A linguagem heráldica foi desenvolvida para descrever com técnica e objetividade desde os brasões mais singelos até os compostos mais complexos.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(23) Circa secundum vero, quando arma sunt quædam signa simplicia, ut varietates quorumdam colorum, tunc hic est advertendum qualiter debeant portari. Et præmitto quod nobilior res debet præferri et in nobiliori loco poni (C, 1, 28, 1 [1]; C, 1, 40, 5 [2]; C, 12, 3, 1 [3]). Item præmitto quod locus prior et superior est nobilior inferiori et posteriori, ut dictis legibus et D, 50, 3, 2 [4].
His præmissis, dico quod quandoque arma variantur per media, ut quia quis pro arma portat banderiam duorum colorum, et tunc aut dividitur per medium ut supra et subtus, aut per medium ut ante et post. Et in istis casibus in dubio nobilior color debet esse supra et in ea parte quæ respicit cælum, vel ante, id est, in ea parte quæ respicit hastam. Si vero variatur per quarteria, tunc nobilior color debet esse in quarterio superiori et anteriori, id est, prope hastam. Si vero variatur per listas directas, tunc lista coloris nobilioris debet esse prope hastam; si vero variatur per listas transversas, tunc lista coloris nobilioris debet esse prima versus cælum. Si vero sunt listæ vel bandæ pendentes, tunc cum hasta habeat se tamquam pars anterior in banderia, et ideo pars magis elevata debet respicere hastam. Ista omnia probantur ex præsuppositione.
(23) Acerca do segundo ponto, note-se que quando as armas são certos sinais simples, como alternâncias de certas cores, cabe, então, mostrar de que modo se devem trazer. Adianto que deve preferir-se a mais nobre e pôr-se no lugar mais nobre (C, 1, 28, 1 [1]; C, 1, 40, 5 [2]; C, 12, 3, 1 [3]). Outrossim, adianto que o lugar mais adiante e acima é mais nobre que o mais atrás e abaixo, como nas citadas leis e em D, 50, 3, 1 [4].
Adiantado isso, digo que às vezes as armas alternam duas cores, por exemplo porque alguém traz uma bandeira de duas cores, então se divide ao meio acima e abaixo ou ao meio adiante e atrás. Nesses casos, fica-se em dúvida se a cor mais nobre deve estar acima, isto é, na parte que se volta para o céu, ou adiante, isto é, na parte que se volta para a haste. Porém se alterna quatro cores, então a mais nobre deve ficar no quartel superior e anterior, isto é, perto da haste. Porém se alterna listras verticais, a listra da cor mais nobre deve ficar perto da hasta; se, porém, alterna listras horizontais, então a listra da cor mais nobre deve ficar primeiramente em direção ao céu. Porém, se as listras ou bandas são diagonais, então com a haste se acha como que a parte anterior na bandeira; por isso, a parte mais elevada deve voltar-se para a haste. Comprova-se tudo isto a partir do já posto.
Comentário:
Nessa parte do tratado, Bártolo acerta, por um lado, ao descrever um uso que se pratica na heráldica até hoje, mas, por outro, reflete o pensamento do seu tempo sobre um aspecto que não se vê mais da mesma perspectiva. O uso ainda vigente é a convenção de que no escudo ou campo o alto e a destra precedem em honra, embora haja aí outros lugares igualmente honrosos. Em particular, a heráldica portuguesa dispõe de um brasão que ilustra tudo isto: o do marquês de Vila Real.
Como se percebe, essas armas compõem-se de três brasões, dois dos quais estão, à sua vez, compostos de outras armas. O que fica sobre o todo do todo é o mais antigo: de ouro liso são as armas dos Meneses. Pedro de Meneses (c. 1370-1437), o fundador da Casa de Vila Real, era neto de João Afonso Telo de Meneses (m. 1381), primeiro conde de Ourém, que trazia as armas da sua linhagem. Presumivelmente, o filho homônimo deste (c. 1330-1384), primeiro conde de Viana do Alentejo, sobrepôs as armas paternas às de duas linhagens femininas, Vila Lobos e Lima, respectivamente da avó materna e da bisavó paterna, esta pela linha varonil, as quais armas foram ordenadas num partido de dois traços e cortado de um: o primeiro, terceiro e quinto de ouro com dois lobos passantes de púrpura, um sobre o outro; o segundo, quarto e sexto de ouro com quatro palas de vermelho (1). Depois, o dito Pedro de Meneses, primeiro conde de Vila Real, por ser o capitão e governador da recém-conquistada cidade de Ceuta, trocou o primeiro quartel por um campo de azul com um estoque de prata, empunhado de ouro. Contudo, não teve herdeiro varão; instituiu, então, um morgadio para perpetuar o seu sobrenome e as suas armas na geração de sua filha, Dona Brites (ou Beatriz), que casou com Fernando de Noronha. Daí que os condes pósteros, marqueses desde 1489, se tenham chamado de Meneses e sobreposto as armas de Dom Pedro às dos Noronhas. Estas consistiam num esquartelado: no primeiro e quarto, as armas do Reino e, por diferença, um filete de negro em banda; no segundo e terceiro de vermelho com um castelo de ouro; mantelado de prata com dois leões batalhantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho; bordadura composta de ouro e veiros, de dezoito peças. Tanto o pai como a mãe de Dom Fernando eram de ascendência régia: Afonso de Castela, conde de Gijón e Noreña, filho natural de Henrique II de Castela, e Isabel de Portugal, filha natural de Dom Fernando I. O leitor perspicaz terá captado aí as armas reais portuguesas, diferençadas pelo clássico filete de negro (tratei dele na postagem de 21/01), e as castelhano-leonesas, pelo mantelado e pela bordadura.
