17/01/21

EM QUE É ÚTIL TER ARMAS POR CONCESSÃO DO PRÍNCIPE

Até as instaurações das repúblicas, brasão era sinônimo de nobreza em Portugal e no Brasil, desde o século XVI.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(9) Sed secundum hoc quæro: quid relevet habere ista arma ex consensu principis? Respondeo: multum. Primo, quia est majoris nobilitatis, ut dicimus in testamento facto coram principe (C, 6, 23, 19 [1]). Secundo, quia non potest alius prohibere illi portare (C, 6, 8, 2 [2]; D, 4, 4, 4, 18, 3 [3]). Tertio, quia si duo assumunt eadem arma seu insignia, nec de prioritate nec posterioritate apparet, præfertur qui a principe habuit (D, 27, 1, 6 [4]). Quarto, quia si essent in exercitu vel alio loco et quæreretur quis deberet præcedere, debent præcedere illius arma quæ a principe concessa sunt (D, 50, 3, 2 [5]; X, 1, 33, 7 [6]; D, 27, 1, 6). Et prædicta intelligo ceteris paribus, scilicet, quod isti qui habent arma sint æqualis dignitatis, alias præferuntur arma illius qui esset in majori dignitate (D, 50, 3, 1 [7]; C, 12, 3, 1 [8]).

(9) Mas, depois disso, pergunto: o quanto realça ter essas armas por concessão do príncipe? Respondo: muito. Primeiro, porque é de maior nobreza, como dizemos do testamento feito perante o príncipe (C, 6, 23, 19 [1]). Segundo, porque outro não lhe pode proibir trazê-las (C, 6, 8, 2 [2]; D, 4, 4, 18, 3 [3]). Terceiro, porque se dois assumem as mesmas armas ou insígnias e não está claro sobre a anterioridade nem a posterioridade, prefere-se quem as teve do príncipe (D, 27, 1, 6 [4]). Quarto, porque se estivessem no exército ou outro lugar e se perguntasse qual deveria preceder, devem preceder as armas daquele a quem foram concedidas pelo príncipe (D, 50, 3, 2 [5]; X, 1, 33, 7 [6]; D, 27, 1, 6). E o já dito entendo por outras parelhas, ou seja, que esses que têm armas são de igual dignidade, mas em outro momento se preferem as armas daquele que estiver em maior dignidade (D, 50, 3, 1 [7]; C, 12, 3, 1 [8]).

