Armas de alguns senhores potentados e dos sete eleitores do Império.
Do Tesouro de nobreza (1675):
Comentário:
Antes do primeiro trabalho heráldico que determinou, o rei Dom Manuel I mandou os seus oficiais de armas às principais cortes europeias para se instruírem na matéria (cf. a postagem de 27/04/21). É por isso que ao folhear o Livro do Armeiro-Mor, a ordem é impecável: espelha fielmente o modo como se concebia o mundo. Assim, começa-se pelos Nove da Fama, que encarnam os valores da cavalaria, tão antigos quanto perenes; em seguida, os reis de terras próximas e distantes; depois, o imperador, como dignitário secular supremo, e os seus eleitores; logo abaixo em dignidade, o rei da França e os seus pares; enfim, o senhor do reino que o armorial abarca com sua esposa e seus filhos, os titulares e os chefes das casas nobres, segundo as suas precedências.
Ao contrário, estes dois capítulos do Tesouro atestam a que ponto decaíra o ofício de armas no tempo de Francisco Coelho. Mesmo reconhecendo que a elaboração deste armorial reagia contra tal decadência, é impressionante que ao rei de armas Índia tenham faltado imagens de brasões tão difusos num momento em que já circulava boa quantidade de livros sobre a matéria, pois só uma recepção indireta, mediante descrições ambíguas ou insuficientes, explica tanta divergência, inclusive nos topônimos: Quênia por Guiena, Beanvis por Beauvais, Naiaut por Noyon, Clelon por Châlons, Beuburg por Neuburg. Em particular, esse grau de equivocação parece incompatível com a leitura de um texto impresso.
Outro indício de que Coelho não manuseou uma fonte primária é o anacronismo da referência ao exílio de Frederico V, conde palatino do Reno, e a confusão com a Baviera e o Palatinado-Neuburg, estados igualmente governados por ramos da Casa de Wittelsbach. Com efeito, a Paz de Vestfália (1648) confirmou o duque Maximiliano da Baviera no lugar do eleitor palatino, mas restaurou o Palatinado na pessoa de Carlos Luís, filho de Frederico V, e criou-lhe um oitavo eleitorado, enquanto o conde palatino de Neuburg era Wolfgang Guilherme.
É verdade que João do Cró comete vários erros no Livro do Armeiro-Mor, mas todos são mais compreensíveis para o início do século XVI, quando havia menos fontes e predominavam os manuscritos. De todo modo, esse armorial dá com bastante precisão os brasões dos eleitores do Império e dos pares laicos de França. O próprio Coelho poderia tê-lo consultado, já que seguia sob a guarda do armeiro-mor do Reino. Isso me faz suspeitar que até mesmo a lembrança dessa obra se perdera dentro do Juízo e Cartório da Nobreza. (1)
O preenchimento destes três fólios leva-me, ainda, a duvidar de que Coelho soubesse bem como fazer um armorial universal, dado que antepõe os pares de França aos eleitores do Império e completa o fólio 8 de modo que lhes ficam pospostos o próprio imperador e grandes reis. Essas coisas sugerem que, à falta de um plano correto, o uso do pergaminho preponderou à hierarquia.
Apesar de tudo isto, como somente os brasões das Índias são imaginários, vale a pena examinar um por um. Primeiro, os doze pares de França:
1. O duque da Borgonha trazia bandado de ouro e azul de seis peças e uma bordadura vermelha. Portanto, Coelho reproduziu bem estas armas.
2. O duque da Normandia trazia dois leopardos de ouro, um sobre o outro, em campo vermelho. Mas aqui não se sabe se são leões ou leopardos aleonados.
3. O duque da Aquitânia (ou Guiana ou Guiena) trazia um leopardo de ouro em campo vermelho. Mas aqui também não se sabe se é um leão ou leopardo aleonado.
4. O arcebispo-duque de Reims trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma cruz vermelha, brocante sobre tudo. Mas aqui a cruz está pintada de prata e solta e as lises são contáveis.
5. O bispo-duque de Laon trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma cruz de prata, brocante sobre tudo e carregada de um báculo vermelho. Mas aqui a cruz parece florenciada, as lises se reduzem a quatro e falta o báculo.
6. O bispo-duque de Langres trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, uma aspa vermelha, brocante sobre tudo. Mas aqui as lises são contáveis.
