Armas das conquistas de Portugal.
Do Tesouro de nobreza (1675):
Comentário:
Nos estudos do padre Antônio Soares de Albergaria (Códice BNP 1118, fls. 301v-309), que tenho referido desde a primeira postagem desta série, acha-se a maioria dos brasões que formam o presente capítulo, mas cumpre reconhecer que Francisco Coelho procurou tratá-los como conjunto e ampliá-lo (1). Daí que o Algarve, na prática uma província indistinta das demais, figure junto com a expansão ultramarina. É bem verdade que tal critério se ampara na própria intitulação régia: Rei/Rainha de Portugal e dos Algarves d'aquém e d'além-Mar em África.
De todo modo, cabe certa crítica a ambos os autores. Como argui na postagem de 20/12/21, diferentemente dos reis de Castela, os de Portugal nunca deram brasões de armas aos territórios conquistados, nem mesmo quando a mesma pessoa acumulou uma dignidade e a outra. Com efeito, na monarquia portuguesa sempre esteve claro que eram os municípios que possuíam armas e assumi-las constituía uma prerrogativa municipal, portanto assunto em que a Coroa não se imiscuía.
Conseguintemente, o Algarve e o Brasil nunca tiveram brasão, a não ser o do Reino Unido, ordenado por Dom João VI em 1816. Pelo do Algarve, Albergaria aponta "um escudo vermelho e dentro nove castelos d'ouro", isto é, a interpretação tradicional de que a bordadura com os castelos das armas reais foi acrescentada por Dom Afonso III após a conquista desse reino, quando consiste, na realidade, de mera brisura para se diferençar de seu irmão, o rei Dom Sancho II, deposto pelo clero e pela nobreza (cf. a postagem de 19/01/21).
O caso das armas atribuídas ao Brasil foi mais inventivo. À fl. 31v do seu caderno, Albergaria desenhou as armas de Sobrarbe e, traduzindo o Compendio historial (1628, p. 17), de Esteban de Garibay, copia a lenda de Garcia Ximenes, a quem "lhe apareceu ũa cruz vermelha em cima dũa azinheira e em devoção de anúncio e prodígio tão celestial, entrando na batalha, venceu aos mouros, pelo qual el-rei Dom Garcia Ximenes referem haver tomado por suas ensínias e divisas reais a cruz colorada, o encino verde em campo de ouro" (2). Como se terá percebido, são armas falantes: leu-se Sobrarbe como sobre arbre ('sobre árvore'), mas essa região deve o seu nome à serra de Arbe, que a delimita pelo sul (3). Coelho então as viu e ocorreu-lhe que poderiam igualmente identificar o Brasil, cujo nome primitivo fora Santa Cruz e cujo nome definitivo vinha de uma árvore, o pau-brasil. Mudou, porém, a iluminura: o campo de prata e as figuras de sua cor.
Outrossim, não havia brasões de ilhas. A cidade do Funchal, cabeça da ilha da Madeira, efetivamente usava das armas que se veem aqui e são assim brasonadas por Albergaria: "cinco pães d'açúcar em quina com ũa cana-de-açúcar ao pé". As armas da cidade de Angra, cabeça da ilha Terceira e sé do bispado açoriano, não estão no caderno do padre, mas eram verdadeiramente a cruz da Ordem de Cristo com dois açores voantes e afrontados ao seu pé em campo de prata. A imagem de São Miguel figurava no verso do estandarte de Vila Franca do Campo (o anverso carregava as armas reais).
Quanto às cidades algarvias, Albergaria escreve que Lagos, Silves e Faro têm "um escudo branco, sem mais divisa". No entanto, o foral novo de Lagos (1504) sugere que o selo dessa povoação continha um pano de muralha com uma porta flanqueada de duas torres, assente sobre ondas e encimado de um escudo das armas reais. Em 1967, o concelho acatou o parecer da Comissão de Heráldica e Genealogia da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), que em 1960 lhe recomendara tal insígnia, ordenando os esmaltes do campo e do ondado como na iluminura do foral, aquele de azul e este de verde e prata, mas pintou a muralha e as torres de ouro, abriu-a e iluminou-as de negro e trocou as armas reais por aquelas do infante Dom Henrique.
A propósito, foi no parecer sobre o brasão de Silves (1925) que Afonso de Dornelas aceitou por boas e autênticas as armas imaginárias do Algarve — duas cabeças de rei cristão e duas cabeças de mouro em campo esquartelado — e as preceituou aos brasões de todos os municípios algarvios, ao que a AAP obedeceu até 1944. Sobre o escudo de prata lisa de Silves, Dornelas colocou-as acantonadas e entre elas os escudetes primitivos de Portugal (com onze besantes, os dos flancos apontados ao centro), o que deixa ver outra característica do trabalho desse heraldista: o historicismo.
Enfim, os brasões de Tavira e de Goa. Este foi tirado do caderno de Albergaria, onde está descrito: "ũa torre com ũa roda de Santa Catarina e por cima da torre ũa mitra e a cruz pontifical". Aquele se deve, por certo, a pesquisa própria, mas Inácio de Vilhena Barbosa nas Cidades e vilas da Monarquia Portuguesa que têm brasão d'armas (1862, v. 3) fortifica a ponte com duas torres, o que Dornelas incorporou na reforma que propôs em 1932, aprovada pelo governo no ano seguinte.
(1) Por outro lado, Albergaria também brasona as armas de Malaca ("um junco, que é certo gênero de embarcação, com ũa chave e, por remate, um tigre, animal próprio daquela terra") e esboça o selo de Ponta Delgada (um molho de setas, alusivo a São Sebastião, seu orago). Portanto, das cidades ultramarinas escaparam a Albergaria as fundadas no Brasil (Salvador, Rio de Janeiro, Filipeia e Natal) e as demais sés dos bispados africanos e asiáticos: Santiago de Cabo Verde, São Tomé, São Salvador do Congo, Cochim e Macau. Isso cingindo-se ao século XVI.
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