21/05/25

O BRASÃO DO PAPA LEÃO XIV (II)

Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata,
Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata.

De acordo com o costume, praticado há séculos, e a instrução Ut sive sollicite, emitida pela Santa Sé em 1969, Robert Francis Prevost, OSA, nomeado bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, no Peru, assumiu um brasão de armas em 2014. Antes da ordenação episcopal, a Província de Nossa Senhora do Bom Conselho, nos Estados Unidos (Midwest Augustinians), donde o prelado é natural, noticiou o fato.

Armas de Robert Prevost, assumidas enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo (imagem disponível no portal Midwest Augustinians).
Armas de Robert Prevost, assumidas enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo (imagem disponível no portal Midwest Augustinians).

Segundo a notícia, a criação das armas pautou-se por um raciocínio anglo-germânico: partiu-se o escudo, reservando-se o primeiro campo à diocese e deixando-se o segundo ao ordinário. Tendo Chiclayo por padroeira a Imaculada Conceição, pôs-se uma flor de lis de prata sobre azul, a figura e a cor marianas por excelência. Sendo o então bispo Prevost augustiniano, pôs-se o emblema dessa ordem sobre prata. Entre um campo e o outro, traçou-se uma linha diagonal, ou seja, um escudo talhado.

"Armas da Religião de Santo Augustinho" no Tesouro de nobreza, de Francisco Coelho (1675).
"Armas da Religião de Santo Augustinho" no Tesouro de nobreza, de Francisco Coelho (1675). (1)

A Ordem de Santo Agostinho foi fundada na Itália central em 1244 pela união de comunidades eremíticas, às quais o papa Inocêncio IV recomendou a adoção da chamada Regra de Santo Agostinho, já observada pelos cônegos regulares, pelos dominicanos e pelos mercedários. Como tantas ordens religiosas, a augustiniana possui um emblema que transita da divisa ao brasão, a depender da presença ou ausência de escudo, e hoje é uma marca. Por isso, descreve-se apenas como um coração inflamado e atravessado por uma flecha sobre um livro, sem fixidez de esmaltes. No brasão episcopal sob exame, o coração e a flecha estão vermelhos e o livro tem cores naturais.

Os próprios agostinhos apontam que duas passagens das Confissões elucidam o símbolo. Logo depois da sua conversão, querendo abandonar o mister de rétor, Agostinho conta que, apesar de só saberem disso os mais achegados, houve quem tivesse tentado dissuadi-lo, mas o seu coração fora flechado pelo Senhor com o seu amor ("Sagittaveras tu cor nostrum caritate tua", 9, 3). Mais adiante (10, 8), respondendo ao que se ama quando se ama a Deus ("Quid amatur, cum Deus amatur?"), declara: "Percussisti cor meum verbo tuo, et amavi te" ("Tocaste o meu coração com a tua palavra e então te amei"). Em síntese, o amor a Deus estimula a razão a buscar entendê-Lo e esta descobre que Ele é amor.

Em particular, o talho do escudo parece-me certeiro, porque uma flor de lis ocupa uma área aproximadamente romboidal e o livro precisa de um pouco de perspectiva para ficar reconhecível, de modo que a diagonal corre harmoniosamente entre uma figura e a outra. Eu diria, porém, que a leitura latino-americana inverte o conceito anglo-germânico, interpretando no primeiro campo uma insígnia pessoal, de tipo devocional, e no segundo a indicação da ordem religiosa à qual o prelado se associa, como por último se viu nas armas do papa Gregório XVI. Também aí acho virtude, porque Leão XIV, enquanto norte-americano nato e peruano naturalizado, tem mesmo essa dupla identidade: "A minha própria história é a de um cidadão, descendente de imigrantes, e também emigrado" (discurso ao corpo diplomático junto à Santa Sé no dia 16).

Enfim, foi igualmente nos escritos augustinianos que o Santo Padre buscou o seu lema pastoral, precisamente nos Comentários aos salmos (127, 3): "Os cristãos são muitos e o Cristo, um. Esses cristãos com a sua cabeça, que subiu ao céu, são um Cristo: não que ele seja um e nós muitos, mas nós, embora muitos, naquele um somos um" ("Multi enim Christiani, et unus Christus. Ipsi Christiani cum capite suo, quod ascendit in cælo, unus est Christus: non ille unus et nos multi, sed et nos multi in illo uno unum"; tradução minha).

Armas de Robert Prevost enquanto cardeal do título de Santa Mônica na fachada dessa igreja (foto de Mountain Butorac, publicada no Instagram).
Armas de Robert Prevost, enquanto cardeal do título de Santa Mônica, na fachada dessa igreja (foto de Mountain Butorac, publicada no Instagram).

Apesar de tão potente divisa, sinto que o ambiente divisivo das redes sociais, que descrevi na postagem antecedente, apressou a Santa Sé a demarcar que a mitra continuaria por cima do escudo papal, tal como está aí faz vinte anos. Mas aqui começa o inexplicável, porque se o papa quis manter o seu brasão e havia pressa, bastava trocar as insígnias cardinalícias pelas pontifícias. Afinal, sem jamais se alterar o ordenamento dessas armas, a sua dignidade eclesiástica ascendeu duas vezes no último biênio: arcebispo ad personam e bispo emérito de Chiclayo (30/01/2023) e cardeal da Santa Igreja Romana (30/09/2023) (2).

