Coroas e coronéis não são enfeites para quem quer que seja dispor deles a seu bel-prazer.
Em outubro do ano passado, estive a trabalho na Cidade Alta de Natal e aproveitei uma hora livre para dar uma volta pelo centro histórico. Perto da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, a sé velha, avistei um brasão: figura na placa que assinala a sede da Irmandade do Santíssimo Sacramento dessa paróquia.
Armas da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Natal (RN). |
Não vivemos no melhor tempo da armaria eclesiástica, então a minha reação inicial foi a surpresa de topar com boas armas: de vermelho com um ostensório de ouro, carregado de uma hóstia de prata, sobrecarregada do monograma IHS de negro, o todo sustido por um livro fechado de prata, encadernado de ouro e com sete selos pendentes do mesmo, ladeado de dois ramos, um de videira e o outro de trigo, ambos de sua cor e com os pés passados sob o livro, e acompanhado em chefe de um cometa de prata. Um tanto complicado, é verdade, mas ainda assim boas armas, não fosse o coronel acima do escudo: "É uma irmandade ou um ducado?", perguntei-me jocosamente.
Com efeito, o Evangelho vincula-se à forma de governo mais inteligível para aqueles a quem foi primeiro anunciado: o reino. Ora, se o Cristo é o rei desse reino, sua mãe é, pois, rainha, daí que na iconografia de Nosso Senhor e de Nossa Senhora sobeje a coroa real, seja a antiga (aberta) seja a moderna (fechada com diademas). Até aqui, tudo certo, nada a censurar.
O que é, então, censurável? Respondo: a confusão de figura com timbre. Se no referido brasão a coroa estivesse dentro do escudo, seria figura e teria o sentido que se lhe quisesse dar. O timbre tem natureza diferente: não está ao dispor de qualquer um para embelezar as suas armas. Ele já surgiu, na verdade, para distinguir dignidades. Uma regra fácil é: se na vida real você não pode usar de certa insígnia, na heráldica também não.
Na verdade, o abuso de se assinalar sem direito, especialmente com coronéis, acontece há muito tempo, tanto que foi objeto de regulação em Portugal: em 1597, Dom Filipe I ordenou a Provisão de como se há de falar e escrever. Depois de estabelecer os tratamentos que cabiam às várias dignidades e ofícios do Reino e antes de enunciar as penas do descumprimento, enxertou-se o seguinte:
Outrossi por atalhar os excessos que se vão introduzindo, pondo coronéis nos escudos de armas e sinetes e reposteiros as pessoas que os não podem pôr, ordeno e mando que nenhũa pessoa possa pôr coronéis nos tais selos ou reposteiros nem em outra parte algũa em que houver armas, exceto os duques e seus filhos, marqueses e condes, pondo-os, porém, regulados conforme à calidade do título de cada um, que mandarei declarar por Rei de Armas Portugal, a quem para isso se dará ordem, tomando-se dele e doutras pessoas práticas na nobreza as informações necessárias.
A inserção de uma norma heráldica noutra de caráter linguístico é, por si, interessante. Mostra que o brasão perdera a analogia ao nome próprio (cf. a postagem de 11/01/2021) e era agora análogo ao "estado" da pessoa, como se dizia. Atesta, além disso, a modernidade dos títulos nobiliários: menciona duques, marqueses e condes; omite viscondes e barões. Ainda mais recentes são as suas insígnias, cuja "declaração" encarregava ao rei de armas principal.
De fato, esses títulos foram concedidos em Portugal pela primeira vez durante o século XV: o ducado de Coimbra em 1415, o marquesado de Valença em 1451, a baronia de Alvito em 1475 e o viscondado de Vila Nova de Cerveira em 1476. O título de conde é exceção, afinal o pai do rei Dom Afonso I foi o conde Dom Henrique. Mas mesmo a primeira concessão territorial antecede: o condado de Barcelos em 1298.
