Armas dos reis de Portugal.
Do Tesouro de nobreza (1675):
Comentário:
Em virtude de ter projetado doze brasões por folha, para complementar os dezoito dos reis portugueses Francisco Coelho dispunha de seis vagas, já que, de acordo com o ideário da Restauração, omite os Filipes, que regeram Portugal durante a União Ibérica (1580-1640). Pôs, então, três antes e três depois. Antes, as armas de Lisboa, como cabeça do Reino; as "armas do Redentor Cristo Jesus", como rei do universo; e as armas do conde Dom Henrique, como tronco da realeza. Depois, as armas do príncipe e dos duques de Bragança e Aveiro, que se seguiam ao monarca.
Esta seção do Tesouro demonstra de modo particular que, mesmo involuntariamente, Coelho e o padre Antônio Soares de Albergaria fizeram uma parceria muito proveitosa para a posteridade. Como eu disse na postagem introdutória, esse sacerdote tinha o letramento para a pesquisa e o rei de armas, a vontade de reagir contra a decadência da sua corporação. Assim, todos os brasões que se veem nestes dois fólios acham-se nos rascunhos de Albergaria (Códice BNP 1118, fls. 59-63), mas a Coelho devemos a sua pintura num armorial acabado.
À folha 302 do citado códice, o padre aponta que as armas da cidade de Lisboa eram "em um escudo coroado (como as mais cidades) ũa nau com dous corvos, discorrendo de popa a proa, como se vê em pedras e armas e portais que estão esculpidas em vários edifícios na mesma cidade. Sua pintura é esta: a nau parda, metida em um rio com ondas de prata e azul, e o restante do campo do escudo de cor de céu; os dous corvos negros, as velas de prata, apanhadas ou estendidas, que isso não faz ao caso. E eu assi as tenho visto pintadas". Sobre os esmaltes das insígnias municipais, leia-se a postagem de 17/05.
Por armas de Jesus Cristo, Coelho reproduz aquelas que Albergaria pintou à folha 61v, sem as brasonar: cinco chagas vermelhas em campo de prata; por cima do escudo, a coroa de espinhos e, por timbre, o Agnus Dei; sob o escudo, a vara com a esponja e a lança passadas em aspa; por tenentes, dois anjinhos. Como se terá percebido, este brasão conjuga os instrumentos da Paixão e refere a ela. Dele usavam os franciscanos, especialmente a sua ordem secular (cf. a postagem de 13/05).
As armas do conde Dom Henrique veem-se à folha 59, mas Albergaria trata delas também nos Triunfos de la nobleza lusitana (1631):
Y después de haber dado muestras de su valor y esfuerzo en aquella conquista, se volvió a acabar la de su condado, no queriendo otro premio della que traer por armas una cruz azul en campo de plata, que se debe notar por ser principio del blasón real deste Reino, que no podía ser más glorioso, pues lo trajo del Calvario, en que Cristo padeció. Pronosticando en esto las maravillosas victorias que los reyes, sus descendientes, habían de ganar con su invocación, hasta llevarla a las últimas regiones del mundo, triunfando con ella gloriosamente, acordándose nuestro conde que, luego que Dios crio el mundo, puso los ojos en el día de la cruz, de donde procede que toda la máquina del universo — oriente, poniente, septentrión y mediodía — los crio Dios en cruz; los cuatro vientos hacen figura de cruz; los planetas y estrellas de la octava esfera son en figura y forma de cruz. Al fin, son las propias armas de Cristo y llave con que abrió el cielo, sin la cual no quiso el Padre Eterno que su mismo hijo entrase en él sin ella (Bartolomé Casaneo en el Catalogus gloriæ mundi).
Coelho traduziu esse texto no Códice 21-F-15, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (sobre ele, remeto o leitor à referida introdução):
E despois de dar mostras de seu valor e esforço em aquela conquista, se tornou acabar a de seu condado, não querendo outro prêmio dela que trazer por armas ũa cruz azul em campo de prata, que se deve notar por ser princípio do brasão real, que não podia ser mais milagroso, pois o trouxe do Calvário, em que Cristo padeceu. Pronosticando nestas maravilhosas vitórias que os reis, seus descendentes, haviam de ganhar com sua invocação, até levá-la às últimas regiões do mundo, triunfando com ela maravilhosamente, lembrando-se o nosso conde que, logo que Deus criou o mundo, pôs os olhos em o dia da cruz, de donde procede que tomada a máquina do universo — oriente, ponente e setentrião e meio-dia — criou Deus em cruz; os quatro ventos fazem figura de cruz; os planetas e estrelas da oitava esfera são em figura e forma de cruz. Enfim, são as próprias armas de Cristo e chave com que abriu o céu, sem a qual não quis o Padre Eterno que seu mesmo filho entrasse nele sem ela (Bartolomeu Cassaneu no Catalogus gloriæ mundi).
