31/01/21

O PÉ DIREITO DEVE SEMPRE PRECEDER

Brasões e bandeiras estiveram mais intimamente ligados nas origens da heráldica do que comumente se pensa.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(19) Circa pedes advertendum est quod semper is qui antecedit sit pes dexter, quia, ut in præcedenti membro dictum est, pars dextra est principium motus; alias significaret talem figuram scævam esse, quod in vitium sonat (D, 21, 1, 12, 3 [1]). Sed hic occurrit dubium: quia si in vexillo figuratur ab una parte tamquam pes dexter præcedat, ab alia parte videbitur pes sinister præcedere. Hæc autem incongruitas magis visibiliter apparet in his qui pro sua arma aliquam litteram vel litteras portant. Nam ab una parte sunt litteræ rectæ, ab alia communiter non est forma litterarum, quod apparet si quis chartam scriptam a converso latere inspiciat.

(20) Sed dicendum est, sicut in litteris inspicitur illa pars quæ respicit scribentem, non pars conversa, ita in vexillo inspicitur pars quæ respicit portantem, non alia; quod enim ex alia parte est, non ex principali proposito contingit, sed per accidens, sicut cum quis se in speculo inspicit, quod enim in se dextrum est in speculo sinistrum apparebit. Et prædicta vera in vexillis quæ portantur in hasta, cujus recta natura est ut elevata et recta portetur (D, 8, 3, 7 [2]).

(19) Acerca dos pés, cumpre advertir que o pé que sempre precede é o pé direito, porque, como se disse na seção antecedente, a parte direita é o princípio do movimento; de outro modo significaria que tal figura é canhota, o que soa como defeito (D, 21, 1, 12, 3 [1]). Mas aqui ocorre uma dúvida, porque se por um lado na bandeira se figura de tal modo que o pé direito preceda, de outro ver-se-á que precede o pé esquerdo. Essa incongruência aparece mais evidentemente naqueles que trazem por armas suas alguma letra ou letras, pois de um lado ficam as letras direitas; do outro, em geral, não é a forma das letras, tal como aparece se alguém olhar pelo lado avesso um papel escrito.

(20) Mas cabe dizer que, assim como numa carta se olha o lado que se volta para o escritor, não o lado avesso, numa bandeira observa-se a parte que se volta para quem a traz, não outra. Com efeito, o que há do outro lado não advém do propósito principal, mas por acaso, tal como se alguém se olhar no espelho: com efeito, o que em si está direito no espelho aparecerá esquerdo. E o já dito é verdadeiro quanto às bandeiras que se trazem numa haste, da qual é próprio estar em pé, para ser trazida erguida e direita (D, 8, 3, 7 [2]).

Notas:
[1] D, 21, 1, 12, 3: Item sciendum est scævam non esse morbosum vel vitiosum, præterquam si imbecillitate dextræ validius sinistra utitur: sed hunc non scævam, sed mancum esse (Outrossim, deve-se saber que um canhoto não é doente ou vicioso, exceto se pela deficiência da direita usa mais fortemente a esquerda, mas que este não é canhoto, mas maneta).
[2] D, 8, 3, 7: Qui sella aut lectica vehitur, ire, non agere dicitur: jumentum vero ducere non potest, qui iter tantum habet. Qui actum habet, et plaustrum ducere et jumenta agere potest. Sed trahendi lapidem aut tignum neutri eorum jus est: quidam nec hastam rectam ei ferre licere, quia neque eundi neque agendi gratia id faceret et possent fructus eo modo lædi. Qui viam habent, eundi agendique jus habent: plerique et trahendi quoque et rectam hastam referendi, si modo fructus non lædat (Diz-se que quem é transportado numa cadeira ou liteira vai, não faz ir. Não obstante, quem tem apenas a viagem não pode conduzir um animal de carga. Quem tem a habilitação pode conduzir tanto uma carroça como um animal de carga, mas nenhum dos dois tem o direito de puxar pedra e materiais de construção. Alguns pensam que sequer lhe seja permitido levar uma haste reta, porque não o faria por mor de ir nem de fazer ir e desse modo as frutas poderiam danificar-se. Quem tem o caminho tem o direito de ir e fazer ir, e vários pensam que, ademais, tanto o de puxar como o de trazer uma haste reta, contanto que não danifique as frutas).

Comentário:

Ao longo da história da heráldica, difundiram-se maiormente duas explicações sobre as suas origens: uma mítica e a outra acadêmica. A mítica é que os brasões foram criados na Antiguidade clássica, por Alexandre o Grande ou Júlio César. Foi elaborada e divulgada pelos arautos durante o século XV com o intuito de dignificar o seu mister. A acadêmica é que os brasões foram criados na baixa Idade Média pela cavalaria: cada cavaleiro pintava sobre o seu escudo certos sinais, que o identificavam no campo de batalha. Essa teoria foi adotada por Michel Pastoureau, historiador francês e uma das maiores autoridades nos estudos heráldicos desde a década de setenta. Talvez por causa do seu prestígio, só recentemente estudiosos têm reanalisado os dados da heráldica primitiva e aventado hipóteses novas.