Quanto aos coronéis, a fixação da sua forma deve-se aos armistas modernos. No Livro da nobreza e perfeição das armas (séc. XVI), percebe-se que Antônio Godinho segue a vaga regra de diminuir a riqueza do coronel conforme o grau do título. Nos Troféus lusitanos (1632), de Antônio Soares de Albergaria, já se vislumbra certa semelhança ao sistema que, no Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, aparece consolidado.
Nas armarias ibéricas, tanto as coroas de imperador, rei e príncipe como os coronéis de infante e dos títulos têm alguns elementos comuns: são de ouro e a sua base é um aro engastado de pedraria. Convém ressaltar que não estamos falando de objetos concretos, mas sim abstratos, de modo que tanto faz desenhar rubis e esmeraldas como outras gemas.
Os títulos nobiliários têm origens diversas, mas todos denominaram ofícios administrativos antes do desenvolvimento do feudalismo, quando passaram a designar os senhores de certos territórios numa teia de laços de vassalagem. Tombado esse regime desde a Revolução Francesa, tornaram-se cada vez mais honoríficos. Efetivamente, essa era a sua natureza no Império do Brasil. (1)
Em latim, a palavra dux,ducis tem a mesma raiz do verbo ducere 'conduzir' (4). Portanto, dux era alguém que conduzia homens. Ao fim do Império no Ocidente, o dux exercia o comando militar de uma província e por vezes acumulava o governo civil, daí que, ao decair o domínio bizantino sobre a Itália durante a primeira metade do século VIII, o chefe do estado emergente na Venécia tenha continuado a se intitular dux, donde doxe (pronunciado /'doze/) em vêneto. Os doges encabeçaram a República de Veneza pelos próximos dez séculos. (5)
Fora do domínio bizantino, as monarquias germânicas procuraram preservar a administração imperial, porém durante a emergência das línguas românicas a palavra dux deve ter caído em desuso, porque o francês duc não foi transmitido pelo latim vulgar, mas tomado do latim literário. Da França exportou-se a palavra às ilhas Britânicas (duke em inglês) e à península Ibérica (duc em catalão, duque em espanhol e português), enquanto o italiano duca vem do grego bizantino doúkas.
Em Portugal, os ducados mais antigos foram dados por Dom João I a seus filhos: o de Coimbra a Dom Pedro, o de Viseu a Dom Henrique, ambos em 1415, e o de Bragança a Dom Afonso em 1442. Destes, os dois primeiros eram títulos de cortesia, já que os seus recebedores estavam num grau mais alto de dignidade, o de infante. Sendo Dom Afonso filho natural, o seu é o ducado hereditário mais antigo. (6)
De modo semelhante, Dom Pedro I deu em 1826 o título de duquesa de Goiás a Isabel Maria de Alcântara, sua filha bastarda, e em 1829 o de duque de Santa Cruz ao príncipe Augusto de Beauharnais, seu cunhado e irmão da imperatriz Dona Amélia, depois também seu genro e marido da rainha Dona Maria II. Em 1869, Dom Pedro II elevou Luís Alves de Lima e Silva, então marquês de Caxias, à honra ducal, a única concessão de tal a alguém sem parentesco com a Casa Imperial.
O coronel de duque tem cinco florões aparentes. Isso o torna muito semelhante à coroa real antiga, também dita aberta, por lhe faltarem diademas sobre o aro.
A palavra marquês deriva de marca, a qual está presente em todas as línguas românicas ocidentais, apesar da origem germânica. Supõe-se, pois, que tenha passado do frâncico ao latim no começo da Idade Média. A marca era a fronteira e, por metonímia, a região fronteiriça de um domínio. Por exemplo, os condes de Barcelona seguiram intitulando-se marchiones (marchio no singular) mesmo após a decadência do poderio franco, afinal ainda estavam na fronteira da cristandade com o Islã. É possível que a preferência do sufixo -ês se tenha originado na Itália (marchese em italiano) e daí passado às demais línguas românicas (marquis em francês, marquès em catalão, marqués em espanhol e marquês em português).