Dom Henrique morreu em 1112, um pouco antes do surgimento da heráldica, portanto não teve brasão de armas. Com efeito, o texto enquadra-se tipicamente na narrativa heráldica da Idade Moderna: o brasão assinalava grandes feitos e cabia ao armista decifrá-los nas suas peças e figuras.
Curiosamente, a pesquisa histórica afetava o Milagre de Ourique, daí que Manuel de Faria e Sousa tenha tido de desdobrá-la muito no Epítome de las historias portuguesas (1628) ao interpretar o escudo exposto na Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, onde jazem Dom Afonso I e Dom Sancho I.
La exposición del escudo real a diferentes juicios me convida, mas el estilo no los sufre. Muchos escritores, queriendo hallar más secretos en las cosas de los que sus autores tuvieron en ellas, profundamente se dilatan, mucho en esta. Yo siento que el ser azules los cinco mayores escudetes en campo blanco y estar puestos en forma de cruz fue en observancia del escudo de su padre. Los cuatro menores, que están en figura cuadrada, son los cuatro escuadrones con que en aquella forma acometió los moros en Orique. Los diez menores que ha de haber en la circunferencia, ligados con un cordón (aunque, al cortarse, se olvidaron dos), con los nueve de dentro, contando dos veces el de en medio, hacen veinte, que son los reyes vencidos en aquella batalla. Los trece puntos, que tiene cada uno, los trece mil portugueses que llevaba, conforme al número que las historias dan a los infieles, son veinte veces trece mil. El haber dividido en cinco mayores la cruz, tradición es constante ser en memoria de las cinco llagas de Cristo, que vio puesto en la cruz, y también habría respeto a los cinco mayores reyes de los vencidos. (1, 2)
Frei Nicolau de Santa Maria conta como era esse objeto na Crônica da Ordem dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho (1668, p. 513): "O escudo de pau de figueira, forrado de couro de boi cru, oleado e pintado, e tem de comprimento cinco palmos e meio e de largo no mais largo três palmos". A mim, parece probabilíssimo que tal escudo contivesse os cinco escudetes besantados em cruz e fosse reforçado por um brocal, à semelhança do que se vê no selo do conde Raimundo Berengário IV de Barcelona (1150). Entretanto, é possível que ao longo de muito tempo o peso do brocal tenha acabado por corroer a madeira. Depois de descravado, é igualmente plausível que o tenham pintado. Suponho, então, que a memória do brocal se perdeu à medida que se refazia a pintura: confundiram-se as tiras com cordões e as chapas com escudinhos menores. (3, 4)
Convém ressaltar que não remanesce testemunho incontestável das armas de Dom Afonso Henriques. A melhor prova de que ele usava dos cinco escudetes azuis, besantados de prata e postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro, em campo do mesmo metal, são os selos de seus filhos — Dom Sancho I (1187-88) e Dona Matilde (1189) — que contêm essas armas. Sobre elas, Albergaria aponta que "assim as trouxe também seu filho, Dom Afonso o II e terceiro rei de Portugal, exceto que em cada qual dos escudetes trazia onze dinheiros; e assim também as trouxe el-Rei Dom Sancho Capelo, quarto rei, como seu pai, com os onze dinheiros". Por lapso, Coelho endireitou os escudetes dos flancos no número 2 do fólio 19.
