Ainda que irreais, exercícios são instrutivos e, por isso, acabam esclarecendo a realidade mais do que aparentam.
Depois de todas as postagens desde o dia 24, resta algo desta matéria que possa interessar mais diretamente ao curioso brasileiro?
Em primeiro lugar, da mesma maneira como o direito heráldico português seguiu vigendo no Brasil independente, é possível traçar uma correspondência muito precisa entre a casa soberana da antiga metrópole e a da nova nação:
Casa Real Portuguesa
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Heráldica
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Casa Imperial Brasileira
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Rei de Portugal
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Armas do Reino. Coroa real.
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Imperador do Brasil
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Rainha de Portugal
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Escudo partido: no primeiro, as armas do Reino; no
segundo, as de seu pai. Coroa real.
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Imperatriz do
Brasil
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Príncipe de
Portugal
Príncipe do Brasil
(1645-1817)
Príncipe Real
(1817-1910)
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As armas do Reino; por diferença, um lambel de ouro de
três pendentes. Coroa de príncipe.
|
Príncipe Imperial
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Princesa de Portugal Princesa do Brasil
(1645-1817)
Princesa Real
(1817-1910)
|
Escudo partido: no primeiro, as armas do príncipe, seu
marido; no segundo, as de seu pai. Coroa de príncipe.
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Princesa Imperial
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Príncipe da Beira
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As armas do Reino; por diferença, um lambel de ouro de
três pendentes com três rosas de sua cor, cada uma brocante sobre um
pendente. Coronel de infante. Timbre: uma serpe nascente de ouro.
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Príncipe do
Grão-Pará
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Infantes de
Portugal
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As armas do Reino; por diferença, um lambel de ouro de
três pendentes com escudete quadrado das armas da linhagem materna, brocante sobre um ou
mais pendentes da sinistra à destra, segundo a ordem de nascimento: o
primeiro, sobre o primeiro pendente; o segundo, sobre o primeiro e o terceiro;
o terceiro, sobre os três; o quarto, com dois escudetes sobre o primeiro, e
assim sucessivamente. Coronel de infante. Timbre: uma serpe nascente de ouro.
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Príncipes do Brasil
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Infantas de
Portugal
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Lisonja partida: se solteira, o primeiro de prata lisa; se
casada, com as armas de seu marido; no segundo, as de seu pai. Coronel de infante.
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Princesas do Brasil
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Filhos, netos e
bisnetos dos infantes de Portugal
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As armas de seu pai diferençadas.
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Filhos, netos e
bisnetos dos príncipes do Brasil |
Eis os dados históricos. A partir daqui, faça cada um o exercício artístico que quiser, segundo a sua leitura, e submeta-o à crítica, que pode concordar ou apresentar outro ponto de vista. Neste sentido e como mero exercício acadêmico, consideremos a Família Imperial na década de oitenta, quando havia cinco varões e as duas irmãs mais velhas do imperador na linha de sucessão ao trono:
- Dom Pedro II (1825-91), imperador do Brasil;
- Dona Teresa Cristina de Bourbon (1822-89), imperatriz do Brasil;
- Dona Isabel de Bragança (1846-1921), princesa imperial do Brasil e condessa d'Eu, casada com Dom Gastão de Orleans (1842-1922), conde d'Eu e príncipe imperial consorte do Brasil;
- Dom Pedro de Alcântara de Orleans e Bragança (1875-1940), príncipe do Grão-Pará;
- Dom Luís de Orleans e Bragança (1878-1920), príncipe do Brasil;
- Dom Antônio de Orleans e Bragança (1881-1918), príncipe do Brasil;
- Dom Pedro Augusto de Coburgo e Bragança (1866-1934), príncipe do Brasil;
- Dom Augusto Leopoldo de Coburgo e Bragança (1867-1922), príncipe do Brasil.
- Dona Januária de Bragança (1822-1901), princesa do Brasil e condessa de Aquila, casada com Luís de Bourbon (1824-97), príncipe real das Duas Sicílias e conde de Aquila.
