O brasão está hoje ao alcance de qualquer um na maior parte do Ocidente, mas o seu uso pelas pessoas físicas se tornou quase um hobby.
A heráldica tem uma história fascinante. Não, prezado leitor, não se seguirá mais uma dissertação sobre a cavalaria baixo-medieval e os seus petrechos, como as que costumam abrir quase todos os tratados sobre a matéria. Mas é incontornável começar reconhecendo que a heráldica surgiu da necessidade singela da identificação (1). Tudo o mais, especialmente a relação quase privativa com a nobreza, ocorreu depois.
Hoje, nenhuma pessoa física precisa de um brasão para se identificar, mesmo nos países onde se preservam oficialmente títulos nobiliários. A Espanha é um exemplo ilustrativo disto por duas razões: dos países a que acabei de referir, é o mais próximo a nós do ponto de vista cultural e na sua jurisprudência recente há um caso relativo ao uso de brasão. Trata-se do Ditame n.º 2047, emitido pelo Conselho de Estado em 21 de outubro de 2004, sobre confirmação do direito ao uso do brasão de armas do Ilustre Solar de Valdeosera. A resolução é eloquente:
Entiende este Consejo de Estado que el uso de armas y blasones pertenece a la esfera privada y que, en consecuencia, no debe el Ministerio de Justicia elevar a S.M. el Rey la solicitud de confirmación del derecho al uso de determinadas armas o blasones de particulares o familias o, como en este caso, de una comunidad de bienes. Por tanto, no procede acceder a la solicitud formulada por ... en nombre del Solar de Valdeosera. (2)
Estas considerações iniciais trazem-nos a alguns pontos interessantes: hoje, em países onde o direito não disponha o contrário, qualquer um pode ter um brasão de armas, mas o uso desse brasão é pouco relevante fora da comunidade heráldica, por isso mesmo parece ridículo descumprir as regras. Mais que isso: para fazer parte dessa comunidade de maneira plena, é de bom tom assumir um brasão novo, se não se tiver herdado um, e apresentá-lo quando convier. Então, apresento o meu: de vermelho com uma cruz trilobada de ouro, rodeada de oito besantes de prata, e um chefe de ouro com três folhas de carnaúba de verde, postas em banda.
Do anterior segue-se a questão de como se deve ordenar um brasão. Sem dúvida, essa questão é a que mais me propulsiona a escrever este blog, mas por enquanto me cingirei a dizer como ordenei as minhas armas. Para começar, é ineludível falar de família, porque no senso comum é dada a ideia de que as armas gentilícias são distintivos de sobrenomes. Em contrapartida, estudando-se a heráldica, logo se aprende que essa ideia não só é enganosa, mas também que o motivo genealógico é perfeitamente prescindível. A minha escolha pessoal foi procurar um meio-termo: uma referência à origem familiar acrescida de um elemento singular. Como quase todo neófito, quando esbocei pela primeira vez um brasão pessoal, tinha a ideia barroca de que devia ter várias partições, peças, cores e metais. Isso vem precisamente da apropriação da heráldica pela nobreza: quanto mais títulos, mais prestígio. O sinal visível era a composição das armas de cada título dentro de refinada moldura vegetal, timbrada de rica coroa, sustentada por dignas plantas, animais ou personagens, ornada de insignes colares. O exagero fazia sentido nas relações sociais do século XVII, mas em pleno XXI parece uma vaidade que, se cheira a anacronismo quando se tem direito, decididamente fede quando não passa de fraude. De certo modo, a heráldica do nosso tempo voltou às origens medievais: sinais singelos para a identificação do portador.
Com efeito, é dificílimo fazer pesquisa genealógica no Brasil. Descendemos de gentes forçadas a deixar os seus lugares: os portugueses que vieram em busca de uma vida melhor, os africanos que foram traficados, os indígenas que foram reduzidos em aldeias e vilas. Para boa parte deles, receber um nome cristão e sobrenomes portugueses era mera condição para se integrar à realidade colonial, às vezes entre os próprios colonos, como Dionísio Alves e Domingos da Cunha, que, saídos do Minho, acrescentaram o nome da sua terra natal — Linhares — à guisa de sobrenome nas suas novas vidas além-mar.
Assim, tomei dois elementos das armas de Linhares (Paredes de Coura), cujo brasonamento oficial é: de vermelho cruz trilobada de ouro, circundada de oito besantes de prata; em campanha monte de três cômoros de ouro, movente dos flancos e nascente de um pé ondado de azul e prata de três tiras (4). Por singularidade escolhi a folha de carnaúba, palmeira nativa do Nordeste brasileiro, presente nos brasões do Ceará (5), Piauí (6) e Rio Grande do Norte, nos de vários municípios desses estados e também no da Universidade Federal do Ceará (UFC) (7), a minha alma mater.
Enfim, essas armas pessoais estão registradas no Heraldry of the World, site de Ralf Hartemink, sob o número 008/2017. Em tese, esse e outros registros heráldicos servem para proteger a propriedade do brasão, mas na verdade funcionam como carteirinhas de clube, afinal (e daqui voltamos ao começo) quem roubaria o brasão de alguém em pleno século XXI, por quê e para quê?
(1) "A heráldica — a par da sua sugestiva beleza e do seu forte poder evocativo — fornece um ótimo e seguro meio de identificação. Coisa em que figure um escudo de armas ou mesmo uma simples peça heráldica solta é coisa cuja origem se pode desvendar, cuja época se pode fixar, cuja proveniência e destino se podem apurar, cujo primitivo possuidor ou cujo autor se pode vir a saber quem foi, cuja história se pode, enfim, reconstituir" (PINTO, Augusto Cardoso. Uma cadeira brasonada. Armas e troféus, Lisboa, v. I, p. 38-40, 1932).
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