Enfim, em todo esse conjunto observa-se o preceituado por Bártolo: o primeiro quartel, precisamente no alto e à destra, é o lugar mais nobre: nas armas dos Noronhas, é o ocupado pelas do Reino; nas armas de Pedro de Meneses, o ocupado pela capitania de Ceuta. Não obstante, o lugar de honra para a linhagem da casa é o centro, daí que essas últimas armas fiquem sobre o todo e, nelas mesmas, as dos Meneses. Isto sem falar do chamado ponto de honra, que fica entre os pontos 2 e 5 do escudo (leia-se a postagem de 31/01) e já foi exemplificado neste blog pelo brasão de Vasco da Gama (na postagem de 11/01).
Agora o aspecto que mostra uma visão bem tardo-medieval, mas hoje não se leva a sério: é dispensável o cuidado em fazer preceder a cor mais nobre, porque não há cores mais nobres que outras. Na verdade, acho que isso nunca foi nem mesmo praticado, por mais que o humanismo tenha valorizado as alegorias e estas tenham permanecido vigorosas por muito tempo na heráldica. De todo modo, o professor de Perúsia, meio sem jeito, por lhe faltar a nomenclatura latina — a qual foi forjada em francês —, trata pela primeira vez do desenho das partições, peças e repartições. Efetivamente, o traçado pode correr na vertical, na horizontal ou na diagonal. Comecemos pelas partições do escudo ou campo.
Partições do escudo ou campo. |
A divisão pelo traço vertical denomina-se partido; pelo traço horizontal, cortado; pelo diagonal da destra à sinistra, fendido; pelo diagonal da sinistra à destra, talhado; pelo cruzamento do vertical e do horizontal, esquartelado; pelo das duas diagonais, franchado; por esses dois cruzamentos, gironado.
Peças correspondentes às partições. |
Observe, caro leitor, que a cada traçado corresponde uma peça. A diferença é que a partição cria como que dois ou mais campos, que ao brasonar, se enumeram, ao passo que a peça é um componente que o escudo ou campo carrega. Assim, a peça correspondente ao partido denomina-se pala; ao cortado, faixa; ao fendido, banda; ao talhado, barra; ao esquartelado, cruz; ao franchado, aspa.
Peças correspondentes às partições em número. |
Especificamente, as peças que Bártolo chama de listras podem variar de número, cuidando-se sempre de lhes dar a mesma largura ou altura, bem como igual espaço entre elas e os bordos livres do escudo. Mas há aqui um preciosismo da linguagem heráldica: de cinco em diante, mudam-se os nomes: a pala passa a denominar-se vergueta; a faixa, burela; a banda, cotica; a barra, travessa. Do ponto de vista formal, não há diferença alguma, mas a língua do brasão tem lá os seus floreios.
Repartições do campo. |
Formalmente, o que, sim, difere é a repartição do campo. Neste caso, tem-se uma espécie de padrão de dois esmaltes que começa com o primeiro e acaba com o segundo, portanto sempre em número par de peças. Os seus nomes são formados pelo particípio passado a partir dos nomes das peças correspondentes. Assim, da pala, palado; da faixa, faixado; da banda, bandado; da barra, barrado; da vergueta, verguetado; da burela, burelado; da cotica, coticado; porém da travessa, coticado em barra.
Para acabar, cabe advertir que há outras peças e possibilidades, mas por enquanto, para comentar o Tractatus, bastam essas.
(1) Segundo argui Anselmo Braamcamp Freire em Brasões da Sala de Sintra (1921). Note-se, ainda, que os Meneses de Portugal se cindiram pela primeira vez na geração de Afonso Martins Telo: do seu primogênito e homônimo descendem os Meneses da Casa de Marialva e do secundogênito, o dito João Afonso Telo, os Meneses da Casa de Vila Real. Similarmente ao ramo de Vila Real, o de Marialva (o seu primeiro título foi o condado de Neiva) ordenou as suas armas sobrepondo o escudete de ouro liso dos Meneses às armas da linha feminina, neste caso as dos Albuquerques, que também são um esquartelado das armas do Reino, estas diferençadas por um filete de negro em barra, no primeiro e quarto, e o segundo e terceiro de vermelho com cinco flores de lis de ouro. Depois houve alterações que alongariam em demasia esta nota.
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