- Dona Francisca de Bragança (1824-98), princesa do Brasil e de Joinville, casada com Francisco de Orleans (1818-1900), príncipe de Joinville.
Começamos fácil: o imperador trazia as armas do Império. Não é excessivo enfatizar que este é o único dado histórico, pois mesmo os usos heráldicos da princesa Isabel ostentam essas armas unidas às da Casa de Orleans, à feição de armas de aliança. Com efeito, os testemunhos históricos, como uma escultura que se via no Paço de São Cristóvão (hoje Museu Nacional) e outra que se vê no frontispício do Château d'Eu (hoje Musée Louis-Philippe), demonstram que no Brasil precediam as armas nacionais e na França, as de Orleans.
Armas de Dona Teresa Cristina de Bourbon, imperatriz do Brasil: as armas do Império unidas às do Reino das Duas Sicílias sob a coroa imperial (1). |
Fácil também é o caso das armas da imperatriz: um escudo partido, no primeiro as armas do Império e no segundo as de seu pai, Francisco I das Duas Sicílias, isto é, o brasão desse reino, timbrado com a coroa imperial. No entanto, tanto as armas imperiais brasileiras como as reais duossicilianas assentam tão mal num escudo partido — aquelas por conterem figuras circulares, estas por serem complexíssimas — que o arranjo de armas de aliança é melhor opção, como atestado pela medalha comemorativa dessa união, cunhada por Zéphyrin Ferrez em 1843.
Armas putativas de Dona Isabel de Bragança, princesa imperial do Brasil: as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes; timbre: a coroa de príncipe imperial. |
Da segunda geração em diante, as coisas ficam menos fáceis, porque o sistema de diferenças foi concebido para os varões, porém a varonia dos Braganças se extinguiu precisamente em Pedro II do Brasil. De todo modo, como estamos falando de armas de dignidade, a princesa imperial teria, sem dúvida, trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes.
Da mesma maneira, o príncipe do Grão-Pará teria trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes, com três rosas de sua cor, cada uma brocante sobre um pendente.
Ao passarmos aos príncipes do Brasil, a dificuldade torna-se incontenível. A regra era sobrepor escudetes das armas maternas aos pendentes do lambel, mas como, se era através das mães que entroncavam na dinastia? Os exemplos históricos demonstram que quando a mãe pertencia à mesma casa, subia-se pelos ramos da sua linhagem até topar com armas distintas de soberania. No caso, as das Duas Sicílias, pela avó materna. O problema é que estas se compunham de várias outras. Para se ter uma ideia, para destrinçá-las seria preciso partir de Fernando III o Santo, que uniu os reinos de Castela e Leão em 1230, e vir até Carlos de Bourbon, que conquistou os reinos de Nápoles e Sicília em 1734 e os legou a Fernando, seu terceiro filho varão, quando ascendeu ao trono espanhol em 1759 com o nome de Carlos III.
Assim, a segunda pergunta é: ter-se-iam simplesmente seguido as precedências dos componentes das armas reais das Duas Sicílias? O problema é que depois do dinástico — o escudete de Bourbon-Anjou sobre o todo (cunhado por Zéphyrin Ferrez na medalha comemorativa do noivado de Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina em 1842) — o segundo seria o esquartelado de Castela e Leão, pertencente a um estado que Francisco I não regia, o que podia parecer inapropriado. De fato, de todos os componentes, somente dois eram "nativos": as armas de Aragão-Sicília e as de Anjou-Sicília. Não obstante, podia-se remontar até outras ancestrais. No caso, até a imperatriz Leopoldina de Habsburgo-Lorena, bisavó dos príncipes pela linhagem materna, cuja casa trazia um escudo terciado das armas de Habsburgo, da Áustria e da Lorena.
Com base nestes dados, pode-se aventar que o príncipe Dom Luís poderia ter trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes, com um escudete quadrado de Aragão-Sicília, brocante sobre o terceiro pendente.
O príncipe Dom Antônio poderia ter trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes com dois escudetes quadrados, o primeiro partido de Anjou-Sicília e Jerusalém, brocante sobre o primeiro pendente, e o segundo de Aragão-Sicília, sobre o terceiro.