A propósito, Albergaria, por certo inspirado no Epítome, desenvolve uma interpretação curiosa da bordadura castelada nos Triunfos. Como é consabido, forjara-se a estória segundo a qual Dom Afonso III acrescentou essa bordadura após a conquista do Algarve, mas era desconcertante que os selos régios mostrassem tantos castelos, pois de acordo com a hermenêutica vigente, cada um devia corresponder a um edifício real, tomado aos mouros naquela guerra. Daí a perspectiva que trocava campo e peça:
El Rey Don Alfonso III de Portugal, conde que fue de Bolonia, acrecentó en el mismo escudo por orla de las sagradas quinas siete castillos de oro en campo bermejo, porque en estas armas no se declaraba la sangre que se derramó en esta batalla [de Ourique], en que ellas se ganaron, ni el grande señorío que la Corona de Portugal allí acrecentó o, como otros dicen, porque en su tiempo se acrecentó a la Corona deste Reino el de los Algarbes, significado por aquellos castillos, aunque ninguna destas opiniones apruebo, porque se ha de advertir que los Algarbes (que siempre fueron de la conquista de Portugal, aunque por algún tiempo estuvieron sujetos a Castilla) tenían por armas un escudo sanguino, sembrado de castillos de oro, y encima deste escudo se puso el de las armas reales y milagrosas, de modo que no son ni fueron dados los castillos por orla; antes se encajó encima dellos el escudo de las armas reales, como una piedra preciosísima engastada en una sortija (Chronica Carmeli, lib. 2). (5, 6)
Na verdade, o número dos besantes e o dos castelos eram contáveis, porém indeterminados: enchiam-se os escudetes e a bordadura com tantos quantos coubessem (cf. a postagem de 28/03/21). Sousa diz que Dom Afonso IV reduziu os castelos a oito, mas Albergaria já dá esse número ao próprio Afonso III e anota no seu caderno: "Armas de el-Rei Dom Afonso III, Conde de Bolonha e irmão de Dom Sancho Capelo. Assim as trouxe Dom Dinis, seu filho, sexto rei de Portugal, e Dom Afonso IV, seu filho, sétimo rei de Portugal, exceto que em cada qual dos escudetes trazia dez dinheiros. Desta maneira as trouxe seu filho, Dom Pedro Cru, outavo rei de Portugal. Assim também as trouxe Dom Fernando, seu filho, nono rei de Portugal". Com maior precisão, Coelho faz a bordadura castelada até Dom Afonso V, mas se equivoca, tal como Sousa, ao recuar a fixação de sete a Dom João II. Isso deveio a partir de 1555, sob Dom João III.
Os três autores acertam, isto sim, em assinalar que foi no reinado de Dom João II que se endireitaram os escudetes dos flancos e se tiraram as pontas da cruz de Avis. Com efeito, é um evento bem conhecido, relatado nas crônicas desse rei que Rui de Pina (1495-1504, cap. XIX) e Garcia de Resende (1545, cap. LVI) escreveram. Nas palavras do mais velho:
A primeira mudança que fez foi que tirou do dito escudo a cruz verde da Ordem d'Avis, que nele por grande erro, como parte d'armas sustanciaes, andava já encorporada, porque el-Rei Dom Joam o Primeiro, seu bisavoo, ante que devidamente e per autoridade apostólica se intitolasse Rei dos Reinos de Portugal e do Algarve, era mestre d'Avis. E despois de ser rei, tomou por devação da ordem assentar o dito escudo de Portugal sobre a cruz verde, com as pontas dela fora do escudo, por nom parecer da essência dele, como ainda em suas reaes e mui excelente sepultura hoje em dia parece. E despois por negligência e pouco aviso dos pintores e oficiaes, foi por longo tempo e por erro metida dentro do escudo. E por tirar este inconveniente, que parecia labeo e mágoa d'armas, el-Rei a mandou tirar de todo. Outrossi, porque dos cinco escudos do meo do escudo, que fazem cruz, os dous das ilhargas jaziam derribados com as pontas através pera a cruz, o que era contra regra direita d'armas e parecia significar algũa grande quebra ou rota recebida contra si em batalha campal, o que nom era. El-Rei, outrossi por tirar esta sospeita e achaque, mandou assentar tôdolos escudos direitos e com as pontas pera fundo, como devida e naturalmente devem andar e assi andam agora. (7)
Tanto o Bolonhês como o Mestre de Avis mudaram as armas reais porque podiam e precisavam. Ambos ascenderam ao trono em meio a conflitos graves: a deposição e o desterro de Dom Sancho II em 1245; a morte de Dom Fernando I sem herdeiro varão em 1383 e a subsequente guerra civil. A assunção das ditas armas legitimava a sucessão, enquanto o acrescentamento rompia com o estado em que as coisas se encontravam. Em contraposição, no tempo de Dom João II tais armas não pertenciam mais ao rei para usufruir delas como lhe aprouvesse, mas sim ao Reino. Daí que antes de estabelecê-las à luz das ideias heráldicas em voga esse monarca tenha, inclusive, ouvido o seu Conselho.