Notas:
[1] C, 6, 23, 19: Omnium testamentorum sollemnitatem superare videatur, quod insertum mera fide precibus inter tot nobiles probatasque personas etiam conscientiam principis tenet (Veja-se que a solenidade de todos os testamentos é excessiva, visto que introduzido com a mera fé por instância entre pessoas tão nobres e excelentes, além de ter a ciência do príncipe).
[2] C, 6, 8, 2: Aureorum usus anulorum beneficio principali tributus libertinitatis quoad vivunt imaginem non statum ingenuitatis præstat, natalibus autem antiquis restituti liberti ingenui nostro beneficio constituuntur (O uso de anéis de ouro, concedido por favor do príncipe, mostra, até quando viverem, a imagem da condição liberta, não um estado de ingenuidade, mas os libertos com antigos direitos de nascença restituídos são instituídos, pelo nosso favor, ingênuos).
[3] D, 4, 4, 18, 3: Idem imperator Licinio Frontoni rescripsit insolitum esse post sententiam vice sua ex appellatione dictam alium in integrum restitutionem tribuere nisi solum principem (O mesmo rescreveu o imperador a Licínio Frontão: que é desacostumado, depois de ditada em seu lugar a sentença de um recurso, que outro atribua integralmente a restituição, a não ser somente o príncipe).
[4] D, 27, 1, 6: Si quis tutelas habenti duæ aliæ simul injungantur, ordine tertia ei procedit in liberationem a quarta, etsi imperator sit qui quartam injunxit, vel tertiam, prius tamen, quam imperatoris resciverit, ad aliam vocatus sit. Quod si ordo non appareat, sed eodem die duæ nominationes proponantur in instrumentis diversis, non qui factus est, sed qui eum fecit eliget, utram subire debeat (Se a quem tem tutelas se impuserem outras duas ao mesmo tempo, a terceira pela ordem lhe acudirá no livramento da quarta, mesmo que seja o imperador quem impôs a quarta ou terceira, contanto que tenha sido chamado para outra antes de ter sabido do imperador. Se a ordem não for clara, mas se propuserem duas nomeações no mesmo dia em instrumentos diversos, não quem foi feito, mas quem o fez escolherá qual das duas deve suportar).
[5] D, 50, 3, 2: In albo decurionum in municipio nomina ante scribi oportet eorum, qui dignitates principis judicio consecuti sunt, postea eorum, qui tantum municipalibus honoribus functi sunt (No álbum dos decuriões no município cumpre que se escrevam antes os nomes daqueles que alcançaram as suas dignidades por decisão do príncipe, depois os daqueles que exerceram somente cargos municipais).
[6] X, 1, 33, 7: Per tuas nobis litteras et infra. Postulasti per Sedis Apostolicæ oraculum edoceri, utrum quis per ordinem subdiaconatus, a Romano Pontifice susceptum, a debita tibi reverentia subtrahatur? Ad quod tibi breviter respondemus, quod, etsi decens sit, ut illis specialiter, quantum convenit, a te inter alios tibi subditos deferatur, quos benignitas apostolica collatione ipsius ordinis honoravit, per eam tamen ab obœdientia, quam alias tibi debent, minime absolvuntur (Pelas tuas cartas a nós e infra. Solicitaste ser instruído por meio da resposta da Sé Apostólica se alguém acolhido pelo Romano Pontífice por meio da ordem do subdiaconato é dispensado da devida reverência a ti. Com relação a isto, respondemos-te brevemente que, embora não seja adequado, seja apresentado por ti o quanto te convém, como particularmente àqueles, entre outros súditos que a benignidade apostólica honrou com a subscrição da mesma ordem, mas por meio dela de modo algum são absolvidos da obediência que outras te devem).
[7] D, 50, 3, 1: Decuriones in albo ita scriptos esse oportet, ut lege municipali præcipitur; sed si lex cessat, tunc dignitates erunt spectandæ, ut scribantur eo ordine, quo quisque eorum maximo honore in municipio functus est (É preciso que os decuriões estejam escritos no álbum como preceituado pela lei municipal; mas se a lei é omissa, dever-se-ão, então, observar as dignidades para que se escrevam na ordem em que cada um deles exerceu o maior cargo).
[8] C, 12, 3, 1: Quis enim in uno eodemque genere dignitatis prior esse debuerat, nisi qui prior meruit dignitatem? Cum posterior, et si ejusdem honoris prætendat auspicia, cedere tamen illius temporis consuli debeat, quo ipse non fuerit (Com efeito, quem deveria ser o primeiro num e mesmo gênero de dignidade, senão quem primeiro mereceu a dignidade? Pois o posterior, mesmo se pretender os auspícios da mesma honra, deve, no entanto, ceder ao cônsul daquele tempo quando ele mesmo não o era).

Comentário:

Até aqui, publiquei aproximadamente um quarto do Tractatus de insigniis et armis e, chegados a esta altura, caro leitor, espero que não se tenha reconhecido a genialidade de Bártolo apenas por ter dado tratamento acadêmico a uma prática social até então irrefletida, mas também se tenha percebido que sob a sua concisão se vislumbra a própria história da heráldica e se podem tirar lições para o presente.

Com efeito, a partir da leitura desta obra, tenho procurado ressaltar as singularidades da heráldica luso-brasileira na expectativa de ser útil ao neófito lusófono. Neste ponto, como hoje todos os países de língua portuguesa são repúblicas, cabe abordar como de sistema análogo ao nome próprio a heráldica se converteu em burocracia curial. Para isso, o documento mais ilustrativo é a própria carta de brasão.

Em Portugal, a carta de brasão remanescente mais antiga foi passada pela chancelaria do rei Dom Duarte em 1438. Vê-se, portanto, que a centralização das mercês régias heráldicas a partir de 1476, como mostrei na postagem de 11/01, foi, na verdade, a continuidade de um processo que vinha desde o começo daquele século. Leiamos o texto:

