A heráldica serviu aos pequenos mesteirais para marcar as suas obras e aos grandes príncipes para o mesmo, como ainda serve ao estado e à igreja.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(34) Quandoque etiam figurantur et depinguntur in parietibus vel aliis stabilibus locis, et tunc si quidem locus ubi depingitur habet se ut paries, considera quod paries volvat faciem versus nos, et latus dextrum parietis cognosces, et sic facies et pars nobilior armorum volvatur versus partem dexteram, prædicta vera nisi ex causa.
Quid enim si in medio unius parietis depingatur statua principis, regis vel alterius excellentis vel forte arma regia? Tunc alia arma quæ ab utraque parte depinguntur debent illam statuam vel illa arma respicere, non inspecto a dextris vel a sinistris, volvatur ad similitudinem hominum circum circa dominum existentium, omnes enim volvunt se versus eum.
Sed si locus ubi depingitur habet se ut cælum alicujus, puta cameræ vel aulæ, tunc ex dictis in præcedentibus membris cognoscendum est ubi dicitur caput et ubi pes. Postea fingo hominem jacentem ibi versus nos vultum volventem. Ex quo considero dextram partem et sinistram, et sic modum pingendi cognosces, ut ex prædictis liquet.
Si autem locus ubi depingitur habet se ut solum aut terra, tunc eodem modo considera caput et pedes, et finge hominem jacentem versus nos vultum volventem, et cognosces dexteram et sinistram, et modum pingendi rationabilem invenies. Unum tamen scias quod licet quis arma sua et insignia possit in terra sculpere vel pingere, tamen arma alicujus domini sui vel majoris non licet in terra sculpere vel pingere (C, 1, 8, 1 [1]).
Hunc tractatum de signis et armis a domino Bartholo de Saxo Ferrato, excellentissimo legum professore, quem non credo complevisse, compositum publicavit post mortem dicti domini Bartholi dominus Alexander, suus gener, sollemnissimus legum doctor, quando disputavit primam quæstionem, 1358, XI indictione, die 20 januarii.
(34) Às vezes, também se figuram e se pintam em paredes ou outros locais firmes. Então, se o local onde se pinta é uma parede, considera como se a parede volvesse a sua face para nós e reconhecerás o lado direito da parede. Assim, volvam-se a face e a parte mais nobre das armas para a parte direita. O já dito é verdadeiro, a não ser por causa grave.
Com efeito, o que acontece se no meio de uma parede for pintada uma estátua do príncipe, do rei ou de outro ilustre, ou acaso as armas reais? As outras armas, que são pintadas de uma parte e da outra, devem voltar-se, então, para essa estátua ou essas armas. Sem observar nem direitas nem esquerdas, volvam-se à semelhança de homens existentes dos dois lados ao redor do senhor. Com efeito, todos se volveriam para ele.
Mas se o local onde se pinta se acha como o céu de algo, por exemplo abóbadas ou salões, então do dito nas seções precedentes há de se reconhecer onde se diz que está a cabeça e onde, o pé. Depois, imagino um homem deitado aí com o rosto voltado para nós. Daí considero a parte direita e a esquerda, e assim reconhecerás o modo de pintar, como está patente do já dito.
Se o local onde se pinta se acha como o piso ou o chão, do mesmo modo considera, então, a cabeça e os pés, imagina um homem deitado que volve o rosto para nós e reconhecerás a direita e a esquerda e encontrarás o modo razoável de pintar. No entanto, que saibas uma coisa: é permitido que alguém esculpa ou pinte as suas armas e insígnias no chão; no entanto, não é permitido esculpir ou pintar as armas de algum senhor seu ou superior (C, 1, 8, 1 [1]).
O presente tratado sobre os sinais e as armas, do Senhor Bártolo de Sassoferrato, excelentíssimo professor de leis, quem, creio, não o acabou, compilou e publicou após a morte do dito Senhor Bártolo o Senhor Alessandri, seu genro, soleníssimo doutor em leis, quando disputou a primeira questão em 1358, na 11.ª indicção, no dia 20 de janeiro.
[1] C, 1, 8, 1: Cum sit nobis cura diligens per omnia superni numinis religionem tueri, signum salvatoris Christi nemini licere vel in solo vel in silice vel in marmoribus humi positis insculpere vel pingere, sed quodcumque reperitur tolli: gravissima pœna multando eo, si quis contrarium statutis nostris tentaverit, specialiter imperamus (Como temos diligente cuidado, que é por tudo proteger a religião da alta divindade, determinamos particularmente não permitir a ninguém gravar ou pintar o sinal de Cristo Salvador no chão, em rocha ou em mármores postos no piso, mas que se retire qualquer um que se ache, punindo com gravíssima pena quem tiver tentado o contrário aos nossos estatutos).
Comentário:
Se o tempo nos privou de apreciar a colcha armoriada da princesa Dona Beatriz, como expus na postagem anterior, melhor fortuna tiveram as pinturas que ornam o teto de uma sala do Palácio Nacional de Sintra, daí dita Sala dos Brasões. Com efeito, é provavelmente o maior conjunto heráldico monumental de toda a lusofonia, objeto de um estudo aprofundado, levado a cabo por Anselmo Braamcamp Freire e publicado em três volumes, respectivamente em 1921 (segunda edição), 1927 e 1930, sob o título de Brasões da Sala de Sintra.
Detalhe da Sala dos Brasões em que se veem as armas de algumas linhagens (Cunhas, Castros, Meneses, de Eça, Mirandas, Cabrais, Ribeiros, Lemos). Imagem disponível na Wikimedia Commons. |
A Sala dos Brasões tem planta quase quadrada e é coberta por caixotões que se apoiam em trompas, formando uma cúpula octogonal. Dentro de cada trompa, há seis brasões e, entre uma e outra, mais quatro. Acima, ao longo do friso, ficam 32 brasões. Ao todo, 72 brasões das linhagens mais nobres de Portugal, cada um pintado sobre um painel emoldurado, como se pendessem de correias atadas a um cervo, o qual traz o timbre da linhagem entre os seus galhos. Mais acima, em cada lado da cúpula, ficam as armas do príncipe, dos infantes e das infantas. No fecho da cúpula, como se fossem sustentadas por todo o conjunto, as armas reais, ao mesmo tempo postas como a fonte de toda a nobreza.
Detalhe da Sala dos Brasões em que se vê a organização do conjunto. Imagem disponível na Wikimedia Commons. |
Segundo Braamcamp Freire, a pintura desse teto armoriado foi executada entre 1515 e 1520, portanto é mais um dos projetos heráldicos de Dom Manuel I, de quem tanto já falei (em 07/11, 11/01 e 17/01). Efetivamente, a ordenação das armas na sala seguiu o Livro da nobreza e perfeição das armas, de Antônio Godinho, que referenciei na postagem de 15/01 e também integra a instrumentalização que esse monarca fez da heráldica na centralização administrativa que marcou o seu reinado.
Cúpula da Sala dos Brasões. Imagem disponível na Wikimedia Commons. |
Julgo, enfim, que não há maneira mais digna de acabar esta edição, tradução e estudo do Tractatus de insigniis et armis, pequeno no tamanho e grandioso no conteúdo, do que com as imagens desse belíssimo monumento.
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