Com efeito, Laurent Hablot, em artigo de 2012, enumera algumas debilidades da teoria do escudo armoriado:

  • só se divisa bem uma insígnia sobre um escudo quando este se vê de frente, o que fica agravado pela sua curvatura;
  • como arma defensiva, o escudo estava sujeito a constantes desgastes, causados por armas ofensivas, pelo derramamento de sangue e pelos elementos naturais, ou mesmo à perda no meio da batalha;
  • ainda que se superassem essas dificuldades, num embate que opusesse algumas dezenas de guerreiros, como um simples peão conseguia aprender tantos brasões e evitar o fatal erro de atacar alguém do seu próprio lado?

Ora, se o escudo comportava tantos inconvenientes, qual foi o campo ou superfície original do brasão? Precisamente o que Bártolo privilegia no seu tratado: a bandeira! Efetivamente, Hablot, no mesmo trabalho, coloca que "l'analyse des sceaux des grands feudataires dans le courant du XIIe siècle montre ainsi clairement la progressive substitution de l'écu armorié à l'enseigne vexillaire de typo gonfanon qui jusqu'alors caractérise l'autorité militaire à l'échelle du comté" (1).

Selo de Raul I, conde de Vermandois. Imagem disponível na base Sigilla.
Selo de Raul I, conde de Vermandois. Imagem disponível na base Sigilla.

Jean-François Nieus, em artigo de 2017, refina essa pesquisa. Começa por ressalvar que o selo não era o suporte mais idôneo para o brasão, pela sua pequenez e reprodução monocromática, mas é o que melhor nos veiculou o que nele observamos, já que a maioria das reproduções noutros suportes se perdeu. Depois, afirma que o selo mais antigo em que se observa um brasão é o de Raul I de Vermandois, mencionado em 1110 e impresso em 1126. Consiste num cavaleiro que segura com a mão direita uma lança ornada de um gonfalão xadrezado e com a esquerda, as rédeas e o seu escudo. Xadrezado de ouro e azul serão, com efeito, as armas dos condes de Vermandois. Mais que isso, o autor propõe que a própria região do Vermandois e a sua vizinhança são o foyer, ou seja, o lugar de origem da heráldica:

Tout bien pesé, il me parait raisonnable de tirer la leçon des données sigillographiques et d'admettre qu'un groupe de grands barons septentrionaux a lancé une mode, relayée assez vite, dès les années 1140, par certaines grandes figures du Midi. Sur le plan sigillaire toujours, les indices vont nettement dans le sens d'une exportation des concepts emblématiques du monde normand vers le sud. (2)

Na postagem anterior, comentando sobre o chamado brasão do Ceará, eu disse que em heráldica não há quadrantes, mas quartéis, que são uma partição do campo, e que para localizar peças ou figuras num campo inteiro, faz-se referência a nove pontos convencionais. Embora os escudos costumem ser um pouco mais altos do que largos, esses pontos são traçados como se o campo fosse quadrado, ou melhor, precisamente como se fosse uma bandeira quadrada.

Pontos do escudo.
Pontos do escudo.

Assim, os pontos 1, 3, 7 e 9 são os cantões do escudo; 2, o chefe; 4 e 6, os flancos; 5, o centro, abismo ou coração; 8, a ponta,  ou contrachefe. Além disso, 1, 4 e 7 são a destra e 3, 6 e 9, a sinistra. Portanto, de uma figura que estiver, por exemplo, no ponto 1 dir-se-á, ao brasonar, que está no cantão destro do chefe; do mesmo modo, de qualquer outra nalgum ponto diferente. Funciona exatamente como Bártolo ensina: mais propriamente que um escudo, há de se imaginar que esse quadrado seja uma bandeira e que à destra fique a haste.

Notas:
(1) "A análise dos selos dos grandes feudatários no decurso do século XII mostra, assim, claramente a progressiva substituição pelo escudo armoriado da insígnia vexilar do tipo gonfalão, que até então caracteriza a autoridade militar ao nível do condado." (tradução minha)
(2) "Tudo bem pesado, parece-me razoável tirar a lição dos dados sigilográficos e admitir que um grupo de grandes barões setentrionais lançou uma moda, revezada bastante cedo, desde os anos 1140, por certas grandes figuras do Sul. Sempre no plano sigilar, os indícios vão claramente no sentido de uma exportação dos conceitos emblemáticos do mundo normando em direção ao sul." (tradução minha)

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