Outrora, tudo podia ter uma interpretação alegórica ou simbólica, mas hoje é pacífico que os símbolos são construções sociais, inclusive as cores.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(24) Sed dubitatur quis color sit nobilior. Dico quod unus color dicitur nobilior respectu ejus quod repræsentat, alius secundum se. Primo modo, color aureus dicitur nobilior, per eum enim repræsentatur lux. Si quis enim vellet figurare radios solis, quod est corpus maxime luminosum, de hoc non posset congruentius facere quam per radios aureos. Constat autem quod nil luce nobilius, certe nil (C, 1, 1, 8 [1]). Nihil est enim quod lumine clariore (C, 4, 13 [2]). Et in Sacra Scriptura pro re maximæ excellentiæ designatur sol, ut "Fulgebunt justi sicut sol" (Mt, 13, 43), et alibi, "Resplenduit facies ejus sicut sol" (Mt, 17, 2). Et propter hanc nobilitatem nulli licet portare vestes aureas, nisi soli principi (C, 11, 9 [3]).
(25) Sequens color nobilior est color purpureus seu rubeus, qui figuratur per ignem, qui est super alia elementa et est corpus post solem secundario luminosum. Et propter ejus nobilitatem nulli licet portare vestes coopertas de dicto colore nisi principi (C, 11, 9). Et in dicta lege tertia exprimitur hunc colorem esse nobiliorem aliis.
(26) Sequens post prædictos nobilior color est color azurus, per eum enim figuratur aer, qui est corpus transparens et diaphanum et maxime receptivum lucis, et est sequens elementum post ignem et nobilius aliis. Unde prædicti colores per id quod repræsentant dicuntur nobiliores.
(24) Mas se duvida qual cor é mais nobre. Digo que uma cor se diz mais nobre com respeito ao que representa ou por si mesma. Do primeiro modo, a cor dourada diz-se mais nobre. Com efeito, por ela representa-se a luz. Com efeito, se alguém quisesse figurar os raios do sol, que é o corpo mais luminoso, não poderia fazê-lo de modo mais congruente que por raios dourados. Sabe-se que nada é mais nobre que a luz, certamente nada (C, 1, 1, 8 [1]). Com efeito, nada é mais claro que o lume (C, 4, 13 [2]). Na Sagrada Escritura, o sol designa-se por algo de máxima excelência, como em "os justos brilharão como o sol" (Mt, 13, 43) e "seu rosto brilhou como o sol" (Mt, 17, 2). E por causa dessa nobreza a ninguém é permitido trazer vestimentas douradas, a não ser ao príncipe (C, 11, 9 [3]).
(25) A cor seguinte mais nobre é a cor purpúrea ou vermelha, que se figura pelo fogo, o qual está acima dos outros elementos e é o segundo corpo mais luminoso depois do sol. Por causa da sua nobreza, a ninguém é permitido trazer vestimentas cobertas da dita cor, a não ser ao príncipe (C, 11, 9). Na citada lei, expressa-se que essa cor é mais nobre que outras.
(26) Depois das já ditas, a cor seguinte mais nobre é a cor azul. Com efeito, por ela figura-se o ar, que é um corpo transparente e diáfano, o mais receptivo de luz e é o elemento seguinte mais nobre do que os outros, depois do fogo. Daí que se digam mais nobres as cores já ditas pelo que representam.
Comentário:
O leitor que seja atento iniciante nos estudos heráldicos há de ter percebido que a armaria usa de metais e cores, chamados esmaltes (1), mas a língua do brasão não faz a devida concordância nominal, por exemplo, leão vermelho, leões vermelhos, ou, ainda, águia negra, águias negras. Em vez disso, o nome da cor constitui uma locução com a preposição de: leão ou leões de vermelho; águia ou águias de negro (2). Com efeito, não só o brasão é um conceito, como eu disse na postagem de 23/01, mas os próprios esmaltes não são tampouco pigmentos concretos, e sim conceitos cromáticos. Noutras palavras, cada esmalte pode ser realizado por um tom mais claro ou mais escuro, contanto que seja identificável como tom do esmalte designado. A preferência é uma escolha artística, tanto quanto a forma do escudo. O que não fica bem é o emprego de mais de um tom do mesmo esmalte num só escudo ou campo.
Isso explica em parte por que Bártolo confunde o vermelho e a púrpura. A outra parte da explicação é a própria história da púrpura, que é bastante singular. Na Antiguidade, a púrpura mais cara extraía-se de um búzio conhecido como múrice (leia-se a nota 3 do Tractatus, acima). Os fenícios de Tiro eram os produtores mais hábeis. O processo era tão custoso que os tecidos tingidos com esse corante eram tidos por artigos de luxo. O seu valor foi especialmente prezado pelos romanos, que com ele orlavam a toga prætexta, usada pelos magistrados curuis nas suas funções e pelos ex-ditadores, antigos magistrados curuis e meninos livres de nascença em solenidades, e faziam, ainda, a toga picta, trazida pelos generais nos triunfos e depois pelos imperadores. Em suma, era a cor do poder.
Justiniano o Grande, imperador romano no Oriente (527-565), usando vestimenta purpúrea. Mosaico da Basílica de São Vital, em Ravena, Itália (548). |
Contudo, seja por causa da exploração predatória (eram precisos milhares de múrices para obter um pequeno punhado de corante) ou porque as estruturas de poder desapareceram, a extração da púrpura foi sendo esquecida após o fim do Império Romano no Ocidente, perdida de vez depois da queda de Constantinopla. O seu lugar foi ocupado pelo vermelho produzido a partir do quermes, um inseto parasita da carrasqueira, daí o vocábulo carmesim. Na verdade, a própria palavra vermelho vem do latim vermiculus, isto é, 'vermezinho', uma referência a essa cochinilha. É por isso que a púrpura cardinalícia é, na verdade, um tom de vermelho.
Iluminura de Afonso IX de Leão no Tombo 'A' da catedral de Santiago de Compostela (c. 1180). Imagem disponível na Wikimedia Commons. |
Na armaria, é provável que a púrpura tenha ganhado lugar entre os esmaltes graças ao brasão do rei de Leão: de prata com um leão de púrpura, depois armado e lampassado de vermelho, coroado de ouro. Essas armas estão, efetivamente, entre as mais antigas de toda a heráldica. Seja como for, na literatura técnica a púrpura sempre recebeu um tratamento ambíguo, hesitante, por vezes mesmo contestatário.
Enfim, o doutor de Sassoferrato é quase moderno ao razoar que as cores podem ser mais nobres que outras pelo que representam, pois hoje é com essa base que compreendemos os seus simbolismos: a púrpura pode representar majestade por causa de toda uma construção histórica nesse sentido, não por qualquer essência. O mesmo vale para qualquer outra cor, seja esmalte heráldico ou não.
(1) Alguns autores trocam os termos cor e esmalte.
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