A Gil Simõez, carta pela qual lhe foram dadas armas e havido ele e os que dele descenderem per fidalgos
Dom Duarte etc. A quantos esta carta virem, fazemos saber que Gil Simõez, cavaleiro nosso criado, nos disse, como bem sabiamos, a grã criação per longo tempo que em ele fizemos e seu irmão Vicente Simõez, escudeiro da nossa Casa. E esso meesmo os muitos e bõos serviços que deles tinhamos recebidos em a guerra dos mouros, que ora com eles houvemos. E como, outrossi, fôrom com o Ifante Dom Hanrique e com o Ifante Dom Fernando, meus irmãos, sobre Tânger cercados com eles em o palanque do infindo poderio dos mouros, que sobre eles veo, seendo eles per nosso serviço em muitas e boas cousas e feridos per muitas vezes, postos em grandes trabalhos e perigos, guerreando contra eles per terra e per mar a guisa de bõos em navios e em fustas nossos e seus, seendo deles capitães, dando sempre de si conto de bõos. E que pero que assi sejam homens de boa geeração e tenham dívido com algũus bõos cavaleiros fidalgos dos nossos Reinos de que eles poderiam trazer suas armas ou sinaes direitamente, a eles prazia mais de lhas nós darmos per seus bõos merecimentos que as haverem per outra maneira. E que porém nos pediam por mercee que em galardão de seus bõos custumes e serviços e trabalhos nos prouvesse de lhe dar armas que eles e todos de seu linhagem possam trazer e se refertar por fidalgos e gentis-homens e gouvir de tôdolos privilégios e liberdades de fidalgos e gentis-homens. E nós, veendo seu justo pedir, seendo em verdadeiro conhecimento de todos seus bõos feitos e serviços que deles temos recebidos e entendemos de receber e querendo-lhe fazer graça e mercee como a aqueles que por nosso serviço e seu bõo acrecentamento sempre se trabalhárom de acrecentar de louvor d'armas, presente os nobres do nosso Conselho e fidalgos, cavaleiros e gentis-homens da nossa Corte e oficiaes d'armas, segundo se per direito requere, lhe damos e outorgamos que eles hajam e possam trazer daqui em diante por armas, pera eles e tôdolos de seu linhagem que deles vierem e descenderem, ũu escudo branco com ũa pinta (1) verde e em ele, ũu lião negro rompente, gretado d'ouro, com unhas e língua vermelha, as quaes armas lhe nós damos e outorgamos pera eles e tôdolos que deles vierem e descenderem, e os havemos por fidalgos e gentis-homens. E queremos e mandamos que hajam tôdolos privilégios e liberdades e honras que os fidalgos hão e de direito devem haver, como aqueles que per seus merecimentos o merecem. E em testemunho delo lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada per nós e asseelada do nosso seelo do chumbo. Dante em a vila d'Avis, dez dias de julho. Martim Gil a fez. Era de 1438 anos. (Chancelaria de Dom Duarte, liv. 1, fl. 236, grifos meus) (2)

É muitíssimo interessante que esse diploma exemplifique de modo tão patente o razoado por Bártolo: Gil e Vicente Simões podiam assumir as armas que quisessem, mas preferiram receber novas por concessão do rei, porque, como argui o doutor de Sassoferrato, era mais honroso, tanto que a carta não acaba após a enunciação do brasão; nobilita, ainda, os armígeros ou certifica a sua fidalguia. Depois, é igualmente interessante a justificação do ato: menciona-se a linhagem, mas eram os serviços militares ou, mais precisamente, as façanhas nas conquistas além-mar que garantiam o favor régio. De fato, na heráldica portuguesa a cronologia das mercês novas coincide quase exatamente com a expansão ultramarina, que, como é sabido, prosseguiu pelo século seguinte. Como eu disse na postagem de 13/01, o modelo desse tipo de documento foi estabelecido no regimento promulgado por Dom Manuel I em 1512:

