04/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL HOLANDÊS: A CONQUISTA

Os brasões do Brasil holandês são uma matéria tão repetida e pouco refletida que se faz necessário primeiro compreender a própria conquista holandesa.

Em abril de 1581, quando as Cortes de Tomar aclamaram o rei Filipe, ele já era desse nome o segundo rei de Castela, o primeiro rei de Aragão, o quarto rei de Navarra, o quarto duque de Brabante e Limburgo, o terceiro duque de Luxemburgo e Gueldres, o quinto conde de Flandres, Artois e Namur, o terceiro conde de Hainaut, Holanda e Zelândia, o segundo senhor da Frísia, cidade, vilas e países de Utrecht, Overijssel e Groninga. Portanto, chamá-lo Filipe II da Espanha não passa de uma convenção historiográfica, com base em certos usos autênticos (como as moedas, em que se inscrevia Rex Hispaniarum 'Rei das Espanhas'), para se referir de modo prático a uma titulação tão complexa quanto a própria monarquia.

Com efeito, o único título não referente à soberania sobre certo território era o de rei católico, que o papa Alexandre VI concedera a Isabel de Castela e Fernando de Aragão em 1496, Leão X renovou na pessoa de Carlos I e ficou desde então incorporado na sua sucessão. Mas este foi precisamente o rei e o imperador (o quinto desse nome) que teve de aceitar a Reforma Protestante. Em contrapartida, Filipe II preferia perder todos os seus estados a ser "senhor de hereges", como confessou a Lluís de Requesens, o seu embaixador junto à Santa Sé. Daí que tenha rejeitado as petições dos nobres neerlandeses por liberdade religiosa em 1566, o que desencadeou revoltas iconoclastas. À sua vez, a resposta da Coroa levou à Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), ao longo da qual os Países Baixos se partiram em duas porções: os senhorios meridionais, hoje Reino da Bélgica e Grão-Ducado de Luxemburgo, permaneceram católicos e leais ao soberano, enquanto os setentrionais, hoje Reino dos Países Baixos, se converteram ao calvinismo e formaram uma confederação de províncias livres, sob a liderança da Casa de Nassau, particularmente do príncipe de Orange. (1)

O que tudo isso tem a ver com o Brasil? Até a União Ibérica, absolutamente nada. Havia, na verdade, uma parceria entre os portugueses e os neerlandeses: aqueles carregavam os produtos ultramarinos para os Países Baixos e daí estes os distribuíam para o norte da Europa. No caso do açúcar brasileiro, os neerlandeses participavam até mesmo do transporte e refino. Porém sob os Habsburgos, Portugal ficou sujeito à política externa comum: em 1595, Filipe II embargou o comércio com as Províncias Unidas em todos os seus domínios. Como esse novo estado não podia assegurar a sua independência sem uma fonte propícia de recursos, fundou em 1602 a Vereenigde Oostindische Compagnie ('Companhia Unida das Índias Orientais'), ou VOC, e em 1621, a Geoctrooieerde Westindische Compagnie ('Companhia Autorizada das Índias Ocidentais'), ou WIC. Assim, os três estados coloniais portugueses ganharam rivais: a VOC competia com o estado da Índia e a WIC, com os estados do Brasil e do Maranhão. Efetivamente, desde as suas fundações e mesmo após a restauração da independência de Portugal em 1640, essas companhias holandesas atacaram quase todas as possessões portuguesas no ultramar.

Na América, a primeira agressão holandesa contra Portugal foi a conquista de Salvador em maio de 1624, ou seja, visou a atingir diretamente a cabeça do domínio português, já que essa cidade era a capital do estado do Brasil. Daí que a Coroa tenha enviado uma esquadra de 62 navios e 12.563 homens — a Jornada dos Vassalos — para retomá-la, o que se logrou em maio de 1625. Menos de cinco anos depois, em fevereiro de 1630, foram os holandeses que moveram uma esquadra de 67 navios e 7.280 homens, mas desta vez para invadir a rica capitania de Pernambuco. A partir do Recife, até então pouco mais que o porto de Olinda, apoderaram-se seguidamente de Igarassu (1632), Conceição e Natal (1633), Filipeia (1634), Sirinhaém, Alagoas, Porto Calvo, São Francisco, Sergipe e Ceará (1637) e mesmo de São Luís, capital do estado do Maranhão, ainda que por tempo muito breve (1641-44).

Zegel der Opperregeringe van Brazil, isto é, 'Selo do Supremo Governo do Brasil' (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).
Zegel der Opperregeringe van Brazil, isto é, 'Selo do Supremo Governo do Brasil' (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).