7. O conde da Champanha trazia uma banda de prata, coticada duplamente, potenciada e contrapotenciada de ouro, em campo azul. Mas Coelho não soube reproduzir estas armas.
8. O conde de Flandres trazia um leão negro, armado e lampassado de vermelho, em campo de ouro. Mas o leão está todo negro.
9. O conde de Toulouse trazia uma cruz de Toulouse de ouro em campo vermelho (2). Mas Coelho também não soube reproduzir estas armas.
10. O bispo-conde de Beauvais trazia uma cruz vermelha, cantonada de quatro chaves do mesmo, adossadas par a par, em campo de ouro. Mas aqui falta a cruz e as chaves se reduzem a duas.
11. O bispo-conde de Noyon trazia em campo azul, semeado de flores de lis de ouro, dois báculos adossados de prata e brocantes. Mas aqui em vez de báculos, há campas.
12. O bispo-conde de Châlons trazia uma cruz de prata, cantonada de quatro flores de lis de ouro, em campo azul. Mas Coelho reproduziu outras armas.
Depois, o sete eleitores do Império:
1. O rei da Boêmia, arquicopeiro do Império, trazia um leão de cauda forcada de prata, armado, lampassado e coroado de ouro, em campo vermelho. Mas aqui o leão está todo de prata e não cinge coroa.
2. O arcebispo de Colônia, arquichanceler para a Itália, trazia uma cruz negra em campo de prata. Mas aqui a cruz está maçanetada.
3. O arcebispo de Tréveris, arquichanceler para a Gália, trazia uma cruz vermelha em campo de prata. Mas aqui a cruz está solta.
4. O arcebispo de Mogúncia, arquichanceler para a Germânia, trazia uma roda de seis raios de prata em campo vermelho. Mas aqui os raios se reduzem a quatro.
5. O duque da Saxônia, arquimarechal do Império, trazia burelado de negro e ouro de dez peças e um crancelim verde, brocante sobre tudo. Mas aqui se fizeram quatro faixas negras em campo de ouro e o crancelim de prata.
6. O duque da Baviera (e não o de Neuburg), arquissenescal do Império, trazia esquartelado: no primeiro e quarto, as armas da Baviera, a saber, fuselado em banda de prata e azul; no segundo e terceiro, as armas do Palatinado, a saber, um leão de prata, armado, lampassado e coroado de vermelho, em campo negro. Mas aqui pelo fuselado se fez um lisonjado e o leão está todo de ouro e não cinge coroa.
7. O marquês de Brandemburgo (e não o duque da Baviera), arquicamareiro do Império, trazia uma águia vermelha, bicada e membrada de ouro, cada asa carregada de um Kleestängel do mesmo, em campo de prata. Mas aqui a águia está toda vermelha.
Finalmente, o imperador e alguns reis:
1. O imperador trazia em campo de ouro uma águia negra de duas cabeças, bicada e membrada de vermelho, e um escudete vermelho, carregado de uma faixa de prata, brocante sobre o peito da águia.
2. O rei de Jerusalém trazia uma cruz potenteia de ouro, cantonada de quatro cruzetas do mesmo, em campo de prata.
3. O rei da França trazia três flores de lis de ouro em campo azul.
4. O rei de Portugal trazia em campo de prata cinco escudetes azuis, carregados de cinco besantes do primeiro, e uma bordadura vermelha, carregada de sete castelos de ouro.
5. O rei da Inglaterra trazia esquartelado: o primeiro e quarto contraesquartelados, no primeiro e quarto as armas reais da França, a saber, três flores de lis de ouro em campo azul; no segundo e terceiro as armas reais da Inglaterra, a saber, três leopardos de ouro, alinhados em pala, em campo vermelho; no segundo, as armas reais da Escócia, a saber, um leão vermelho encerrado numa orleta dupla florenciada e contraflorenciada do mesmo em campo de ouro; no terceiro, as armas reais da Irlanda, a saber, uma harpa de ouro, cordada de prata, em campo azul. Mas Coelho não soube reproduzir as armas reais escocesas.
6. O rei de Aragão trazia quatro palas vermelhas em campo de ouro. Aqui Coelho se emenda, uma vez que à folha 6 faz cinco palas.
(1) Até mesmo a instabilidade linguística no Livro do Armeiro-Mor (como enleição por eleição) é compatível com a evolução do português à época, mas escrever Elemanha em 1675 indicia letramento deficiente.
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