05/08/21

A "HIPEREMBLEMATIZAÇÃO"

No nosso tempo, o eixo da heráldica moveu-se das pessoas físicas para as jurídicas, o que talvez esteja gerando uma nova "hiperemblematização".

Na postagem de 16/02, citei o grande heraldista Michel Pastoureau (1987), para quem a sociedade aristocrática da Idade Média tardia era "suremblématisée". Não só o cavaleiro trazia o seu brasão da cabeça aos pés — na cota, no escudo, na gualdrapa —, mas fora do ambiente cavalheiresco, as pessoas armoriavam os mais variados objetos, desde paredes até as próprias vestes. Mas após a reflexão na postagem anterior, fiquei pensando: será que a sociedade hodierna não está, também, "hiperemblematizada"?

No fim do Medievo, eram os indivíduos que através da heráldica se faziam identificar em relações sociais de toda a sorte. Depois de o fenômeno atingir o pico, em que a própria heráldica não bastou à superabundante demanda — daí a moda das empresas ou divisas —, ao longo da Idade Moderna o brasão veio perdendo terreno para outro identificador, com o qual foi comparado desde o primeiro tratado sobre a matéria: o nome. Com efeito, a heráldica clássica, quando qualquer um assumia armas para si, desenvolveu-se em meio a um analfabetismo generalizado, o que tornava identificadores visuais muito úteis: serviam tanto a um príncipe para chancelar um documento como a um artesão para patentear num produto a sua lavra.

No entanto, à medida que a cultura escrita avançava, mais gente se tornava capaz de se identificar mediante o seu autógrafo. A própria nobreza, antes guerreira e rude, fez-se burocrata e cortesã. Não obstante, como o sistema se reconfigurou para marcar fidalguia e honra, o brasão persistiu. Contudo, a heráldica gentilícia não escapou aos efeitos da Revolução Francesa, pois em toda a parte ou se deixou de reconhecer a nobreza ou se aboliram os seus privilégios. Hoje, poucas pessoas físicas têm brasões e mesmo para aqueles que têm não restam muitos âmbitos de uso.

Em contrapartida, atualmente são as pessoas jurídicas que através da heráldica se fazem identificar em relações de toda a sorte. Não só a heráldica. Se a empresa ou divisa resulta da "hiperemblematização" do século XV para o XVI, o logotipo resulta da "hiperemblematização" do século XX para o XXI. Como naquele tempo, as marcas são aplicadas nos mais variados objetos, de acordo com as atividades que os seus proprietários desenvolvem. No meu entorno, por exemplo, a marca do IFRN é vista em canetas, blocos de notas, pastas, pendrives etc., para mencionar apenas alguns materiais de consumo.

De fato, chegamos ao ponto em que não só as pessoas jurídicas, mas também qualquer departamento quer possuir um emblema próprio. No IFRN, certas instâncias criaram marcas para si em detrimento da institucional. O mesmo ocorre nas paróquias, onde a pastoral da comunicação costuma ostentar uma marca diferente da paroquial. Na minha opinião, isto comporta um efeito positivo e outro negativo. O negativo é causar uma poluição semiótica num simples ato ou artefato, como uma postagem em rede social, turvando o fato de que a pessoa jurídica responsável é uma só. O positivo é que, no intuito de pôr ordem, surgiu o sistema de identidade visual.

A meu ver, o sistema de identidade visual comporta potenciais muito interessantes para a heráldica contemporânea. Observo esses potenciais bem explorados pelo estado britânico, por exemplo. Com efeito, como a Grã-Bretanha tem uma história constitucional muito particular, não há armas estatais ou nacionais diferentes das reais. Na verdade, não se encontra sequer brasonamento oficial das ditas armas reais (considero oficial um ordenamento que conste de um ato legal ou registro público). No entanto, estão sobejamente descritas na literatura heráldica desde sempre. Com base nisso, brasono-as assim em português:

Esquartelado, o primeiro e quarto de vermelho com três leopardos de ouro, alinhados em pala; o segundo de ouro com um leão de vermelho, encerrado numa orleta dupla florenciada e contraflorenciada do mesmo; o terceiro de azul com uma harpa de ouro, cordada de prata. Em volta do escudo, a Jarreteira. Elmo real. Paquife de ouro e arminho. Coroa real. Timbre: um leopardo parado de ouro, cingido da coroa real ao natural. Suportes: à destra, um leopardo aleonado de ouro, cingido da coroa real ao natural, e à sinistra, um unicórnio de prata, armado, crinado e unhado de ouro, coleirado de um coronel de cruzes páteas e flores de lis de ouro e acorrentado do mesmo, a corrente, presa ao coronel, passando entre as suas patas dianteiras e sobre o lombo. Terraço de rosas da União, cardos e trevos ao natural. Divisa: Dieu et mon droit (1).