Nota da carta de fidalguia e armas dada novamente por el-Rei
Dom Manuel etc. A todos que esta nossa carta para sempre virem ou treslado dela ou autêntica, seja sabido para sempre que assim como Deus por sua justiça e bondade enfim dá aos que neste mundo temporal bem e honestamente vivem no outro eterna glória e galardão imortal, assim é cousa justa e mui razoada que os reis e príncipes que na terra têm lugar por seu exemplo aos que neste mundo temporal com fieldade e memoráveis serviços virtuosamente o servem, não somente graças, favores e mercês os satisfaçam e contentem em suas vidas, mas ainda por bom exemplo de virtuosos serviços e sua mais glória a galardoem a eles e aos que deles descendem com outros prêmios e honras que desta mortalidade sejam isentos de todo. E, portanto, sendo nós em conhecimento e certa sabedoria que fulano tem servido em tais e tais serviços, cujo galardão não tão somente deve ser temporal, mas merecem ser com acrescentamento de honra e louvor perpetuamente satisfeitos. E vendo ser cousa justa o fazermos assim ao dito fulano, pelo amor que por suas virtudes e vontades lhe temos, nós, de nosso moto próprio e certa ciência, como Rei, supremo Senhor, não reconhecendo superioridade no temporal, com o acordo e justo parecer do nosso Conselho e de fulano, Portugal, nosso Rei d'Armas, por remuneração do dito fulano, glória e honra dos que dele precederem, o fazemos por esta nossa carta fidalgo de cota d'armas e assim aos que dele legitimamente por linha direita descenderem. E o removemos do número geral dos homens do conto plebeu e o reduzimos e trazemos ao conto e estima e participação dos nobres fidalgos e de limpo sangue. E sobre isso, porque a ele e ao merecimento de seus bons serviços seja com resplendor satisfeito e aos populares, na virtuosa inveja desta glória, se ascendam neste desejo, com exercício de semelhantes obras, nós lhe damos por armas e ornamento de nobreza e sinais dela, para ele e seus descendentes, para todo o sempre, brasão d'armas, elmo e timbre, e o dito Portugal, nosso Rei d'Armas, por nosso expresso mandado ordenou e logo registrou em seu livro de registros das armas dos fidalgos com cota d'armas, que dos mesmos sinais lhe damos como no meio desta nossa carta visivelmente, por parte e magistério de pintura com cores e metais, é divisado e demonstrado, o qual escudo e armas e sinais possa trazer e traga o dito fulano e todos seus descendentes em todos os lugares de honra em que os nobres e antigos fidalgos sempre as costumaram trazer em tempo dos mui esclarecidos reis, nossos progenitores, e com elas possa entrar em batalhas, campos, duelos, reptos, escaramuças, desafios, justas e torneios, e exercitar com elas todos os outros autos lícitos de guerra e paz. E assim as poderá trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas, e as pôr em suas casas e edifícios, e deixá-las sobre sua própria sepultura, e finalmente servir-se e honrar-se e aproveitar e gozar delas em tudo e por tudo, como auto e prerrogativa de sua nobreza convém, com a qual queremos e mandamos que haja ele e todos seus descendentes todas as honras e privilégios, liberdades, graças, mercês, isenções e franquezas que hão e devem haver os outros fidalgos nobres e d'antiga linhagem de nossos Reinos, e segundo que as sempre houveram dos gloriosos reis, nossos antecessores. E porém mandamos ao dito Rei d'Armas que as tenha em boa e devida guarda e assim aos outros que depois dele forem e a quaisquer arautos e passavantes e a todos que seguem o nobre e real ofício das armas, a quem este ao diante para sempre verdadeiramente pertencer, que registrem estas armas e sinais e as ponham assim mesmo em seus livros autênticos, para em todos os tempos serem havidos por aprovadas e verdadeiras, e lhos deixem lograr e possuir e aos que dele por linha direita descenderem, como cousa sua própria e a outros alguns, não. E mandamos a todos nossos corregedores, desembargadores, juízes, justiças e pessoas a quem esta nossa carta for mostrada, que em tudo lhe cumpram e guardem, e façam cumprir e guardar as honras, privilégios, mercês, franquezas e isenções que de direito lhe pertencem e como sempre foram guardadas e se guardam aos nobres e antigos fidalgos de nossos Reinos, sem dúvida nem embargo algum que a ela lhe seja posto, porque assim é nossa mercê. E por lembrança e firmeza do dito, lhe mandamos dar esta nossa carta, assinada por nós e selada de nosso selo de chumbo. Dada etc. (3)

Observe, prezado leitor, que a concepção medieval da nobreza ainda era tão forte que as cartas de brasão abrangiam atividades bélicas que tinham desaparecido, como os desafios, as justas e os torneios. Ora, do século XVI em diante, os nobres eram cada vez menos o braço armado da Coroa e tornavam-se cada vez mais burocratas do estado. Proporcionalmente, caiu o número de armas novas e consolidou-se o sistema que descrevi nas postagens anteriores: as enfastiantes esquarteladuras, ordenadas e reordenadas à exaustão para certificar pretensões de fidalguia, tanto justas como suspeitas. O Regimento também continha o modelo de carta para esses casos:

