O elogio é agradável, mas a crítica construtiva é edificante.
Dando continuidade à postagem antecedente, passo a resenhar o emblema de Dom Vanthuy Neto. Como farei críticas negativas, cabe interpor uma advertência: os apontamentos seguintes têm caráter estritamente técnico, a partir do entendimento de que a heráldica é um sistema semiótico. Portanto, nada têm a ver com as qualidades pastorais de Dom Vanthuy nem com as qualidades artísticas de quem desenhou o emblema.
Emblema de Dom Raimundo Vanthuy Neto, bispo diocesano de São Gabriel da Cachoeira (imagem disponível na Wikimedia Commons). |
Raimundo Vanthuy Neto nasceu em 1973 em Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Formou-se no Seminário Arquidiocesano São José (Manaus, 1991-97) e na então Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (São Paulo, 1998-2000), hoje Campus Ipiranga da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde obteve o mestrado em Teologia. Foi ordenado presbítero em 2001 e incardinado na diocese de Roraima. Administrou as paróquias de Nossa Senhora Consolata (2001-04) e do Cristo Redentor (2005-13), em Boa Vista. Dirigiu o então Instituto de Teologia, Pastoral e Ensino Superior da Amazônia (2014-17), hoje Faculdade Católica do Amazonas. Voltou a Roraima, onde foi vigário da área missionária do Cantá (2018) e reitor do Santuário de Nossa Senhora Aparecida e do Seminário Propedêutico (2020-23). Serviu, ainda, de chanceler à cúria diocesana e de auditor ao Sínodo dos Bispos para a Amazônia (Vaticano, 2019). Foi ordenado bispo em 4 de fevereiro deste ano em Boa Vista.
Dom Vanthuy Neto (imagem disponível no perfil da Diocese de Roraima no Instagram). |
O emblema de Dom Vanthuy foi desenhado pelo artista sacro Guto Godoy e apresentado pela Diocese de Roraima no seu website em 29 de dezembro de 2023. Particularmente, aprecio o artefato. A heráldica atual está cheia de estilos fortemente pessoais. Contudo, um brasão não é um objeto concreto, seja pintado, esculpido ou bordado. Assim, repito que os próximos parágrafos não visam a atacar ninguém.
Para começar, cumpre anotar que a Igreja respondeu de forma lacônica a uma mudança que merecia um tratamento mais extenso. Ora, quando o clero constituía um estamento da sociedade, não era necessária norma eclesiástica em matéria heráldica, porque geralmente se davam as altas dignidades a clérigos de extração nobre. Estes usavam, então, as armas das suas linhagens. Basta conferir os nomes e brasões dos papas na Idade Moderna: Alessandro de' Medici (Leão XI), Camillo Borghese (Paulo V), Alessandro Ludovisi (Gregório XV), Maffeo Barberini (Urbano VIII)...
À medida que essa prática cessava, cada vez mais as armas devocionais ganharam lugar, porém se passou longo tempo até que em 1969 a Secretaria de Estado da Santa Sé emitiu a Instructio circa vestes, titulos et insignia generis Cardinalium, Episcoporum et Prælatorum ordine minorum ('Instrução acerca das vestes, títulos e brasões de armas dos cardeais, bispos e prelados menores'), cujo incipit é Ut sive sollicite e está publicada no n.º 61 dos Acta Apostolicæ Sedis (p. 334). No que tange a heráldica, instrui-se o seguinte:
Sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint.
Hujus vero insignis aspectus ad normam artis exarandorum insignium delineandus erit, idemque simplex atque perspicuus sit oportet. Ab hujusmodi autem insigni sive baculi pastoralis sive infulæ effigies tollantur.
Em vernáculo:
Defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas.
A forma desse brasão deverá ser desenhada segundo a norma da arte de ordenar brasões. Cumpre, ainda, que o mesmo seja simples e distinto. Deste modo, tirem-se do brasão as imagens tanto do báculo pastoral como da mitra.
Apesar da brevidade, é justo reconhecer a precisão do texto. Assim, as armas de um prelado são constituídas de um escudo, que lhe serve de campo, e de certos ornamentos externos. O escudo não é deferido para o prelado pôr aí o que quiser e como quiser, mas deve ser "simples e distinto" e obedecer à "norma da arte de ordenar brasões". Tirados o báculo e a mitra dos ornamentos externos, ficam a cruz processional e o galero.
À luz dessas instruções, é objetivo apontar que no emblema do novo bispo se errou ao se trocar a cruz processional pelo báculo. Até pouco tempo atrás, o brasão era conceituado marca de nobreza. Como tal, servia à vanglória do seu titular e o clero não se excetuava disso. Daí que em 1915 o papa Bento XV tenha vedado os títulos e as insígnias nobiliárias aos patriarcas, arcebispos e bispos, salvo os anexos às suas sés (1), e em 1951 a estes Pio XII tenha acabado por estender a mesma vedação (2). Conclui-se, portanto, que o espírito dessas mudanças é despojar as armas prelatícias de honras seculares e, tanto quanto possível, de objetos litúrgicos, de modo a deixar o essencial para assinalar a posição do armígero na hierarquia eclesiástica.
