18/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL HOLANDÊS: SERGIPE?

Oito câmaras de escabinos, oito brasões, mas restam algumas lacunas em torno de um nono brasão e uma câmara não armoriada.

Oito brasões menciona a carta do governo do Brasil holandês ao colégio gestor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) em 1638 e oito estão entre as gravuras dos desenhos que acompanharam esse documento, atribuídas a H. Breckenveld; igualmente, oito ornam as paisagens e os mapas que ilustram a Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647). Isso sem contar a esquarteladura das armas concedidas às câmaras de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, que compõe os brasões do Supremo Governo e do Conselho de Justiça.

Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu, 1647 (exemplar do Rijksmuseum).
Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu, 1647 (exemplar do Rijksmuseum).

No entanto, o frontispício da obra de Barleu ostenta um nono brasão, que não aparece em nenhum outro lugar: de ... com um sol de ..., acompanhado em ponta de três coroas antigas de ..., postas em roqueteOs exemplares coloridos da Rerum per octennium in Brasilia... apresentam os esmaltes seguintes:

  • Biblioteca Nacional: de vermelho com um sol de ouro, acompanhado em ponta de três coroas antigas do mesmo, postas em roquete;
  • Colección Patricia Phelps de Cisneros: de azul com um sol de ouro, acompanhado em ponta de três coroas antigas do mesmo, postas em roquete;
  • Oliveira Lima Library: de azul com um sol de ouro, acompanhado em ponta de três coroas antigas do mesmo, postas em roquete.

Por sorte, o próprio cronista descreve esse belo conjunto visual num poema adjunto, que darei na íntegra, porque acaba por fechar magnificamente esta série de postagens.

Laurea quæ medios claudit suprema leones
Rectoris voluit sic meminisse sui.
Hinc domitis fulget muralis adorea portis,
Hinc sua navalis rostra coronat honos.
Ipsa suos spectat Pernambucensis ocellos
Virgo et arundiferam tollit amœna manum.
Proxima nectareos fecunda Tamarica botros
Exhibet et proprii munera pulchra soli.
Quam juxta Parayba suis dulcissima formis
Induit et populis sacchara grata facit.
At Grandis Fluvii vagus accola struthio talis
Ambulat et ferri pabula falsa putat.
Sic Novus excellit Batavis insignibus Orbis
Mauritioque ferax sub duce vernat ager.
Quas gentes distinguit humus dux asserit unus
Occiduasque secat martia navis aquas.
Mercantes notat illa suos pelagique potentes.
Armaque sol coram, sed violenta, stupet.
Tu, Seregippa, tuis phœbæos præficis ignes
Sedibus et dici regia sola cupis.
Sunt cancri, Garazuna, tui. Tibi culmina, Portus
Calve, placent; illis stas, metuende, jugis.
Squamigerum genus Allagois se immergit habenis
Inque Serinhaemum belliger hinnit equus.
Anchora permixtos dentes infigit arenæ
Regnaque vult nobis hic diuturna dari.
Arguit occasum pyxis, nec respicit ortum.
Cur? Quia distinctis regnat uterque plagis.
At quam fama vides lituos inflare tubasque
Non vim, sed speciem tanta loquentis habet.

Em prosa vernácula:

A coroa de louros que mais acima encerra os leões do meio quis assim lembrar o seu governante (1). De um lado, fulge a mural, recompensa pelas portas sujeitadas; do outro, a honra naval coroa os seus esporões. A virgem pernambucana fita os seus olhinhos e, encantada, traz uma cana na mão. Próxima, a fecunda Itamaracá exibe os seus nectáreos racimos e os belos dons do próprio solo. Junto a ela, a Paraíba põe os dulcíssimos açúcares nas suas fôrmas e torna-os agradáveis aos povos. O tal avestruz, errante vizinho do Rio Grande, anda achando que lhe são dados falsos alimentos. Assim se ufana o Novo Mundo com os brasões holandeses e sob o comandante Maurício viceja o feraz campo. As gentes que a terra distingue defende um só comandante e a márcia nave corta as águas poentes (2). Ela afama os mercantes e os poderosos do pélago. E em face das armas, mesmo violentas, o sol se pasma. Tu, Sergipe, pões os fogos febeus à frente das tuas moradas e ansias ser chamado régio. Os caranguejos, Igarassu, são teus. A ti, Porto Calvo, aprazem os cumes; naqueles picos estás, ó metuendo. O escamígero gênero mergulha nas Alagoas com as suas fibras e contra Sirinhaém rincha o belígero corcel. A âncora finca os dentes emaranhados na areia e quer que diuturnos reinos nos sejam dados aí. A bússola acusa o poente e não olha para o levante. Por quê? Porque cada uma das duas reina em distintas plagas (3). A fama, que vês soprar as trombetas e tubas, retém não a força, mas o caráter de quem diz tantas grandezas. (tradução minha)

Portanto, não resta dúvida de que Barleu atribui o brasão em questão a Sergipe, mas há várias lacunas nessa atribuição. Primeiro, quem ordenou essas armas? Como não consta da documentação escrita, é razoável supor que Frans Post, quem desenhou os brasões para a Rerum per octennium in Brasilia..., o tenha engenhado. Nesse caso, mais que um emblema oficial seria mero invento artístico.

Detalhe do frontispício da Rerum per octennium in Brasilia... em que se observa o brasão atribuído a Sergipe.
Detalhe do frontispício da Rerum per octennium in Brasilia... em que se observa o brasão atribuído a Sergipe.