Nota da carta das armas que há de passar por Rei d'Armas Portugal
Dom Manuel etc. A quantos esta nossa carta virem, fazemos saber que fulano nos fez petição, como ele descendia e vinha da geração e linhagem de fulano e suas armas lhe pertenciam de direito, pediu-nos por mercê que, para a memória de seus antecessores se não perder e ele gozar e usar da honra das armas que pelos merecimentos de seus serviços ganharam e lhe foram dadas e assim dos privilégios, honras, graças, mercês que por direito por bem delas lhe pertencem, lhe mandássemos dar nossa carta das armas que estão registradas em os livros dos registros das armas dos nobres fidalgos de nossos Reinos, que tem Portugal, nosso principal Rei d'Armas. A qual petição, vista por nós, mandamos sobre ela tirar inquirição de testemunhas por fulano e fulano, pelos quais fomos certos que ele procede e vem da geração e linhagem do dito fulano e que de direito as suas armas lhe pertencem, as quais lhe mandamos dar com esta nossa carta, com seu brasão, elmo e timbre, como aqui são divisadas e registradas nos livros dos registros do dito Portugal, nosso Rei d'Armas, o qual escudo e armas e sinais possa trazer e traga o dito fulano, assim como o trouxeram e delas usaram seus antecessores e os nobres e antigos fidalgos sempre costumaram trazer em tempo dos mui esclarecidos reis, nossos antecessores. E com elas poderá entrar em batalhas, campos, duelos, reptos, escaramuças, desafios e exercitar com elas todos os outros autos lícitos de guerra e assim de paz. E assim as possa trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas, e as pôr em suas casas e edifícios, e deixá-las em sua própria sepultura. E, finalmente, servir-se e honrar-se e aproveitar-se e gozar delas em tudo e por tudo, como a sua nobreza convém. Com o que queremos e nos praz que haja ele e todos seus descendentes todas as honras, privilégios, liberdades, graças, isenções e franquezas que hão e devem haver os fidalgos, nobres e de antiga linhagem e como sempre de tudo usaram e gozaram seus antecessores. Porém mandamos a todos nossos corregedores, juízes, justiças e alcaides e, em especial, aos nossos reis d'armas, arautos e passavantes e a quaisquer outros oficiais e pessoas a que esta nossa carta for mostrada e o conhecimento dela pertencer que em tudo lhe cumpram e guardem e façam cumprir e guardar como em ela é conteúdo, sem dúvida nem embargo algum que a ela lhe seja posto, porque assim nossa mercê é. Dada etc. El-Rei mandou por fulano, seu Rei d'Armas Portugal. Fulano a fez. Ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1512 anos.

Enfim, essas cartas eram feitas à mão, o que lhes confere eventual valor artístico, além do histórico. Como eram propriedade dos armígeros e no Cartório da Nobreza se fazia apenas o registro, não se acham muitas hoje, mas algumas poucas se podem consultar nas bibliotecas públicas digitais. Eis dois exemplos:

Carta de brasão dada a Vicente de Vasconcelos em 1605: de negro com três faixas veiradas de prata e vermelho e, por diferença, uma brica de ouro, carregada de uma moleta de azul.
Carta de brasão dada a Vicente de Vasconcelos em 1605: de negro com três faixas veiradas de prata e vermelho e, por diferença, uma brica de ouro, carregada de uma moleta de azul.

Carta de brasão dada a José Maria e Silva Rodrigues, barão de Meriti, em 1855: de prata com um escudete de azul, carregado de uma abelha de ouro.
Carta de brasão dada a José Maria e Silva Rodrigues, barão de Meriti, em 1855: de prata com um escudete de azul, carregado de uma abelha de ouro.

Apesar de não haver mais monarcas na lusofonia e em tantos outros países, dentro da comunidade heráldica muita gente vê um glamour nessas antigas práticas e não resiste à imitação de mau gosto, daí que circulem tantos arremedos de cartas de brasão, passados por sujeitos e instituições de autoridade mais que duvidosa. Pessoalmente, por mais honroso que pareça o ato e por mais belo que seja o documento, aprecio mais não depender de príncipe algum para ter um brasão.

Notas:
(1) Anselmo Braamcamp Freire, na Armaria portuguesa (1908), argui que pinta é um erro de cópia por ponta, o que vem ser o mesmo que monte.
(2) O leitor atento terá percebido que a transcrição que faço de documentos antigos é bastante particular: por um lado, sou bastante escrupuloso em preservar a forma linguística original; por outro, atualizo a ortografia, para facilitar a leitura do leigo.
(3) Infelizmente, a esse texto não posso aplicar o método de preservar a forma linguística original, porque não tenho acesso a uma cópia que me permita isso. De fato, não é fácil achar o Regimento da nobreza dos reis de armas. António de São Paio, marquês de São Paio, editou-o no livro Do direito heráldico português: ensaio histórico-jurídico, publicado em 1927, a partir de uma cópia que pertencia a Afonso de Dornelas. Apesar de se ter tornado uma publicação raríssima, é a versão habitualmente citada na literatura acadêmica. Tive acesso ao texto por meio do Manual de heráldica portuguesa (1941), de Armando de Matos, que transcreve a edição do marquês de São Paio. Este costumava modernizar a linguagem dos textos antigos que editava, ao que parece. De todo modo, como o Regimento vigeu em Portugal e no Brasil até o fim das monarquias, o português quinhentista das suas notas de carta foi, sem dúvida, atualizado ao longo do tempo.

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