Passando ao escudo, é bom que não se tenha dividido o campo, mas conto aí o excessivo número de oito figuras diferentes: uma cruz alta, de cujo pé brotam galhos de árvore, chantada num rio e acompanhada de um lírio entre os traços da letra M à destra, abaixo da travessa, e de outra cruz alta entre uma manjedoura e uma hóstia carregada de uma cruz, igualmente abaixo da travessa, o todo à sinistra, acima do rio. Nitidamente, o novo bispo tinha muito a dizer e o artista pouca ciência heráldica, tanto que não vejo como brasonar a pintura.
Com efeito, a citada notícia da diocese informa que a inspiração da cruz ramificada se acha no Salmo 1 (13) e no livro do profeta Jeremias (17, 8). A água tem três cores porque cada uma refere a um rio na vida de Dom Vanthuy: o Apodi, fonte do seu batismo; o Branco, fonte da sua vocação; o Negro, destino do seu ministério episcopal. Os símbolos marianos aludem ao sim da Santa Virgem como exemplo de resposta à missão. A manjedoura, a cruz e a hóstia indicam a espiritualidade do Prado, à qual o bispo de São Gabriel da Cachoeira se vincula. Diz, ainda, que as cores vermelha e negra lembram as pinturas corporais dos povos indígenas.
É muito normal que uma pessoa desconhecedora da heráldica almeje, ao assumir armas, mostrar de onde veio, aonde vai, o que faz, mas é aí que cabe ao bom heraldista orientá-la a meditar sobre o que julga mais significativo à luz do código heráldico. Assim, a emblemática pradosiana teria bastado, afinal já contém uma cruz.
Como mero exercício, eu teria recomendado a posição ordinária de três figuras na armaria: duas no alto e uma no baixo. Quanto à iluminura, negro sobre vermelho infringe a regra dos esmaltes, mas podem ficar lado a lado. Dando, então, à linha de partição forma ondada, far-se-ia referência à água sem sobrepesar o ordenamento. Em suma: partido ondado de vermelho e negro com uma manjedoura, uma cruz de cujo pé brotam ramos de árvore e uma custódia com a sua hóstia, tudo de prata e bem ordenado.
Seja como for, se consegui, ainda que dificultosamente, descrever o emblema de Dom Vanthuy, logo se pode ajustá-lo à arte heráldica. Para tanto, seria necessário abrir mão da cor negra, iluminando as figuras de ouro ou prata. O recurso ao perfil em tantas figuras pareceria abusivo; talvez ficasse razoável apenas aplicado à cruz ramificada, por ser principal e maior.
Sem dúvida, a resenha elogiosa é agradável ao resenhador, ao resenhado e ao leitor, mas por vezes a crítica corretora pode edificar mais, porque além de apontar o erro, mostra possibilidades futuras tanto aos doutos como aos neófitos.
(1) Decretum de vetitis nobilitatis familiaris titulis et signis in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1915, p. 172): "Quapropter Sanctitas Sua hoc edi jussit consistoriale decretum, quo Patriarchæ, Archiepiscopi et Episcopi omnes tam residentiales quam titulares in posterum in suis sigillis et insignibus seu armis, itemque in edictorum inscriptionibus, titulos nobiliares, coronas, signa aliasque notas sæculares, quæ nobilitatem propriæ familiæ vel gentis ostendant, addere penitus prohibentur, nisi forte dignitas aliqua sæcularis ipsi episcopali aut archiepiscopali sedi sit adnexa; aut nisi agatur de ordine equestri S. Joannis Hierosolymitani aut Ssmi Sepulchri" (Decreto que veda títulos e sinais de nobreza familiar nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que Sua Santidade mandou editar o presente decreto, pelo qual todos os patriarcas, arcebispos e bispos, tanto residenciais como titulares, ficam doravante terminantemente proibidos de acrescentar títulos nobiliários, coroas, sinais e outras notas seculares que mostrem a nobreza de sua família ou linhagem nos seus selos e brasões ou armas, igualmente nas intitulações de editos, a não ser que certa dignidade secular esteja acaso anexa à própria sé episcopal ou arquiepiscopal ou se trate da ordem de cavalaria de São João de Jerusalém ou do Santo Sepulcro").
(2) Decretum de vetito civilium nobiliarium titulorum usu in episcoporum inscriptionibus et armis (Acta Apostolicæ Sedis, 1951, p. 480): "Quapropter, præsenti Consistoriali Decreto, idem Ssmus Dominus Noster decernere dignatus est ut Ordinarii omnes in suis sigillis et insignibus seu armis, necnon in epistularum ac edictorum inscriptionibus, titulorum nobiliarium, coronarum aliarumve sæcularium notarum usu in posterum prorsus abstineant, etiam si ipsi episcopali vel archiepiscopali sedi sint adnexa" (Decreto que veda o uso de títulos nobiliários civis nas intitulações e armas dos bispos: "É por isto que pelo presente Decreto Consistorial nosso Santíssimo Senhor se dignou determinar que todos os ordinários se abstenham daqui em diante do uso de títulos nobiliários, coroas ou outras notas seculares nos seus selos e brasões ou armas, como também nas intitulações de cartas e editos, mesmo que estejam anexos à própria sé episcopal ou arquiepiscopal").
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