Depois, sabendo-se que os holandeses converteram os termos das câmaras de vereadores em jurisdições de câmaras de escabinos e foi a elas que o governador Maurício de Nassau concedeu armas, a qual pertenceu o brasão em tela? Ora, o próprio Barleu narra o seguinte sobre Sergipe:

Todo o território até hoje conquistado sob os auspícios e pelas armas da Companhia das Índias Ocidentais divide-se em seis províncias: Sergipe d'el-Rei, Pernambuco, Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará. A primeira e as últimas são desertas; as demais são cultivadas e mais habitadas pelos holandeses. A expedição do conselheiro Ghijselin e de Sigismundo Schkoppe contra o Sergipe, outrora muito colonizado, o despovoou. Amedrontados pelas nossas armas, refugiaram-se os colonos na Bahia de Todos os Santos. Por direito de guerra, devastaram os nossos o Sergipe, para que os baianos não fossem ali abastecer-se. (tradução de Cláudio Brandão, 1940)

Ora, assim como não há "brasão do Ceará holandês" porque a conquista portuguesa antes da invasão holandesa não avançara além das fortificações junto à barra do rio Ceará, não faz sentido haver "brasão do Sergipe holandês", porque essa região ficou arrasada durante o domínio holandês, uma espécie de terra de ninguém, que servia de tampão contra expedições despachadas da Bahia. De fato, no mapa de Sergipe contido na própria Rerum per octennium in Brasilia... não aparece brasão algum.

Com efeito, Cristóvão de Barros, provedor-mor da Fazenda e governador-geral do Brasil interino, assenhoreou a costa do rio Real ao São Francisco em dezembro de 1589, precisamente para assegurar uma passagem entre a Bahia e Pernambuco segura da resistência indígena e do corso francês. Aos 11 de abril de 1590 fundou a vila de São Cristóvão junto à barra do rio Sergipe, transferida para um outeiro perto do estuário do Vaza-Barris cinco anos depois. Em 1591, o rei Filipe I criou a capitania de Sergipe, abrangendo esse território. Não era donataria, mas uma capitania real, daí dita Sergipe d'el-Rei, o que faz do sol (o astro-rei) com as coroas armas falantes.

Além disso, duas câmaras de escabinos não são mencionadas na documentação relativa aos brasões do Brasil holandês. Em 1642, o governo colonial instalou uma dessas câmaras no povoado do Cabo, desmembrando essa freguesia e as de Muribeca e Ipojuca para constituir a sua jurisdição, antes todas sob a jurisdição de Maurícia (dita simplesmente de Pernambuco). Como esses brasões foram criados "em lote" pouco menos de quatro anos antes, as datas explicam por que essa câmara não teve um.

Um tanto diferente é o caso da jurisdição de São Francisco, pois já era vila sob o domínio português. Na verdade, uma das vilas, juntamente com Porto Calvo e Alagoa do Sul, que Duarte de Albuquerque, o donatário de Pernambuco, erigiu em 1636, à medida que a conquista holandesa o fazia recuar para o sul da capitania. Tratava-se da povoação que surgira da feitoria fundada por Duarte Coelho, o segundo, perto da foz do São Francisco em 1560, já freguesia em 1631, hoje Penedo, nome preferido pelos holandeses, que evitavam os hagiônimos. Segundo Fernanda Trindade Luciani na sua dissertação de mestrado, a câmara de Penedo foi instalada em novembro de 1639, portanto posterior à criação dos brasões, que se deu em outubro do ano anterior. Efetivamente, a gravura n.º 17 da obra de Barleu, que mostra o Forte Maurício, edificado aí pelos holandeses, não contém brasão.

Resta, ainda, uma hipótese a aventar. Ora, ao relatar a conquista dessa vila pelo governador Maurício de Nassau em 1637, Barleu diz que ele mandou os colonos da margem meridional passarem com todo o seu gado para a setentrional. Ou seja, aqueles que não se refugiaram na Bahia atravessaram o rio para a jurisdição de Penedo. Presumindo que o brasão atribuído a Sergipe não tenha sido inventado apenas para incrementar o conjunto alegórico que fronteia a Rerum per octennium in Brasilia..., não é insensato supor que pertenceu, na verdade, à câmara de Penedo. Trocando em miúdos:

  • A titular das armas seria uma câmara de justiça;
  • essa titularidade completaria o quadro dos brasões do Brasil holandês: o termo de cada cidade e vila foi convertido na jurisdição de uma câmara de justiça, à qual se concederam armas;
  • foi na jurisdição dessa câmara que os colonos de Sergipe que aceitaram o domínio holandês se estabeleceram. 

Não tenho nenhuma prova, mas sem dúvida o raciocínio preenche as lacunas do suposto brasão do Sergipe holandês.

Notas:
(1) Referência às armas da Casa de Nassau-Siegen, cujo chefe era o conde João Maurício: esquartelado, o primeiro de azul, semeado de bilhetas de ouro, com um leão do mesmo, armado e lampassado de vermelho, brocante (que é de Nassau); o segundo de ouro com um leopardo aleonado de vermelho, armado, lampassado e coroado de azul (que é de Katzenelnbogen); o terceiro de vermelho com uma faixa de prata (que é de Vianden); o quarto de vermelho com dois leopardos de ouro, armados e lampassados de azul (que é de Dietz). 
(2) Referência à divisa da Companhia das Índias Ocidentais: um navio de velas enfunadas vogando no mar.
(3) Referência às duas companhias holandesas de comércio, das Índias Orientais (VOC) e das Índias Ocidentais (WIC).

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