Inalterada desde a sua criação, pela primeira vez a proposta de novas dioceses para a província eclesiástica de Natal alcança a fase de estudo.
O Rio Grande do Norte era o quarto estado mais católico do Brasil em 2010, segundo o censo daquele ano (do último ainda não se publicaram os dados sobre religião). Naquele momento, 75,9% da população potiguar declarava-se adepta dessa denominação. Apesar disso, as circunscrições eclesiásticas que a pastoreiam permanecem inalteradas desde 1939. Segundo o censo de 1940, o estado tinha então 768.018 habitantes (98,99% católicos). No censo de 2022, éramos 3.302.729.
Brasões das circunscrições que formam a província eclesiástica de Natal. |
Como dissertei na postagem de 23/04/21, o território do Rio Grande do Norte foi desmembrado da diocese da Paraíba em 1909, quando São Pio X criou a diocese de Natal. Em 1934, Pio XI pôs as paróquias ao oeste do rio Piranhas–Açu sob a jurisdição da nova diocese de Mossoró. Em 1939, Pio XII separou de Natal a região do Seridó, delimitada naturalmente pela bacia desse rio, e confiou-a ao novo bispado de Caicó. Por fim, em 1952 o mesmo pontífice elevou o antístite natalense à dignidade arquiepiscopal. Desde então, a província eclesiástica coincide com o estado.
Para se ter uma ideia do quanto evoluiu a realidade pastoral nestes 85 anos, em Natal, cabeça do estado e da província, havia apenas três paróquias: a Catedral de Nossa Senhora da Apresentação na Cidade Alta e as igrejas matrizes de São Pedro no Alecrim e do Bom Jesus das Dores na Ribeira. Hoje somam 41. Com efeito, das três circunscrições a arquidiocese é aquela que mais sofreu crescimento populacional.
Além de abranger uma conurbação populosa, a arquidiocese de Natal continua muito extensa, a maior do Regional Nordeste 2 da CNBB. A paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Macau, que tinha 21.054 fregueses em 2010, dista 184 km da igreja-mãe; a da mesma advocação, em São Rafael, ainda mais: fica a 221 km de distância ou quase três horas e meia de viagem. Enfim, agrava a sobrecarga do metropolita a falta de um bispo auxiliar.
Província eclesiástica de Natal. |
Na verdade, desde o ano passado têm-se renovado as sés norte-rio-grandenses. Em julho de 2023, o papa Francisco nomeou Dom João Santos Cardoso, então bispo de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, sétimo arcebispo de Natal. Em novembro, Dom Francisco de Sales Alencar Batista, então bispo de Cajazeiras, na Paraíba, sétimo bispo de Mossoró. Os seus antecessores, Dom Jaime Vieira da Rocha e Dom Mariano Manzana, tinham renunciado por idade. Ademais, em abril passado nomeou Dom Antônio Carlos Cruz Santos nono bispo de Petrolina, em Pernambuco. A sé de Caicó ainda está vaga.
A alternância do governo diversifica as perspectivas das quais se afrontam os problemas. Foi assim que na sua primeira carta pastoral, intitulada Naquele que me fortalece e apresentada a 29 de fevereiro, Dom João enuncia o objetivo de "iniciar o processo de criação de uma nova diocese para melhor atender as necessidades específicas das regiões pastorais" (item 165). Não demorou a persegui-lo: a 20 de maio instituiu a comissão de estudo, que instalou a 8 de junho. A notícia espalhou-se mais fortemente desde 22 de maio, festa de Santa Rita de Cássia, padroeira de Santa Cruz. A missa de ação de graças pela instalação da comissão foi celebrada na igreja matriz dessa paróquia, possivelmente futura catedral.
À sua vez, Dom Francisco de Sales anunciou ao fim da missa solene da festa de São João Batista, em Assu, que a mitra de Mossoró tinha aderido ao projeto, de modo a permitir a postulação dessa cidade como sede da outra nova diocese. Foi aí a 18 de julho que a comissão, agora mista (nove presbíteros da arquidiocese natalense mais quatro da diocese mossoroense), se reuniu pela primeira vez. Antes, no dia 2 do mesmo mês, em entrevista à Rádio Jovem Pan, Dom João disse que espera a aprovação das duas dioceses para 2026, quando a paróquia de São João Batista em Assu celebrará o seu tricentenário e o município de Santa Cruz, 150 anos de emancipação.
Sob o padroado, a criação de bispados era um ato da vontade real ou imperial com a confirmação pontifícia. Mesmo após a separação do estado e da igreja, esta ainda possuía vasto patrimônio. Por exemplo, até pouco tempo muita gente usufruía de certos terrenos na condição de foreiro, porque pertenciam ao orago da freguesia. Hoje em dia, a comissão de estudo deve relatar à Santa Sé não só que há necessidade, mas também se há viabilidade, até mesmo edifícios para acomodar a residência episcopal, a cúria diocesana e um seminário.
Portanto, sem nenhum ânimo de pôr o carro na frente dos bois, na próxima postagem e na seguinte farei duas propostas de brasão, uma para a futura diocese de Santa Cruz e a outra para a de Assu. Trata-se, é claro, de meros exercícios num momento de euforia por um noticiário tão empolgante.