Em Portugal, os marquesados mais antigos foram criados para honrar a Casa de Bragança: o de Valença foi dado por Dom Afonso V em 1451 a Dom Afonso e o de Vila Viçosa em 1455 a Dom Fernando, ambos filhos de Dom Afonso, primeiro duque, e o de Montemor-o-Novo em 1478 a Dom João, filho do mesmo Dom Fernando, então segundo duque. Seguiu-se a elevação do condado de Vila Real em favor de Dom Pedro de Meneses em 1489.
No Brasil, o almirante Thomas Cochrane foi feito marquês do Maranhão por Dom Pedro I em 1823, o que gerou polêmica na Assembleia Constituinte, porque ainda não tinha legislado sobre a concessão de títulos nobiliários. Em 1825, elevou Francisco de Assis Mascarenhas, conde de São João da Palma por mercê do príncipe regente Dom João em 1810. No ano seguinte, criou nada menos que 23 marquesados.
O coronel de marquês tem três florões aparentes e entre eles três pérolas. Semelha, pois, a coroa que costuma cingir a cabeça de uma águia ou de um leão, porque o tamanho reduzido demanda maior singeleza.
Em latim, a palavra comes,comitis compõe-se do prefixo com-, da raiz do verbo ire 'ir' e do sufixo -t-, que expressa agência, portanto significa 'aquele que vai com outra pessoa' ou, simplesmente, 'companheiro'. O seu sentido evoluiu de 'companheiro do imperador' para 'oficial'. Por exemplo: o comes rerum privatarum cuidava 'das coisas privadas', isto é, das propriedades do imperador. Graças a essa latitude semântica, o termo permaneceu em uso sob as monarquias germânicas e os seus estados sucessores, daí o italiano conte, o francês e o catalão comte, o espanhol e o português conde.
Com efeito, Ordonho I das Astúrias delegou por volta de 850 a administração da parte mais oriental do reino a um magnata, que a exerceu com o título de conde. Afonso III, seu filho e sucessor, fez o mesmo da parte mais ocidental em 868. Este condado deu origem ao reino de Portugal; aquele, ao de Castela.
Em Portugal, consta que Dom Sancho I concedeu o título de conde a Mem Gonçalves de Sousa, seu mordomo-mor. Tinha ainda caráter administrativo. O primeiro condado territorial foi o de Barcelos, dado por Dom Dinis a João Afonso de Meneses em 1298. Mas tampouco era hereditário. Tornou-se tal em 1385, quando Dom João I o deu, juntamente com os de Ourém e Arraiolos, a Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável.
No Brasil, o primeiro condado foi criado em 1825 por Dom Pedro I, quando elevou o viscondado de Baependi, que dera no ano antecedente a Manuel Jacinto Nogueira da Gama.
O coronel de conde tem nove pontas aparentes, cada uma rematada por uma pérola. Isso o torna o mais distintivo dos coronéis nobiliários.
A primeira sílaba da palavra visconde é outra forma do prefixo vice-, portanto na ausência do conde o visconde fazia as suas vezes. Com o tempo, o encargo de certas funções em dado território tornou alguns viscondados, originariamente administrativos, senhorios próprios, daí o título nobiliário.
Em Portugal, após o de Vila Nova de Cerveira a Leonel de Lima em 1476, deram-se apenas oito viscondados até o fim do século XVIII. Por outro lado, no XIX e especialmente sob a monarquia constitucional tornou-se uma forma interessante de honorificência para a Coroa, porque enobrecia o sujeito sem necessariamente o alçar à grandeza do Reino.
No Brasil, Dom Pedro I reconheceu em 1822 o viscondado de Rio Seco, que seu pai dera em 1818 a Joaquim José de Azevedo, acrescentando-lhe a grandeza do Império. Dois anos depois, criou dezessete viscondados.
