08/03/21

EMBLEMAS CONVERSÍVEIS

Nem tudo que se põe dentro de um escudo constitui um brasão, mas se o conceito for singelo, é possível convertê-lo para fazer do emblema um brasão correto, como o de Acari.

Dando continuidade à série iniciada pela postagem anterior, sobre possíveis desdobramentos de uma mais que improvável regulação da heráldica municipal brasileira, o segundo exemplo que venho dar é o emblema de Acari, um caso ilustrativo de "insignoide".

Acari é a segunda povoação mais antiga do Seridó. A Capela de Nossa Senhora da Guia foi elevada a freguesia em 1835, desmembrada da do Príncipe (Caicó). O povoado foi elevado a vila em 1833 e esta a cidade em 1898. Tinha 11.121 habitantes em 2020. O seu PIB (R$ 115.847.330) era o 66.º do estado em 2018 e o IDH (0,679), o oitavo em 2010.

O emblema de Acari parece um brasão, porque contém um escudo, mas não é brasonável. A linguagem heráldica estrutura-se em figuras e predicativos. Muitas figuras possuem predicativos por defeito: as peças têm larguras convencionais, as plantas em geral mostram as suas raízes, os animais costumam ficar de perfil etc., de modo que se uma peça estiver mais curta, uma planta tiver as raízes cortadas ou um animal olhar de frente, é preciso indicar. Tudo funciona como se fosse costurado, uma coisa sobre outra, começando pelo campo e pela figura principal, e deve ser expresso mediante termos como acompanhado, brocantecarregado, encimadofirmado, movente, rematado etc. Isso torna a arte heráldica precisamente o que ela é: bidimensional, estilizada, alegórica.

Emblema de Acari. Imagem disponível no perfil da prefeitura no Facebook.
Emblema de Acari. Imagem disponível no perfil da prefeitura no Facebook.

O emblema de Acari não é brasonável porque consiste numa vinheta do açude Gargalheiras, oficialmente Marechal Dutra. Pessoalmente, não entendo por que um município criado em 1833 escolheu ser representado por uma barragem de 1959. Ainda que seja deslumbrante, penso que o passado ou mesmo a toponímia poderiam ter fornecido figuras mais dignas da rica história acariense. Seja como for, não vem ao caso. O ponto é que, felizmente, não é tão difícil ordenar um açude à luz da heráldica, especialmente um como o Gargalheiras, que, como o nome assinala, fica numa garganta do rio Acauã.

Proposta de brasão para Acari: de azul com um pano de muralha de prata, lavrado de negro, firmado num vale de verde e num pé de prata, aguado de azul, acompanhado de uma estrela de oito raios de prata em chefe; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodão de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Communia sunt illa, escrita de negro em listel de prata.
Proposta de brasão para Acari: de azul com um pano de muralha de prata, lavrado de negro, firmado num vale de verde e num pé de prata, aguado de azul, acompanhado de uma estrela de oito raios de prata em chefe; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodão de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Communia sunt illa, escrita de negro em listel de prata.

Sem mais delongas, proponho o ordenamento seguinte: de azul com um pano de muralha de prata, lavrado de negro, firmado num vale de verde e num pé de prata, aguado de azul, acompanhado de uma estrela de oito raios de prata em chefe; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodão de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Communia sunt illa, escrita de negro em listel de prata.

Observe, prezado leitor, a primeira e fundamental diferença: em heráldica, não se costumam figurar lugares, pessoas ou objetos específicos por uma série de razões, seja porque quem não conhece a referência tem dificuldade em captá-la (quem olha o desenho acima e não conhece o Gargalheiras pode duvidar se é um lago que escoa através duma cachoeira, por exemplo), seja porque o artista tem de buscar uma imagem da figura para ver como é e, então, desenhá-la ou porque o desenho precisa ter três dimensões para deixar a referência reconhecível, o que nos leva à segunda diferença: a perspectiva. De fato, concebi a barragem por dentro para figurá-la em duas dimensões, como convém.

Passando, pois, ao comentário detalhado, o campo é de azul para preservar o aspecto de paisagem: o azul do céu. Logo, a figura principal deve ser de metal. Escolhi a prata porque o sangradouro do Gargalheiras é feito de concreto cinzento. Por que um pano de muralha? Por causa da origem medieval da heráldica. De modo geral, na armaria as construções são de pedra lavrada, tal como no ocidente europeu baixo-medieval: se o ordenamento diz "cidade", desenha-se uma cidade amuralhada, da qual aparecem torres, muros de palácios e telhados; se diz "vila", um conjunto de casas em torno de uma igreja, tudo de pedra; se diz "ponte", uma de arcos, também de pedra, etc. Noutras palavras, a figura heráldica cidade não reproduz certa cidade, mas denota o conceito de cidade, e o mesmo vale para qualquer outra figura.