Armas das circunscrições da província eclesiástica de Natal em escudos unidos. |
Convém, enfim, aproveitar o ensejo para apontar que uma diocese não precisa de brasão. O Código de Direito Canônico estabelece que cada paróquia tenha um selo (cân. 535); no mais, é omisso. Quanto ao funcionamento da cúria diocesana, diz apenas que os documentos devam ser assinados pelo ordinário e pelo chanceler para produzirem efeito jurídico (cân. 474). A própria Sé Apostólica não tem brasão, mas uma insígnia: as chaves petrinas e a tiara pontifícia. (1)
Com efeito, em Portugal e nos seus domínios sempre foram as armas episcopais que marcaram a autoridade do bispo ou a propriedade da mitra, como no antigo aljube de Olinda, cuja fachada ostenta as de Dom Francisco Xavier Aranha, quem o construiu, para dar um exemplo já abordado neste blog. Porém na França e maiormente no Sacro Império, onde vários prelados acumulavam senhorios temporais (entre eles os pariatos e eleitorados eclesiásticos), desenvolveu-se desde cedo uma armaria eclesiástica territorial (cf. a postagem de 21/04/21). Assim, as armas do arcebispado de Colônia, cujo ordinário coroava o rei dos romanos, eram uma cruz de negro em campo de prata, e o arcebispado de Reims, cujo ordinário sagrava o rei da França, trazia de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma cruz de vermelho, brocante sobre tudo.
Como se explica, então, que no Brasil se tenha tornado habitual assumirem as circunscrições eclesiásticas brasões de armas? Respondo: graças ao trabalho de um monge alemão no Mosteiro de São Bento da Bahia. Falo, evidentemente, do irmão Paulo Lachenmayer (1903–90). Ele cresceu em Ravensburg, no reino de Württemberg, sob a tutoria do escultor Theodor Schnell. Portanto, tinha boa formação em artes visuais quando chegou a Salvador, apesar da tenra idade (19 anos). Sobre ele, Luís Gardel em Les armoiries ecclésiastiques au Brésil (1962) afirma:
Les années les plus néfastes pour l'art héraldique sont celles comprises entre 1900 et 1935. Signalons seulement trois exemples caractéristiques : les armoiries du 7.ème évêque de Goiás et celles des premiers archevêques d'Olinda et Curitiba.
Cette période calamiteuse prend fin vers 1940, grâce aux efforts d'un héraldiste de génie, le Frère Paulo Lachenmayer O.S.B. Connaisseur profond de notre science et artiste d'un gout irréprochable, le Frère Paulo a renouvelé et remis en honneur au Brésil l'héraldique ecclésiastique. Par ses conseils à plusieurs prélats venus le consulter sur les armoiries qu'ils désiraient prendre, et composant lui-même un grand nombre de blasons, le Frère Paulo a véritablement créé un style d'armoiries et éveillé l'intérêt général pour le blason en tant qu'œuvre d'art. Un nombre de prélats décida bientôt alors d'abandonner leurs anciennes armoiries et d'en adopter de nouvelles, composées suivant les principes et les règles de l'art du blason. (2)
O Ir. Paulo teve um aprendiz (ou passavante em nomenclatura heráldica): Víctor Hugo Carneiro Lopes (1932–2014). Juntos, deixaram-nos este legado: não só as arquidioceses e dioceses, mas boa parte das universidades brasileiras tem ótimas armas. A propósito, de um ou do outro, ou quiçá de ambos, é claramente a autoria dos brasões das circunscrições que formam a província eclesiástica natalense:
- Arquidiocese de Natal: Talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe.
- Diocese de Mossoró: De prata com uma cruz de vermelho e uma espada do primeiro, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa e brocantes sobre a cruz, e um lenço de linho ao natural, carregado de dois olhos do mesmo e brocante sobre tudo.
- Diocese de Caicó: De azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta desse metal, sobrecarregada de uma pérola do mesmo.
Oxalá um dia se consiga catalogar as obras desses grandes heraldistas, que se acham dispersas nos arquivos dos armígeros e na posse de particulares.
(1) Em campo vermelho, as chaves decussadas e a tiara pontifícia fazem as armas do Vaticano. Ainda que na linguagem corrente vigore a metonímia de se referir um pelo outro, o sujeito de direito público internacional não é o Estado da Cidade do Vaticano, mas sim a Santa Sé. O Vaticano é, propriamente, o território que garante a soberania da Santa Sé, tanto que essa soberania extrapola a muralha leonina, abrangendo uma série de zonas extraterritoriais, e é a Santa Sé que mantém relações diplomáticas com outros sujeitos de direito internacional (cf. a postagem de 23/11/23).
(2) "Os anos mais nefastos para a arte heráldica são os compreendidos entre 1900 e 1935. Assinalemos somente três exemplos característicos: as armas do 7.º bispo de Goiás e as dos primeiros arcebispos de Olinda e Curitiba. Esse período calamitoso termina por volta de 1940, graças aos esforços de um heraldista de talento, o Irmão Paulo Lachenmayer O.S.B. Conhecedor profundo da nossa ciência e artista de gosto irrepreensível, o Irmão Paulo renovou e repôs em lugar de honra no Brasil a heráldica eclesiástica. Pelos seus conselhos a vários prelados que foram consultá-lo sobre as armas que desejavam assumir, e compondo ele mesmo grande número de brasões, o Irmão Paulo criou verdadeiramente um estilo de armas e despertou o interesse geral pelo brasão enquanto obra de arte. Certo número de prelados logo então decidiu abandonar as suas antigas armas e adotar novas, compostas segundo os princípios e as regras da arte do brasão." (tradução minha)
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