No primeiro momento, a WIC encarregou a administração dessas conquistas a um governador e ao Conselho Político (Politieke Raad), de nove membros, com sede no Recife. No entanto, desavenças entre essas autoridades levaram, já em 1632, a Companhia a delegar em dois dos seus diretores a chefia do governo por dois anos. Ao mesmo tempo, conservaram-se as câmaras municipais, se bem que se mudaram os nomes das povoações referentes ao domínio português: Conceição para Cidade de (Stad vanSchkoppe, Natal para Nova Amsterdã (Nieuw-Amsterdam), Filipeia para Frederícia (Frederikstad).

Groot Zegel van den Raad der Justitie in Brazil, isto é, 'Grande Selo do Conselho de Justiça no Brasil' (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).
Groot Zegel van den Raad der Justitie in Brazil, isto é, 'Grande Selo do Conselho de Justiça no Brasil' (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).

Em 1637, com a chegada de João Maurício de Nassau, conde de Nassau-Siegen, implantou-se uma reforma administrativa pela qual as competências do governador foram incrementadas e o Conselho Político foi rebaixado sob o Alto e Secreto Conselho (Hoge en Secrete Raad), composto por três diretores da WIC. Ainda assim, era do Conselho Político, dito Conselho de Justiça (Raad van Justitie) desde 1641, que se tiravam os diretores das jurisdições. Essas jurisdições (jurisdicties) correspondiam aos municípios do domínio português e para cada uma constituiu-se uma câmara de escabinos. Nos Países Baixos, os escabinos (schepenen em holandês, échevins em francês) eram magistrados que governavam as municipalidades juntamente com os burgomestres (burgemeesters em holandês, bourgmestres em francês), aqueles com competências judiciárias e estes com competências executivas. Não obstante, segundo Fernanda Trindade Luciani na sua dissertação de mestrado (2008), os escabinos do Brasil atuavam quase como os vereadores sob o domínio português.

Enfim, após a partida de Maurício de Nassau em 1644, o Alto e Secreto Conselho governou a colônia até 1646, quando deu lugar ao Alto Governo (Hoge Regering). Por então, fazia mais de um ano que estourara a rebelião que evoluiu para a Insurreição Pernambucana. Na verdade, graças à vitória na Batalha do Monte das Tabocas, em agosto de 1645, os insurretos já tinham tomado toda a capitania de Pernambuco, salvo o Recife, onde os holandeses se refugiaram. Daí tentaram romper o cerco, mas as derrotas que sofreram seguidamente nas duas batalhas dos Guararapes, em abril de 1648 e fevereiro de 1649, obrigaram-nos a suportar condições cada vez mais duras de resistência até que, em dezembro de 1653, uma esquadra de 64 navios, armada pela recém-criada Companhia Geral do Comércio do Brasil, fundeou no porto do Recife. Assediados há bastante tempo por terra e agora também por mar, os holandeses renderam-se em janeiro do ano seguinte  a famosa Capitulação da Campina do Taborda  ao que se seguiu a entrega das fortalezas nas demais capitanias.

Não obstante, Portugal e a Holanda só vieram fazer a paz em 1661, em Haia. Se pelo casus belli se tomar a captura da carraca Santa Catarina pela VOC em 1603 na costa de Singapura, as hostilidades entre os dois países arrastaram-se por 58 anos, com duas tréguas (1609-21; 1641-51, esta nunca praticada no ultramar). Exaustos e eclipsados pela ascensão do império britânico, conveio-lhes reduzir danos mais que se impor um ao outro: ambas as partes reconheceram o domínio do que cada uma possuía quando o tratado entrasse em vigor. Trocando em miúdos, Portugal cedeu as suas antigas possessões nas ilhas Molucas, em Malaca, no Ceilão, nas costas de Coromandel, do Malabar e do Ouro, enquanto a Holanda deixou de reivindicar as suas conquistas no Brasil, em Angola e em São Tomé. Além disso, Portugal abriu todos os seus domínios ao comércio com a Holanda e aceitou devolver a artilharia tomada no Recife aquando da rendição e pagar uma indenização de oito milhões de florins, em espécie ou em mercadorias.

Nesta série de postagens, abordarei uma das questões mais repetidas e menos estudadas da heráldica brasileira: os brasões do Brasil holandês. Além desta primeira postagem, desenvolverei a série ao longo de mais sete:

Nota:
O hino nacional holandês é um testemunho direto desses fatos. Composto entre 1568 e 1572, a primeira estrofe diz: "Wilhelmus van Nassouwe | ben ik, van Duitsen bloed, | den vaderland getrouwe | blijf ik tot in den dood. | Een Prinse van Oranje | ben ik, vrij onverveerd, | den Koning van Hispanje | heb ik altijd geëerd" ("Guilherme de Nassau, | sou eu, de sangue germano, | à pátria fiel | vou ser até a morte. | Um príncipe de Orange | sou, livre, impávido, | o rei da Espanha | sempre honrei").

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