O coronel de visconde tem cinco pontas aparentes, três maiores com pérolas grandes e entre elas duas menores com pérolas pequenas.
A palavra barão tem a mesma origem de varão. Esta vem diretamente do latim baro,baronis; aquela, pelo francês baron. Possivelmente, foram os germanos que a transmitiram ao baixo-latim. Chamando-se eles 'homens livres' no seu idioma, os romanos deram ao vocábulo novo sentido, consoante o trabalho que esses homens lhes prestavam: 'mercenário'. A partir disso, o sentido foi-se ampliando: 'homem corajoso', 'homem nobre', 'senhor de terra'.
Em Portugal, as baronias foram ainda menos numerosas que os viscondados até o século XVIII. Depois de se ter dado em 1475 a de Alvito a João Fernandes da Silveira, só mais três foram criadas: a da Ilha Grande de Joanes em 1666, a de Mossâmedes em 1779 e a de Alverca em 1795. Com efeito, foi desde a regência do príncipe Dom João que tanto os viscondados como as baronias se multiplicaram.
Se em Portugal o título de visconde foi o mais concedido sob a monarquia constitucional, no Brasil o foi o de barão, ao ponto de uma parte da aristocracia ter ficado conhecida como "os barões do café". O baronato da Torre de Garcia d'Ávila foi o primeiro e também o título nobiliário mais antigo do Império, dado a Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque por Dom Pedro I na ocasião da sua coroação, ao 1.º de dezembro de 1822.
O coronel de barão não tem pontas, mas consiste simplemente do aro, no qual se enrosca um fio de pérolas.
A multiplicação de viscondados e baronias na Idade Contemporânea vincula-se ao conceito de grandeza. Em Portugal, os duques, marqueses e condes eram os grandes do Reino, portanto esse conceito se assemelha mais ao pariato britânico que à grandeza de Espanha, já que esta não é inerente a título, nem mesmo ao de duque, assim como o pariato francês.
A única concessão de grandeza na Idade Moderna foi feita por Dom José a Martim Correia de Sá, quarto visconde de Asseca. Os demais viscondados e baronatos criados durante esse período ou se extinguiram ou foram elevados, exceto o viscondado de Fonte Arcada e o de Vila Nova de Souto d'el-Rei.
Sob a monarquia constitucional, a grandeza compensou, de certo modo, a extinção dos senhorios, já que ampliou o sistema honorífico. A alta nobreza, agora despojada dos seus privilégios, permaneceu acima da nova nobreza, composta por um número cada vez maior de viscondes e barões, aos quais se dava a expectativa de subir àquela ou pela concessão da grandeza ou pela elevação do título. (12)
No Brasil, como não havia nobreza antiga, nem mesmo títulos de juro e herdade, a honraria de grande do Império foi concedida com maior largueza, pois até mesmo barões a ganhavam, o que não se praticava em Portugal. Isso propiciou que o número de marqueses e condes ficasse relativamente reduzido, conferindo equilíbrio ao conjunto da nobreza titulada.
Assim, Dom Pedro I ainda na ocasião da sua coroação fez as primeiras concessões da grandeza do Império: a Pedro Dias Pais Leme, barão de São João Marcos, a Manuel Inácio de Andrade, barão de Itanhaém, e a Joaquim José de Azevedo, visconde de Rio Seco. Todos títulos criados por Dom João VI em 1818 e 1819.
Tem-se dito que os viscondes e barões com grandeza faziam jus ao coronel do título superior nos seus brasões, mas isso não é exato. Na verdade, o grau mais baixo da grandeza era o condado, então era o coronel desse título que todo grande do Reino ou do Império abaixo dele, fosse titulado ou não, podia apor às suas armas.
Esse derradeiro apontamento confirma o argumento inicial: coroas e coronéis não são meros enfeites, mas sinais de dignidades, formalmente reconhecidas.
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