A heráldica é como uma língua: as figuras funcionam como vocábulos e as regras da armaria, como uma gramática.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le second chapitre : de quelle manière on fait armes.
Il est à savoir que toutes armes sont composées de trois choses, c'est à savoir, de métal, de couleur ou de panne, ou d'aucune d'icelles, comme ci-après sera déclairé.
O segundo capítulo: de que modo se fazem as armas.
Cumpre saber que todas as armas são compostas de três coisas, a saber, de metal, de cor ou de forro, ou de alguma destas, como a seguir será esclarecido.
Comentário:
Este capítulo é tão lacônico que mais parece resultado da intenção em dividir o tratado exatamente em doze partes. Talvez por isso o redator da cópia contida no códice Français 18651, conservado na Bibliothèque nationale de France, tenha sentido a necessidade de o estender um pouco mais. Em francês:
Toutes armes sont bien composées de trois choses, à savoir, de métal, de couleur et de panne, ou d'aucunes choses d'icelles. Aussi en y a-t-il de bestes, oiseaux, fleurs, coquilles et croissants, et d'autres choses, car il a pleü aux princes les concéder et à la partie les demander, dont il advient souvent les unes estre fausses et les autres vraies, par la faute que ceux que font les demandes d'armories n'ont l'intelligence de ce comprendre et entendre, comme ci-après sera déclairé.
Em português:
Todas as armas são bem compostas de três coisas, a saber, de metal, de cor e de forro, ou de algumas coisas dessas. Também há bestas, aves, flores, conchas e crescentes, e outras coisas, já que aprouve aos príncipes concedê-las e à parte interessada requerê-las, do que advém amiúde serem umas falsas e as outras verdadeiras, pelo erro de aqueles que fazem as requisições de brasões não terem a inteligência de compreender e entender isso, como a seguir será esclarecido.
Apesar da concisão, as colocações podem dar azo a comentários pertinentes. Em primeiro lugar, o preceito de que todas as armas são compostas de metal, cor ou pele (1) quer dizer que para ordenar um brasão é indispensável que haja um campo, o qual, como razoei numa série de postagens, não é necessariamente um escudo, pois pode ser uma bandeira, uma vestimenta ou certa superfície de um edifício. Além disso, se é certo que o escudo se tornou o campo por antonomásia, cabe advertir que nem tudo que se põe num escudo constitui um brasão.
Depois, o que o texto estendido indica é que a heráldica desconhece limites quanto às figuras que contempla. Por mais que os leões se repitam na heráldica gentilícia, as cruzes na eclesiástica ou os castelos na municipal, o repertório está sempre aberto. Como genialmente disse Bártolo, "a arte imita a natureza tanto quanto pode". Isso parece contradizer a advertência de que nem todo escudo carregado de figuras é um brasão. É que neste aspecto, como noutros, a heráldica funciona como uma língua: o léxico recebe permanentemente itens novos e o que a gramática regula é a formação e a ordem desses itens ou, em termos técnicos, a morfologia e a sintaxe.
Com efeito, o arauto que escreveu o De ministerio armorum, um tratado de 1416 que venho citando há algum tempo (vide as postagens de 14/03 e 18/03), afirma algo pertinente ao assunto: "cognitio seu notitia insigniorum armorum supradictorum ac servitorum ipsorum, sicut convenit heraldis principum in armis scire, ea sola convenit notitia illis de Europa" (2). De certo modo, isso ainda se verifica: todos os países têm hoje pelo menos um emblema estatal, mas muitos, especialmente no mundo muçulmano e noutras civilizações asiáticas, não usam de brasões. Todavia, os reinos da Comunidade britânica acabam graduando isso: espalhados pela Europa, América e Oceania, neles a heráldica é controlada pelo College of Arms, salvo na Escócia, que está sob a jurisdição da Court of the Lord Lyon, e no Canadá, que possui a sua própria Heraldic Authority/Autorité héraldique. Nessa armaria transcontinental, o bisão canadense tem tanta cabida quanto o cavalo de Kent; a pega australiana, quanto as merletas de Sussex; os ananases jamaicanos, quanto as peras de Worcester.
Armas do território de Nunavut, Canadá: de ouro à destra com um qulliq de negro, aceso de vermelho, e à sinistra com um inuksuk de azul; chefe de azul, carregado de cinco besantes de ouro, postos em arco invertido, moventes do baixo do chefe e encimados de uma estrela (niqirtsuituq) do mesmo. Imagem disponível no Public Register of Arms, Flags and Badges of Canada/Registre public des armoiries, drapeaux et insignes du Canada. |
Em suma, as regras heráldicas são morfossintáticas. Assim como uma sentença pode ser constituída de vocábulos de múltiplas origens, contanto que obedeçam à gramática da língua, um brasão pode ser ordenado tanto com figuras consagradas como com figuras inovadoras, contanto que obedeçam à gramática da armaria, como o demonstram as armas do território canadense de Nunavut: de ouro à destra com um qulliq de negro, aceso de vermelho, e à sinistra com um inuksuk de azul; chefe de azul, carregado de cinco besantes de ouro, postos em arco invertido, moventes do baixo do chefe e encimados de uma estrela (niqirtsuituq) do mesmo. Afinal, que sentido há em chamar de brasões emblemas que nada têm a ver com o código heráldico?
(1) A palavra francesa panne tem a mesma origem do português pena: o latim pinna, variante de penna. É provável que no latim da Gália a variante penna tenha conservado o significado de 'pluma', daí o francês penne, enquanto pinna passou a designar tecidos aveludados e, em heráldica, as peles. De todo modo, hoje em dia o termo habitual é fourrure; semelhantemente, em português tornou-se mais habitual pele que forro.
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