As particularidades não ficam aí. Há uma "versão" escocesa. Na verdade, como se constata abaixo, trata-se de um brasão diferente, mas neste caso o jurídico predomina sobre o técnico, pois não se diz que a rainha da Grã-Bretanha tem dois brasões, e sim que na Escócia as armas reais são ordenadas como segue:

Esquartelado, o primeiro e quarto de ouro com um leão de vermelho, encerrado numa orleta dupla florenciada e contraflorenciada do mesmo; o segundo de vermelho com três leopardos de ouro, alinhados em pala; o terceiro de azul com uma harpa de ouro, cordada de prata. Em volta do escudo, o colar da Ordem do Cardo. Elmo real. Paquife de ouro e arminho. Coroa real. Timbre: um leão de vermelho, sentado de frente, cingido da coroa real e segurando uma espada e um cetro, tudo ao natural. Grito de guerra: In defens (2). Suportes: à destra, um unicórnio de prata, armado, crinado e unhado de ouro, cingido da coroa real ao natural, coleirado de um coronel de cruzes páteas e flores de lis de ouro, acorrentado do mesmo, a corrente, presa ao coronel, passando entre as suas patas dianteiras e sobre o lombo, e segurando uma haste de sua cor, guarnecida de ouro, da qual tremula para a destra um estandarte de Santo André, e à sinistra, um leopardo aleonado de ouro, cingido da coroa real ao natural, segurando uma haste parelha, da qual tremula para a sinistra um estandarte de São Jorge. Terraço de cardos ao natural. Divisa: Nemo me impune lacessit (2).

É claro que armas tão antigas — o escudo remonta a 1837  têm sido diversamente reproduzidas. Atualmente, a Casa Real usa os desenhos seguintes, contidos na Guidance on the use of Royal Arms, names and images, emitida pelo Lord Chamberlain's Office ('Escritório do Camareiro-Mor').

Armas reais da Grã-Bretanha.
Armas reais da Grã-Bretanha.

Armas reais da Grã-Bretanha usadas na Escócia.
Armas reais da Grã-Bretanha usadas na Escócia.

Em cores:

Armas reais da Grã-Bretanha (imagem disponível no site de The Royal Warrant Holders Association).
Armas reais da Grã-Bretanha (imagem disponível no site de The Royal Warrant Holders Association).

Uma versão simplificada encabeça os atos do parlamento britânico: omitem-se o elmo, o timbre e o terraço.

Armas reais da Grã-Bretanha usadas nos atos do Parlamento britânico.
Armas reais da Grã-Bretanha usadas nos atos do parlamento britânico.

Essa versão é bastante semelhante à usada pelo governo britânico (Her Majesty's Government):

Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo Governo britânico.
Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo governo britânico.

A mesma simplificação é aplicada às armas reais usadas na Escócia pelas instâncias do governo britânico que são voltadas diretamente para esse país:

Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo Governo britânico para a Escócia.
Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo governo britânico para a Escócia.

Há, ainda, uma versão mais simplificada  sem os suportes nem a divisa —, trazida pelo Home Office ('Ministério do Interior').

Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo Ministério do Interior (Home Office) do Governo britânico.
Armas reais da Grã-Bretanha usadas pelo Home Office ('Ministério do Interior').

Como se percebe, o estilo desses três desenhos é o que se poderia chamar de "logotipado": eliminam-se detalhes tanto quanto possível. De fato, integram o sistema de identidade governamental.

Sistema de identidade do governo britânico (imagem disponível no Blog Design102).
Sistema de identidade do governo britânico (imagem disponível no Blog Design102).

O manual que guia esse sistema comprova que a heráldica e as artes visuais contemporâneas podem engendrar frutos ótimos. Por exemplo, sobre as armas reais dispõe:

The government identity system places the Royal Coat of Arms at the heart of all government logos.
The Queen is Head of State, and the United Kingdom is governed by Her Majesty's Government in the name of the Queen. The Royal Coat of Arms is personal to the Queen and, because of the constitutional relationship between the Sovereign and government, central government departments and their executive agencies and arm's length bodies are required to use the approved versions of the Royal Coat of Arms, and must adhere to the principles specified by the College of Arms:
  • The Royal Coat of Arms should not be used in isolation. It should always be used in conjunction with the department or organisation name.
  • HM Government logos using the Royal Coat of Arms should, wherever possible, adhere to the superior rule. The superior rule ensures that logos using the Royal Coat of Arms have prominence and authority. To achieve this, logos must be placed at the top of any communications, adhering to the exclusion zone illustrated on page 19. In certain cases it may not be possible to adhere to the superior rule, for example online or when co-branding, in which case the logo must have equal prominence to that of its partners.
  • For consistency, the Royal Coat of Arms should be reproduced in black or white only. In specific instances it is possible to reproduce the Royal Coat of Arms in a single colour, however, it should never be a metallic colour (e.g. silver or gold), as such colours have a Royal association.
  • The Royal Coat of Arms should not be used as a watermark or overprinted.
  • The official versions of the Royal Coat of Arms are not to be altered, distorted or modified in any way.
  • Care should be taken to ensure that the Royal Coat of Arms within a department's/organisation's logo is given due respect. (3)