O príncipe Dom Pedro Augusto poderia ter trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes com três escudetes quadrados, o primeiro da Áustria, brocante sobre o primeiro pendente, o segundo partido de Anjou-Sicília e Jerusalém, sobre o segundo, e o terceiro de Aragão-Sicília, sobre o terceiro.
O príncipe Dom Augusto Leopoldo poderia ter trazido as armas do Império e, por diferença, um lambel de ouro de três pendentes com três escudetes quadrados, o primeiro da Lorena, brocante sobre o primeiro pendente, o segundo da Áustria, sobre o segundo, e o terceiro partido de Anjou-Sicília e Jerusalém, sobre o terceiro.
Armas putativas de Dona Januária de Bragança, princesa do Brasil: lisonja partida, no primeiro as armas médias das Duas Sicílias (2); no segundo, as armas do Império; coronel de infante. |
A princesa Dona Januária poderia ter trazido uma lisonja partida, no primeiro as armas médias das Duas Sicílias (2); no segundo, as armas do Império.
Armas putativas de Dona Francisca de Bragança, princesa do Brasil: lisonja partida, no primeiro as armas da Casa de Orleans (3); no segundo, as armas do Império; coronel de infante. |
A princesa Dona Francisca poderia ter trazido uma lisonja partida, no primeiro as armas da Casa de Orleans (3); no segundo, as armas do Império.
A dificuldade de compor armas tanto singelas, como as de Orleans, como complexas, como as das Duas Sicílias, numa lisonja partida fica patente. Talvez por isso no século XIX se tenha difundido o arranjo de armas de aliança, geralmente unindo dois escudos ovais.
Quanto às coroas, é de se admitir que a princesa imperial teria timbrado o seu escudo com uma coroa de três diademas visíveis, como se vê noutra medalha cunhada por Zéphyrin Ferrez em 1848, esta alusiva à morte do príncipe imperial Dom Afonso no ano precedente. Obviamente, tal objeto jamais existiu e teria consistido numa figura meramente heráldica. O mesmo se pode dizer sobre o coronel do príncipe do Grão-Pará, dos príncipes e das princesas do Brasil: pelo uso português, teria sido o coronel de infante, do qual sairia a serpe de ouro, inquestionavelmente o timbre da Casa Imperial Brasileira.
Para mim, o mais interessante deste exercício é provar algo que repeti algumas vezes a respeito da heráldica gentilícia: o sistema parecia automático, mas necessitava um operador. Eu mesmo omiti os suportes dos escudos timbrados com o coronel de infante e a serpe por motivação meramente estética. Trocando em miúdos, aplicando o regimento manuelino, são bastantes unívocos os casos das armas da princesa imperial e do príncipe do Grão-Pará, mas o ordenamento daquelas dos príncipes do Brasil é subjetivo: teria cabido ao rei de armas do Império. Daí que ele fosse, precisamente, o juiz da nobreza: havia um direito heráldico bem estabelecido, mas era preciso que uma autoridade o operasse.