Inexplicavelmente, na manhã de 10 de maio na rede social X a Secretaria de Estado da Santa Sé publicou um desenho que rotulou de "Stemma ufficiale del Santo Padre Leone XIV" ("Brasão oficial do Santo Padre Leão XIV"), mas em vez do meio campo de prata, mostra uma cor que estarreceu a comunidade heráldica: bege. Ora, não é necessária uma introdução nem mesmo mediana à armaria para aprender que nela só se admitem dois metais (ouro e prata), cinco cores (vermelho, azul, negro, verde e púrpura) e duas peles (arminho e veiros). E ainda que se possa pintar certa figura ao natural, isso nunca se aplica ao escudo.

Desenho oficial das armas do papa Leão XIV (imagem disponível no portal da Santa Sé).
Desenho oficial das armas do papa Leão XIV (imagem disponível no portal da Santa Sé).

À falta de alguma nota que circunstanciasse o desenho, uns arremedaram o tal do bege, "corrigindo" as suas antecipações; outros esperaram que logo se esclareceria um suposto acidente. Contudo, a spiegazione ('explicação') que saiu no Boletim da Sala de Imprensa a 14 de maio não trouxe o esperado ajuste. Antes, confirma a percepção de um trabalho apressado, inclusive pela falta de revisão textual (3).

Edição do desenho oficial das armas do papa Leão XIV, por Paul Nizinskyj (publicado no Facebook, 16/05/2025).
Edição do desenho oficial das armas do papa Leão XIV, por Paul Nizinskyj (publicado no Facebook, 16/05/2025).

Assim, tentou-se solver o insolúvel brasonando-se o segundo campo "di bianco" ("de branco") e explicando-se que está "in tonalità avorio" ("em tonalidade marfim"). Ora, nada disso é aceitável. Tanto faz dizer que é branco, marfim ou bege, porque nenhuma dessas cores existe na heráldica. Considere-se, por exemplo, que dado brasão tem uma presa de elefante de prata. Certo artista poderá pintar essa figura de branco ou cinza. Se não fosse de prata, mas de sua cor natural, ele deveria, aí sim, empregar um tom próximo ao do marfim. Mas o nosso desenhista fez de um cinza-escuro a flor de lis, a mitra e uma das chaves, o que lhe obrigaria repetir esse tom na outra metade do escudo. Evidentemente, reexaminar o esboço e clarear tudo era uma opção.

Armas primitivas do papa Leão XIV, enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, por Alejandro Rojas (imagem disponível na Wikimedia Commons).
Armas primitivas do papa Leão XIV, enquanto bispo titular de Sufar e administrador apostólico de Chiclayo, por Alejandro Rojas (imagem disponível na Wikimedia Commons).

Os problemas não acabam aqui. Além de correto, o desenho de 2014 pertence indubitavelmente a Robert Francis Prevost, hoje papa Leão XIV, tanto se ele o tiver comprado como se o tiver ganhado. Repito, pois: bastava copiar o escudo e acrescentar-lhe as insígnias pontifícias. Não se daria margem a questionamentos; no máximo, a juízos estéticos, que são, afinal, inevitáveis. Mas o desenho saído no dia 10 comporta sim dúvida quanto aos direitos autorais, já que o escudo é cópia daquele feito e publicado na Wikimedia Commons aos 6 de janeiro de 2015 por Alejandro Rojas (usuário SajoR), heraldista colombiano. (4)

Eu mesmo recorro com frequência a elementos disponíveis em repositórios, mas não vendo os desenhos que tão somente elaboro para ilustrar os meus apontamentos. Como declarei várias vezes neste blog, não sou artista, mas apenas um estudioso da heráldica. Muitíssimo diferente é o caso de quem desenha o brasão do papa! Trata-se de um chefe de estado, cujas armas são cunhadas em moedas, tecidas em reposteiros, adesivadas em veículos etc. Como não se cuidou de averiguar a originalidade das formas?

É verdade que se foram os consultores que socorriam a Sé Apostólica em matéria heráldica desde São João XXIII (leia-se a dita postagem antecedente). Mas é igualmente verdadeiro que não faltam bons profissionais na atualidade, cada um com diverso domínio técnico, talento artístico e estilo pessoal, como mostrarei na próxima postagem.

Notas:
(1) Em Portugal, os agostinhos punham o emblema da ordem sobre o peito duma águia de duas cabeças com o sol e a lua nas garras e um tinteiro e um cinto nos bicos.
(2) Até 6 de fevereiro deste ano, Prevost foi cardeal-diácono do título de Santa Mônica, que o papa Francisco criara especificamente para ele. Foi então que ascendeu a cardeal-bispo de Albano, mas isso não teve implicação heráldica. Durante o curto período em que a sua dignidade mais alta foi o arcebispado ad personam, as suas insígnias foram a cruz de duas travessas e o galero verde de vinte borlas; depois de elevado à púrpura, mudou apenas o galero vermelho de trinta borlas.
(3) Falta coesão ao brasonamento ("nel 1° d'azzurro a un giglio", "nel 2° di bianco, al cuore"), há erros de pontuação ("Il bianco [...], è un colore") e sintaxe ("riprende le parole di [che] sant'Agostino ha pronunciato").
(4) Os termos de uso estão na própria página do arquivo e estabelecem que se dê crédito ao autor e, caso se faça alteração, se compartilhe sob os mesmos termos.

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