Açude Gargalheiras, oficialmente Marechal Dutra (capacidade total: 44.421.480 m³). Imagem disponível no perfil do IGARN no Twitter.
Açude Gargalheiras, oficialmente Marechal Dutra (capacidade total: 44.421.480 m³). Imagem disponível no perfil do IGARN no Twitter.

Para denotar o conceito de barragem, o pano de muralha fica firmado num vale e num pé aguado. O vale é outro exemplo de figura que em heráldica possui um desenho convencional: põem-se duas metades de montes, cada uma firmada num flanco do escudo, e elas unem-se no meio deste. Iluminei-o de verde outra vez para preservar o aspecto de paisagem. O pé é uma peça, também denominada campanha e contrachefe; particularmente, prefiro dizer campanha quando representa terra e  quando representa água, ao passo que evito contrachefe, porque fere a minha sensibilidade de filólogo (chef significa 'cabeça' em francês antigo, então "contracabeça"?...). O aguado são ondulações que simulam marolas. Para contrastar com o campo do escudo, iluminei o pé de prata e o aguado de azul. (1)

Detalhe da imagem primitiva de Nossa Senhora da Guia, venerada na igreja matriz de Acari. Imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook.
Detalhe da imagem primitiva de Nossa Senhora da Guia, venerada na igreja matriz de Acari. Imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook.

Enfim, ao contemplar o chefe vazio, não resisti à ausência de qualquer nota histórica e resolvi pôr aí uma estrela. É que Acari surgiu em volta da Capela de Nossa Senhora da Guia a partir de 1737. A própria emancipação aconteceu graças à ação do capelão Tomás Pereira de Araújo. Com efeito, é um caso insólito, pois a elevação do povoado a vila, ainda pelo Conselho Geral da Província, antecedeu a da capela a freguesia. Quando aquele deu lugar à Assembleia Legislativa Provincial, o padre Tomás Pereira foi eleito deputado, aprovou-se a ereção da capela e confirmou-se a do povoado. Foi também o primeiro pároco e durante o seu pastoreio foi erguida a grande igreja matriz, acabada em 1863, sendo a matriz primitiva rededicada a Nossa Senhora do Rosário, hoje tombada pelo IPHAN (2). Ao fim e ao cabo, o título de Nossa Senhora da Guia é tão singular, o seu atributo icônico é tão singelo, a sua festa é um patrimônio tão incontestável da cultura acariense que a estrela-guia me parece uma figura bem mais bela e significativa do que o irreconhecível minério de scheelita que se vê no emblema vigente dentro de um quadrado abaixo do escudo.

Precisamente, quanto aos ornamentos externos, a coroa mural é a que tenho adotado e justifiquei na postagem de 02/03 e os ramos de algodoeiro referem ao ciclo do algodão, de que tratei na de 26/02. Resta, portanto, a divisa. Significa "Eles são comuns" e fui buscá-la em Marciano, jurista romano do século III. O preceito completo acha-se no Digesto (1, 8, 2, 1): "Et quidem naturali jure omnium communia sunt illa: aer, aqua profluens et mare, et per hoc litora maris", ou seja, "Com efeito, por direito natural eles são comuns a todos: o ar, a água corrente e o mar, e portanto as costas do mar". Ora, um reservatório de água tão grandioso, a ponto de se tornar o símbolo do município, pressupõe que tal elemento é estimado como um bem valiosíssimo. Então, nada mais cívico que defender o meio ambiente como bem comum. Afinal, Acari orgulha-se de se intitular "a cidade mais limpa do Brasil".

Notas:
(1) Sobre esse aspecto da terminologia heráldica, leia-se a postagem de 10/02; sobre o aguado, a postagem de 24/02.
(2) Em 25 de março deste ano, o papa Francisco concedeu o título de basílica menor à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Guia de Acari. Segundo o decreto Domus ecclesiæ, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, uma basílica menor é uma igreja que goza de certo renome na sua diocese e possui um valor histórico e arquitetônico considerável. Esse reconhecimento e honra reforça, pois, o meu argumento.

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