Apesar de abstrato, um brasão deve ser cuidado como um bem material.
Um brasão é um artefato. Não certo artefato pintado, esculpido ou tecido. Na verdade, é abstrato. Se a heráldica dependesse da matéria, há muito teria perdido a sua vigência, como tantas outras formas de identificação visual. Com efeito, o tempo tudo consome: as tintas, as pedras, os fios. Para vencê-lo, o brasão deve ser uma ideia, já que as ideias, sim, desconhecem barreiras, ao menos enquanto as lembrarmos.
Como concebemos a nós mesmos e o mundo? Mediante a linguagem verbal. Ora, se alguém desenha um castelo, outrem pode ver aí uma torre. Mas se diz um castelo, até quem não sabe o que seja pode buscar e descobrir que é um edifício fortificado com muros e torres para a defesa de certo lugar. E se o deixa escrito, isso pode perdurar para sempre. Por exemplo, no Chronicon mundi (cap. 74), de Lucas de Tui, lemos que o rei Afonso VIII de Castela foi quem primeiro tomou o castelo por armas ("Iste rex Adefonsus primo castellum armis suis depinxit"), ainda que essa obra remonte ao ano de 1238.
O sucesso do brasão reside, pois, na sua bimodalidade: um texto verbal que se realiza por meio das artes visuais. Trocando em miúdos, é um construto mental, ao qual um pintor, escultor, tecelão ou outro artífice dá existência material ao fabricá-lo conforme a sua arte e estilo. Mais recentemente, também quando um designer o executa em formato eletrônico.
Não obstante a natureza abstrata, um brasão demanda zelo, porque se sofrer desleixo, nem sequer a linguagem escrita o salvará da obliteração e, por conseguinte, da distorção. Por exemplo, ao longo da Idade Moderna os artífices apequenaram tanto as torres dos castelos nas armas reais de Portugal que até o fim da monarquia apareceram e se difundiram cada vez mais reproduções que mostram, de fato, torres com três grandes ameias. Foi na reforma dos símbolos nacionais sob a república que se recobrou a memória dos castelos, profusamente registrada.
Se brasões tão célebres quanto os estatais estão sujeitos ao desgaste, o que se dirá de quaisquer outros menos conhecidos? Faço esta reflexão para abordar dois casos na linha das minhas postagens mais recentes.
Proposta de adequação para o brasão do Colégio Diocesano Seridoense: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata e as armas de Dom José de Medeiros Delgado num escudete sobre tudo. |
No Rio Grande do Norte, há dois colégios diocesanos. O Santa Luzia, em Mossoró, foi fundado por Dom Adauto de Miranda em 1901, quando o estado ainda estava sob a jurisdição do bispado paraibano. Ele fundou, ainda, o Colégio Santo Antônio em Natal em 1903, mas em 1930 Dom Marcolino Dantas, quarto bispo dessa cidade (depois primeiro arcebispo), o entregou aos Irmãos Maristas. Portanto, o outro colégio diocesano de que falo é o Seridoense, fundado em Caicó por Dom José Delgado, seu primeiro bispo, em 1942.
Armas de Dom José de Medeiros Delgado: de azul com quatro faixas ondadas de prata e um Ψ entrecambado; insígnias de arcebispo metropolitano; divisa: Ita Pater. |
Na postagem de 15/04/21, abordei as geniais armas de Dom José de Medeiros Delgado: de azul com quatro faixas ondadas de prata e um Ψ entrecambado; insígnias de arcebispo metropolitano; divisa: Ita Pater. Ele mesmo as explicou na sua primeira carta pastoral:
Nossas armas são de fácil inteligência. Falam-nos na simbólica linguagem heráldica e litúrgica da vida cristã, que se obtém por meio da água e do Espírito Santo no Sacramento do Batismo, conforme o diálogo de Jesus e Nicodemos, o ensino e a prática da Igreja. As linhas azuis onduladas representam água e a letra grega, que, com uns traços mais, se pareceria a uma pomba voando verticalmente para baixo, significa o Divino Espírito Santo. No Sábado de Aleluia, quando se faz a bênção da água batismal, tomam-se três velas em forma de psi, para representar o Espírito Santo e isso demonstra o uso litúrgico da referida letra grega. [...] O lema completa o expressivo simbolismo litúrgico das armas, recordando, de maneira incisiva e prática, que a obediência é problema de máxima importância na vida cristã. ITA, PATER – SIM, PAI.
