intelectual com o serviço de um heraldista se tenha cingido ao acréscimo de uma estrela. O conjunto dos dados mostra ser mais razoável supor que a própria criação do estado ensejou a "atualização" do emblema de 1896, a qual, sob a perícia de Alberto Lima, está mais para correção ou mesmo criação de armas novas. De fato, ele é o autor do desenho oficial, registrado sob o código CP/AL/CX14/P04 no catálogo da sua coleção particular, guardada no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Mas nem tudo está solvido, pois a gente guarda a surpresa maior para o final. Após a fusão dos estados, a cidade do Rio, novamente município, depôs a estrela das armas da Guanabara e continuou a usá-las, até hoje, sem jamais regularizar essa modificação nem a titularidade! Em 2004, o vereador Edson Santos propôs um projeto de lei, o de número 2.178, para remediar essa situação, mas não prosperou. Isso mostra a que ponto chega o desleixo do poder público brasileiro nestas questões.
Marca atual da prefeitura do Rio de Janeiro (imagem disponível no portal da instituição). |
Ora, do que adianta honrar o brasão redesenhando-o cada vez que uma gestão recém-eleita adota uma identidade visual nova se uma busca por uma mera resenha com uma reprodução de estilo convencional em fonte da prefeitura ou da câmara municipal dá em coisa alguma? Com efeito, no caso das armas cariocas as reproduções desse estilo que se encontram por aí e na única fonte oficial deixam ver ainda o desenho original de Alberto Lima, cada vez mais enfeado por sucessivas digitalizações.
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