Como se vê, o conhecimento da armaria, assegurado pelo College of Arms, a autoridade heráldica do Reino Unido (exceto a Escócia, que está sob a jurisdição da Court of the Lord Lyon), evita que a "hiperemblematização" das pessoas jurídicas que fazem parte da Coroa britânica descambe para a poluição semiótica. Graças a esse conhecimento, discerne-se perfeitamente que um brasão não é um desenho, mas um conceito que se realiza por meio das artes visuais. Tais realizações podem, evidentemente, apresentar diferentes estilos, inclusive o da moda. Assim, se a moda atual dita um desenho minimalista para as marcas, nada impede reproduzir um brasão nesse estilo.

Além disso, valendo-se de um recurso heráldico e outro não heráldico, demonstra-se que vários órgãos podem usar das mesmas armas. O recurso heráldico é que se tais armas forem complexas, é possível simplificá-las, omitindo-se certos ornamentos externos. O recurso não heráldico é que nas marcas governamentais às armas se apõe o nome do órgão. Dessa maneira, distinguem-se uma versão que representa mais diretamente a pessoa da monarca e outra, mais diretamente o estado. Uma terceira versão distingue o ministério que governa os aparelhos repressivos do estado. Depois, cada componente do executivo é identificado pelo seu próprio nome sob as armas (master logo 'logotipo principal') ou ao lado delas (secondary logo 'logotipo secundário').

Apesar de todas as virtudes, a imitação de um caso como este comporta uma dificuldade considerável: demanda um profissional ou uma equipe minimamente versada em heráldica e design, algo raríssimo, ao menos no Brasil.

Nota:
(1) Significa 'Deus e o meu direito' e está em francês porque foi a língua oficial da Inglaterra durante a dinastia dos Plantagenetas.
(2) Na verdade, In my defens God me defend é a divisa real da Escócia, ao passo que Nemo me impune lacessit é a divisa da Ordem do Cardo. A primeira significa 'Em minha defesa Deus me defenda' e está no escocês das Terras Baixas; a segunda significa 'Ninguém me provoca impunemente' e está em latim. Como a primeira fica acima do timbre, acaba sendo entendida como um grito de guerra.
(3) "O sistema de identidade governamental coloca as Armas Reais no centro de todos os logotipos governamentais. A Rainha é Chefe de Estado e o Reino Unido é governado pelo Governo de Sua Majestade em nome da Rainha. As Armas Reais são pessoais da Rainha e, por causa da relação constitucional entre a Soberana e o governo, os departamentos do governo central e as suas agências executivas e órgãos autônomos são obrigados a usar as versões aprovadas das Armas Reais e devem seguir os princípios especificados pelo College of Arms: As Armas Reais não devem ser usadas isoladamente. Devem sempre ser usadas juntamente com o nome do departamento ou organização. Os logotipos do Governo de Sua Majestade ao usarem as Armas Reais devem, sempre que possível, cumprir a regra superior. A regra superior garante que os logotipos que usam as Armas Reais tenham proeminência e autoridade. Para isso, os logotipos devem ser colocados no alto de qualquer comunicação, obedecendo à zona de exclusão ilustrada na página 19. Em certos casos, pode não ser possível cumprir a regra superior, por exemplo online ou com outra marca. Nesse caso, o logotipo deve ter destaque igual ao dos seus parceiros. Por coerência, as Armas Reais devem ser reproduzidas somente em preto ou branco. Em casos específicos, é possível reproduzir as Armas Reais numa única cor; no entanto, nunca deve ser uma cor metálica (por exemplo, prata ou ouro), pois essas cores são associadas à Realeza. As Armas Reais não devem ser usadas como marca d'água ou impressas. As versões oficiais das Armas Reais não devem de nenhuma forma ser alteradas, distorcidas ou modificadas. Deve-se ter cuidado para garantir que as Armas Reais dentro do logotipo de um departamento/organização sejam devidamente respeitadas." (tradução minha)

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