Em sua homenagem, o Colégio Diocesano Seridoense (CDS) tomou tais armas por emblema, o que não me parece apropriado, pela forma como o fez: sobre um escudo de prata, debruado de vermelho, pôs inclusivamente os ornamentos externos. Do capelo pendem doze borlas, assinalando a dignidade episcopal, mas Dom Delgado foi depois o quarto arcebispo metropolitano de São Luís (1951–63) e o terceiro de Fortaleza (1963–73). O brasão de um prelado deve ostentar as insígnias da sua última dignidade.
Mas não se trata apenas disso. Se as armas de Dom Delgado figurassem na fachada do colégio, estaríamos diante de uma prática secular: marcariam a obra desse bispo e a propriedade da mitra. Daí ao seu uso pelo próprio instituto, como emblema seu, infelizmente semelha usurpação, porque o brasão é um identificador individual e vale como tal mesmo que o armígero seja uma coletividade.
Marca do Colégio Diocesano Seridoense. |
Qual é, então, a forma correta de prestar uma homenagem dessa espécie? Depondo os ornamentos externos, transpondo o escudo a uma partição ou transformando-o numa peça, como um escudete ou chefe. Pessoalmente, eu adequaria o brasão do CDS pondo um escudete com as armas de Dom Delgado sobre uma cruz veirada de vermelho e prata em campo de azul, à semelhança das armas diocesanas.
Ainda assim, avulta um problema maior, o que motivou esta postagem: tal como se vê no desenho de que hoje o colégio usa, o ordenamento das armas do homenageado caiu no esquecimento. Não se traçaram faixas ondadas, mas retilíneas e assimétricas; o padrão entrecambado tem defeitos que dificultam a percepção do psi; a troca da cruz episcopal por um bastão atinge o nível do surpreendente.
Como se terá chegado a isso? É provável que em vez de se redesenharem quatro faixas ondadas de prata em campo de azul e um Ψ de um para o outro (um construto abstrato, mas estável), se tenham sucessivamente copiado desenhos (objetos concretos, porém passíveis de equívoco e imperícia).
Proposta de adequação para o brasão do Colégio Diocesano Santa Luzia: de azul com uma tocha de ouro, acesa ao natural, entre dois monogramas, CD à destra e SL à sinistra, ambos de prata. |
Enfim, o Colégio Diocesano Santa Luzia (CDSL) possui um bom emblema, como eu disse na postagem de 28/08: uma tocha acesa entre dois monogramas, CD à destra e SL à sinistra. É verdade que letras iniciais não são de ótima heráldica, mas a virtude desse brasão está na sua singeleza: uma figura principal, que simboliza o conhecimento, em campo inteiriço. Todavia, passou por uma "logotipação" perigosa: reduziram-se as cores às da escola — azul e branco — e, a depender do tamanho e da distância, mal se distinguem os contornos estilizados da tocha. É por isso que não ouso brasonar os esmaltes. As fotos de perfil no Facebook até 2013 sugerem uma pintura ao natural, mais comprometida com o estilo gráfico então vigente do que com o código heráldico.
Emblema do Colégio Diocesano Santa Luzia. |
O ponto é que heráldica e desenho não se contrapõem; completam-se. Como eu disse, o brasão precisa de algum desenho para ganhar existência material. Neste sentido, o design gráfico é apenas um avanço tecnológico, como outrora o foram a iluminura e a gravura (xilo-, calco-, lito-, seri-, offset etc.).
Não é a primeira vez que aponto tudo isto. Em agosto de 2021, procurei analisar — sempre sob a perspectiva heráldica — diferentes trabalhos gráficos que aproximam certos brasões a uma marca (Grã-Bretanha, País Basco, Castela e Leão, Galiza, Recife e Fortaleza). Agora acresço que atualmente a melhor maneira de uma pessoa jurídica zelar pelas suas armas é integrá-las num sistema de identidade visual. Inclusive, há um gênero discursivo que não só instrui o usuário, mas antes consolida o projeto: o manual de identidade visual. Um bom espécime há de principiar, pois, pelo brasão com os seus metais e cores, conforme o seu ordenamento, e a partir daí expor a marca, estabelecer a sua aplicação e vedar eventuais abusos.
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