Outra mudança devida a Dom João I é a redução definitiva dos besantes a cinco, donde a analogia às quinas de um dado. Não por acaso, foi sob a dinastia avisina que se elaborou o Milagre de Ourique, cuja atestação mais antiga se acha na Crônica de Portugal de 1419, atribuída a Fernão Lopes, da qual Duarte Galvão se serviu, à sua vez, na Crônica de Dom Afonso Henriques (1505, cap. 18). Com a sua difusão contribuiu Luís de Camões por meio d'Os lusíadas (1572, canto 3, estrofes 42-54). Nos Triunfos assim a narra Albergaria:
En esta misma hora y lugar [aos 25 de julho, no Campo de Ourique], recibió de la boca del omnipotente Dios título de rey de Portugal, que todo su ejército aclamó y confirmó con grande contento, y le dio por escudo de armas cinco quinas de color de cielo en campo de plata, por memoria de las cinco llagas de su pasión, y que metiese en cada una dellas treinta dineros, por los cuales fue vendido. Mas porque causaban confusión tantos dineros, los redujo todos a treinta, poniendo cinco en cada escudo su descendiente, el Rey Don Juan, segundo deste nombre, metiendo en el número de los dineros los mismos escudos, que por todos hacen el número perfecto, conforme al intento del autor que dio este escudo y blasón tan insigne, con el cual no tiene comparación ninguno de los reyes de la Tierra, pues fue el propio que el señor dellos ganó con tanta fatiga, triunfando con la cruz en el Calvario, donde venció al más fuerte enemigo de todo el género humano, que es el Demonio (Zurita, p. 1, lib. 2, cap. 24, fo. 72, co. 3 y 4; Resende en su corónica). (8)
Ainda que Albergaria impute aí a redução dos besantes a Dom João II, aparece corretamente no caderno de estudos, nas armas do primeiro João. Sobre elas, aponta que "assim as trouxe Dom Duarte, seu filho, undécimo rei de Portugal; assim, Dom Afonso V, seu filho, duodécimo rei de Portugal; assim por algum tempo, Dom João o II, tércio décimo rei de Portugal, seu filho". Coelho, este sim, erra ao fazer esse número desde as armas de Dom Dinis.
Para acabar, Coelho timbra os escudos de todos os reis com coroa real de quatro diademas. Até Dom João III, essa coroa era aberta, à semelhança daquela que se vê aqui por cima do escudo de Lisboa. Desde Dom Sebastião, começou o uso da coroa fechada, mas o rei de armas Índia demonstra que no seu tempo o número de diademas ainda variava: quatro (três aparentes) ou oito (cinco aparentes). Seja como for, o fechamento da coroa impedia que dela saísse a cimeira, sobre a qual Albergaria diz o seguinte nos Triunfos:
Mandó poner el Rey Don Alfonso a este escudo de armas por timbre y cimera sobre el yelmo coronado una media sierpe de oro, que se levanta de los pechos para arriba con sus alas, a imitación de la sierpe que Dios mandó a Moisés levantar en el desierto, en significación que su unigénito hijo sería arbolado en la cruz, porque así como los judíos heridos de las venenosas víboras, poniendo los ojos en la sierpe de metal, cobraban perfecta salud, así nosotros, heridos y corrompidos con la ponzoña del pecado, mirando con humildad y arrepentimiento de nuestras culpas a Jesús crucificado, recibimos salud en el alma. Deste timbre usaron después los reyes sucesores, así por esta razón como por ser muy devotos del glorioso San Jorge, por la amistad y parentesco que tuvieron con los reyes de Inglaterra, instituidores de la Orden de la Jarretera, de la cual fue caballero el Rey Don Juan el I de Portugal y muchos nobles deste Reino, y con cuya invocación se dieron algunas batallas. (9)
O Afonso a que o padre refere é o fundador, mas é perto do fim que o texto se aproxima à realidade histórica, pois foi, de fato, Dom João I "o primeiro rei que nas armas reais de Portugal pôs por timbre a serpe de ouro", como se lê no Códice BNP 1118. Possivelmente, trata-se de mais um aspecto da influência inglesa que o consórcio com Dona Filipa de Lancastre aduziu à armaria portuguesa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário