Apesar da magna honorificência sob a monarquia e a república, permanecem várias questões sobre as armas do duque de Caxias.
O brasão do duque de Caxias é, quiçá, o mais conhecido dentre os concedidos pelos imperadores brasileiros, já que o nosso exército faz amplo uso dele em várias insígnias. Contudo, não poucos problemas o envolvem.
Em primeiro lugar, o ordenamento mesmo. As Ordenações do Reino (1603, liv. V, t. XCII) estabeleciam que se podiam trazer "até quatro armas [...], esquarteladas, e mais, não", porém o referido brasão se compõe das armas de seis linhagens dentro de um escudo partido de dois traços e cortado de um, o que dá um quartel para cada uma: no primeiro as dos Silvas, no segundo as dos Fonsecas, no terceiro as antigas dos Limas, no quarto as dos Brandões, no quinto as dos Soromenhos e no sexto as dos Silveiras.
Para entender a composição desse escudo, é preciso ascender à linhagem de Luís Alves de Lima e Silva: filho de Francisco de Lima e Silva e Mariana Cândida de Oliveira Melo, neto de José Joaquim de Lima e Silva e Joana Maria da Fonseca Costa, bisneto de João da Silva da Fonseca Lima e Isabel Josefa Maria Brandão Ivo, filha de Francisco Lourenço Brandão Ivo e Maria Rodrigues Soromenho, neta de Matias Lourenço Brandão Ivo, bisneta de outro Matias Lourenço Brandão Ivo e Isabel da Silveira.
Portanto, as armas dos Silvas e dos Limas vieram ao duque por seu avô paterno e as demais por sua avó paterna: as dos Fonsecas por seu bisavô, as dos Brandões por sua bisavó, as dos Soromenhos por sua terceira avó e as dos Silveiras por sua quinta avó. É, de fato, um exemplo ilustrativo da transmissão heráldica por linha feminina, tão própria da armaria portuguesa.
Quem terá sido o oficial de armas que cometeu tão flagrante infração da norma heráldica pátria? Eis o maior problema: não se sabe quando se passou carta de brasão ao duque de Caxias! A brica por diferença sugere que não são armas assumidas, mas obra do Juízo e Cartório da Nobreza. Como a negligência daqueles que superintenderam esse órgão perdeu a maior parte dos registros, resta recorrer às fontes indiretas.
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Armas do duque de Caxias segundo o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), dos barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos. |
Consultando, pois, o Arquivo nobiliárquico brasileiro (1918), a fonte mais extensa e acessível, não se resolve o problema, mas fica aumentado. Para começar, os barões Rodolfo e Jaime Smith de Vasconcelos confundem os brandões da linhagem homônima com flores de lis e as armas dos Silveiras com as dos Ferreiras, além de chamar pereira à árvore dos Soromenhos. (1)
Além disso, os autores também atribuem as armas do duque a José Joaquim de Lima e Silva, visconde de Magé, a Manuel da Fonseca e Silva, barão de Suruí, seus tios, e a José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, conde de Tocantins e seu irmão, mas isso é inaceitável, porque no mínimo cada um deve ter recebido uma diferença pessoal, na forma da brica carregada de figura individual.
A confusão da composição e a falta de datação sugerem que os barões de Vasconcelos e Smith de Vasconcelos acharam essas armas nalguma reprodução muito pequena. Daí concluíram erroneamente que todos os titulados da família as ganharam. Ora, num tempo em que o estado controlava a heráldica gentilícia, não é possível que um brasão confirmado quatro vezes não tenha deixado atestação melhor que alguma miudeza armorejada. (2)
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Botão atribuído à libré da Casa do Duque de Caxias e leiloado pelo Escritório de Artes Miguel Salles em 2022. |
Com efeito, em 2022 o Escritório de Artes Miguel Salles leiloou um botão que mostra o brasão do duque. Anuncia que fazia parte da libré de sua casa, isto é, do uniforme que os seus empregados vestiam. Informa, ainda, que procede da coleção de Heloísa e Celso Figueiredo Filho. Tudo merece toda a confiança, mas também não resolve os problemas. De um lado, comprova a composição: Silva, Fonseca, Lima antigo, Brandão, Soromenho e Silveira. Do outro, a brica é azul com uma estrela, cujo esmalte o alto-relevo não permite discernir, e o timbre não é um coronel, mas um elmo com penacho.
O botão armoriado enseja, assim, novas perguntas: ter-se-á desenhado o brasão que aí figura antes da concessão do primeiro título nobiliário a Luís Alves de Lima e Silva? E terá sido ele, de fato, o primeiro que recebeu esse brasão? O serviço que Francisco de Lima e Silva prestou a Dom Pedro I durante todo o seu império, ao ponto de ter participado da Regência Trina após a abdicação, torna perfeitamente plausível que o imperador lhe tenha dado brasão de armas, afinal possuía comenda da Ordem de Avis, herdada de seu pai, quem Dom João VI fizera, ademais, fidalgo-cavaleiro da Casa Real em 1819. Isso explicaria o elmo.
Por certo, um detalhe heráldico indica que o botão foi mesmo fabricado sob o Império. Anselmo Braamcamp Freire, na sua Armaria portuguesa (1908), seguindo o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, põe a flor de lis e o crescente dos Soromenhos no chefe. Porém, Antônio de Vilas Boas e Sampaio, na Nobiliarquia portuguesa (1676), brasona-os precisamente como se veem no botão: "Em campo vermelho um soromenho no meio de ũa flor de lis de ouro e de uma meia lua do mesmo". Sabe-se que os oficiais de armas brasileiros dispunham e usavam de um exemplar desse livro.
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Armas do duque de Caxias segundo Domício da Gama na Revista Moderna (n.º 27, 1899). |
Em 1899, o n.º 27 da Revista Moderna publicou um artigo de Domício da Gama sobre a vida do duque de Caxias. Uma das ilustrações é o brasão: o mesmo escudo que está no botão, agora timbrado pelo coronel ducal. À estrela na brica deu-se a cor vermelha, o que infringe a regra dos esmaltes: cor sobre cor. É provável que seja, na verdade, de metal.
Mas se o Exército celebra tanto a memória de Caxias, por que rareiam testemunhos mais antigos das suas armas? Após a Guerra do Paraguai era Manuel Luís Osório, marquês do Herval, quem gozava da reputação de máximo herói, por ter comandado as forças brasileiras na Batalha de Tuiuti (1866). Morto o marquês em outubro de 1879 e o duque em maio de 1880, daquele encomendou-se em 1887 a estátua equestre que a República assentou em 1894 na Praça XV de Novembro, Rio de Janeiro.
O duque começou a ser lembrado mais de quatro decênios após a sua morte: desde 1923 na data do seu nascimento o Ministério da Guerra comemorou a Festa de Caxias e desde 1925 o Dia do Soldado. Em 1941, deu-se à sede nova desse ministério o nome de Palácio Duque de Caxias. Oito anos depois, diante desse edifício ergueu-se o panteão do duque, sobre o qual se reassentou a sua estátua equestre e sob o qual se depositaram os seus restos mortais e os da duquesa. O patronato do Exército, já consagrado, foi reconhecido pelo Decreto n.º 51.429, de 13 de março de 1962. (3, 4)
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Armas do duque de Caxias segundo Egon Prates Pinto na Revista Militar Brasileira (n.º 3, 1936). |
Voltando ao brasão de armas, em 1936 o mesmo ministério determinou que a Revista Militar Brasileira dedicasse ao duque uma edição comemorativa: a de n.º 3. A matéria heráldico-genealógica é tratada já no primeiro artigo, o texto de Egon Prates Pinto, tenente da Reserva, e a ilustração de Luís Gomes Loureiro, do Gabinete Fotográfico do Estado Maior, ambos do Exército. É daqui em diante que as armas dos Soromenhos aparecem corretas e — na esteira do Arquivo nobiliárquico brasileiro — a diferença como um farpão negro dentro de uma brica de prata, o que parece infringir igualmente a regra de iluminura, pois fica sobre as armas dos Silvas, portanto em campo do mesmo metal. Apesar disso, aponta-se somente uma fonte: um sinete, sobre o qual se diz ter pertencido a Caxias quando marquês e achar-se no acervo numismático do Museu Histórico Nacional. Contudo, como a consulta desse acervo não está completamente disponível na base eletrônica do museu, por enquanto não é possível conferi-lo. Vê-se, isto sim, um sinete do duque no Acervo do Exército Brasileiro, mas este não está armoriado, pois o emblema que imprime é a abreviatura D. de C., encimada do coronel ducal.
Chegamos, enfim, a um beco sem saída. No mínimo, há dois brasões, ainda que compostos da mesma forma: um traz por diferença uma estrela e o outro, um farpão, ambas as figuras dentro de uma brica. Tanto uma como a outra apresentam defeitos: suponho que talvez por imperícia heráldica o ilustrador da Revista Moderna tenha olhado as estrelas vermelhas dos Fonsecas e daí pintado a solitária da mesma cor; quanto ao trabalho de Pinto e Loureiro, não posso julgá-lo sem ver o objeto em que se baseiam.
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Selo do duque de Caxias conforme o sinete conservado no Acervo do Exército Brasileiro. |
Ficam, pois, algumas perguntas: se Pinto tomou o farpão do sinete a que refere e há mesmo aí um coronel de marquês, então esse brasão pertenceu de fato a Caxias, porque nem seus tios nem seu irmão alcançaram tal grau. Mas depois de ascender ao ducado, por que não mandou trocar o coronel no sinete novo, mas inscreveu uma abreviatura? E de quem era o brasão atestado pelo botão, com uma estrela por diferença?
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Medalha do Pacificador. |
Seja como for, o Exército tornou o desenho de Loureiro praticamente oficial: tem servido à cunhagem da Medalha do Pacificador desde 1953 e figura na bandeira-insígnia e no estandarte "histórico" do duque, conforme as Portarias n.os 1.277 e 1.278, de 21 de agosto de 2019, do Comando do Exército. Na verdade, a cópia excessiva acabou enfeando o original. Como hoje em dia nessa força reina a ignorância heráldica, não surpreende a confusão entre brasão e reprodução.
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