(1) O Decreto n.º 4.069, de 21 de dezembro de 1816, que definiu as armas e os selos reais das Duas Sicílias, brasona-as assim: "Partito di tre: nel primo grande partito, partito di due e troncato di uno: nel I e nel VI d'oro, a sei gigli d'azzurro, 3, 2, 1 (Farnese); nel II e nel IV di rosso, alla fascia d'argento (Austria); nel III e nel V bandato d'oro e d'azzurro (Borgogna antica); sul tutto uno scudetto d'argento, a cinque scudetti d'azzurro, posti in croce, caricati di cinque bisanti d'argento, messi in decusse, con la bordura di rosso, caricata di sette torri d'oro, aperte d'azzurro (Portogallo). Nel secondo gran partito, troncato di due: nel I inquartato: a) e d) di rosso, al castello d'oro, torricellato di tre pezzi, merlato alla guelfa, aperto e finestrato d'azzurro (Castiglia); b) e c) d'argento, al leone di rosso, coronato d'oro (León); innestato in punta d'argento, alla melagranata di rosso, stelata e fogliata di verde (Granata); nel II di rosso, alla fascia d'argento (Austria); nel III troncato: a) tagliato centrato: nel 1.º bandato d'oro e d'azzurro, alla bordura di rosso (Borgogna antica); nel 2.º d'oro, al leone di nero, linguato di rosso (Fiandra); b) d'azzurro, seminato di gigli d'oro, al lambello di rosso a cinque pendenti (d'Angiò antico o Napoli). Nel terzo gran partito, troncato di due: nel I partito: a) d'oro, a quattro pali di rosso (Aragona); b) inquartato in decusse: nel 1.º e nel 4.º d'oro, a quattro pali di rosso; nel 2.º e nel 3.º d'argento, all'aquila spiegata e coronata di nero (Aragona-Sicilia); nel II d'azzurro, seminato di gigli d'oro, alla bordura composta di rosso e d'argento (Borgogna moderna); nel III troncato: a) trinciato centrato: nel 1.º di nero, al leone d'oro, linguato di rosso (Brabante); nel 2.º d'argento, all'aquila al volo spiegato di rosso, membrata, imbeccata e coronata d'oro, legata a trifoglio dello stesso, posta in banda (Tirolo); b) d'argento, alla croce potenziata d'oro, accantonata da quattro crocette dello stesso (Gerusalemme). Nel quarto ed ultimo gran partito: d'oro, a cinque palle di rosso, poste in cinta, accompagnate da un'altra d'azzurro, caricata di tre gigli d'oro, 2, 1 (Medici). Sul tutto d'azzurro, a tre gigli d'oro, 2, 1, alla bordura di rosso (Borbone-Angiò)" ("Partido de três: no primeiro grande partido, partido de dois e cortado de um: no I e no VI de ouro com seis flores de lis de azul, 3, 2, 1 (Farnésio); no II e no IV de vermelho com uma faixa de prata (Áustria); no III e no V bandado de ouro e de azul (Borgonha antiga); sobre o todo um escudete de prata com cinco escudetes de azul, postos em cruz, carregados de cinco besantes de prata, postos em aspa, e uma bordadura de vermelho, carregada de sete torres de ouro, abertas de azul (Portugal). No segundo grande partido, cortado de dois: no I esquartelado: a) e d) de vermelho com um castelo de ouro, torreado de três peças, ameado quadrado, aberto e iluminado de azul (Castela); b) e c) de prata com um leão de vermelho, coroado de ouro (Leão); embutido em ponta de prata com uma romã de vermelho, sustida e folhada de verde (Granada); no II de vermelho com uma faixa de prata (Áustria); no III cortado: a) talhado centrado: no 1.º bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho (Borgonha antiga); no 2.º de ouro com um leão de negro, lampassado de vermelho (Flandres); b) de azul, semeado de flores de lis de ouro, com um lambel de vermelho de cinco pendentes (d'Anjou antigo ou Nápoles). No terceiro grande partido, cortado de dois: no I partido: a) de ouro com quatro palas de vermelho (Aragão); b) franchado: no 1.º e 4.º de ouro com quatro palas de vermelho; no 2.º e 3.º de prata com uma águia estendida e coroada de negro (Aragão-Sicília); no II de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de vermelho e de prata (Borgonha moderna); no III cortado: a) fendido centrado: no 1.º de negro com um leão de ouro, lampassado de vermelho (Brabante); no 2.º de prata com uma águia de voo estendido de vermelho, membrada, bicada e coroada de ouro, ligada por um trifólio do mesmo, posta em banda (Tirol); b) de prata com uma cruz potenciada de ouro, acantonada de quatro cruzetas do mesmo (Jerusalém). No quarto e último grande partido: de ouro com cinco arruelas de vermelho, postas em orla, acompanhadas de outra de azul, carregada de três flores de lis de ouro, 2, 1 (Médici). Sobre o todo de azul com três flores de lis de ouro, 2, 1, e uma bordadura de vermelho (Bourbon-Anjou)").
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