01/04/21

POR QUE PARTE DO ESCUDO SE DEVE COMEÇAR A BRASONAR

Assim como o direito e a economia têm o "juridiquês" e "economiquês", a heráldica desenvolveu uma linguagem que parece hermética, mas é técnica.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le huitiesme chapitre, par lequel est déclaré en quelle partie de l'escu on doit commencer à blasonner.

Quand l'escu est de métal et couleur, d'un ou plusieurs, et ledit escu est entier, l'on doit premièrement nommer la pointe. Et quand il est parti, on doit commencer à la partie qui est sur dextre. Et s'il est escartelé, on doit premièrement nommer le quartier de la main dextre, comme pouez veoir par les escus ci-dessous figurés.

D'or au chief de sable.
D'or au chief de sable.

Parti : le premier d'argent à une bande de sable ; l'autre de vairs.
Parti : le premier d'argent à une bande de sable ; l'autre de vairs.

Escartelé d'argent et de sable.
Escartelé d'argent et de sable.

O oitavo capítulo, pelo qual é esclarecido por que parte do escudo se deve começar a brasonar.

Quando o escudo é de metal e de cor, de um ou vários, e esse escudo é inteiro, deve-se primeiramente nomear a ponta. Quando é partido, deve-se começar pela parte que está à destra. Quando é esquartelado, deve-se primeiramente nomear o quartel da mão destra, como você pode ver pelos escudos figurados abaixo.

De ouro com um chefe de negro.
De ouro com um chefe de negro.

Partido: o primeiro de prata com uma banda de negro; o outro de veiros.
Partido: o primeiro de prata com uma banda de negro; o outro de veiros.

Esquartelado de prata e de negro.
Esquartelado de prata e de negro.

Comentário:

Em vários aspectos, o ofício de armas parece um sacerdócio. Tomando o de Portugal por exemplo, ordenava-se em três graus, assim como três são os graus do sacramento da ordem (episcopado, presbiterado e diaconado). A provisão no ofício acontecia por meio de uma cerimônia presidida pelo rei, tal como o rito da ordenação é presidido pelo bispo. Ao ser provido, o oficial de armas era batizado com o nome do seu cargo, como em certas ordens o postulante troca o seu nome civil por um nome religioso ao se tornar noviço. Assim, o primeiro grau era integrado pelos reis de armas Portugal, Algarve e Índia; o segundo, pelos arautos Lisboa, Silves e Goa; o terceiro, pelos passavantes Santarém, Lagos e Cochim. Além disso, a sua veste, o tabardo, semelhava a dalmática dos diáconos e pode-se dizer que a sua "religião" era a cavalaria e a sua "língua litúrgica", a linguagem heráldica.

Apesar de ser verdade que a "língua do brasão" confere à armaria um caráter hermético que interessava aos arautos e até hoje aparenta ser um condão de alguns poucos, é igualmente verdadeiro que consiste numa linguagem técnica, como a do direito ou a da economia, para citar dois exemplos conhecidos jocosamente como "juridiquês" e "economiquês". O problema da heráldica é que faltam obras, especialmente em português, que abordem questões como o brasonamento de forma objetiva e didática.

A primeira consideração que se deve tecer sobre a linguagem heráldica é que foi forjada em francês. Como o português também é uma língua românica, isso fica em grande medida oculto, até mais que noutras, por causa do apego à vernaculidade que marca a heráldica portuguesa. Assim, não só pala, faixa, banda ou barra são palavras comuns do nosso vocabulário, mas por sommé e surmonté dizemos rematado e encimado, ao passo que em espanhol se preferem os galicismos sumado e surmontado. Um exemplo oposto é a heráldica britânica: não só o fato de o inglês ser uma língua germânica evidencia a origem francesa de termos como pale, fess, bend ou bar, mas, de modo geral, essa tradição foi elaborada num idioma híbrido, de léxico francês e gramática inglesa.

Depois, vou voltar a comparar a heráldica com a linguística. Um dos conceitos que descrevem o sistema linguístico é a dicotomia paradigma/sintagma. O paradigma é concebido como um eixo vertical que delimita certo conjunto de opções e o sintagma, como um eixo horizontal, em que essas opções se concatenam. Tome-se uma sentença qualquer, como a árvore tem frutos vermelhos: cada constituinte dessa sentença foi escolhido dentro de certo conjunto. Dessa maneira, o artigo a faz parte de um conjunto em que estão contidos o demonstrativo essa ou o numeral umaessa árvore, uma árvore etc.; o substantivo árvore, de um em que estão contidos outros substantivos, como arbusto ou ramo: o arbusto, o ramo etc. E assim por diante, de modo que em cada cruzamento desses eixos se estabelecem duas relações: uma entre os elementos presentemente enunciados, isto é, a + árvore + tem + frutos + vermelhos; a outra entre cada um destes e as opções ausentes, isto é, a (não essa, não uma etc.), árvore (não arbusto, não ramo etc.) etc.

A linguagem heráldica funciona por meio do mesmo mecanismo: no eixo paradigmático estão os esmaltes, as peças ou as figuras e os predicativos; no eixo sintagmático fica a sequência dos constituintes das armas, cuja ordem de leitura é a mesma da escrita latina, isto é, da esquerda para a direita do leitor ou, mais propriamente, da destra para a sinistra do escudo. Não obstante, um brasão é ordenado como se os seus constituintes fossem costurados ou aplicados uns sobre os outros. Daí que, mais precisamente, se leia do fundo para a superfície e, ao mesmo tempo, da destra para a sinistra, como expus na postagem de 10/02.

Suponhamos, pois, que alguém traz por armas uma árvore de frutos vermelhos, como uma macieira:

  • O primeiro constituinte do sintagma é o campo, pois, como já sabemos, é indispensável que um brasão tenha um. Isso se exprime simplesmente indicando o esmalte: de E, onde E é o esmalte e fica subentendido campo de E.
  • O segundo é a peça ou figura principal, que se põe no centro do campo. Suponho que o autor do Tratado Prinsault diz que se começa a brasonar pela ponta porque o chefe fica sempre por último. Em português, brasona-se de duas formas: com F de E ou F de E, onde F é a peça ou figura. Na primeira construção, subentende-se campo de E com F de E; na segunda, em campo de E, F de E. Prefiro a primeira, onde a preposição com equivale à francesa à.
  • No conjunto do campo com uma peça ou figura já se observa a regra de iluminura, então: de Em com F de Ec ou de Ec com F de Em, onde Em é metal e Ec é cor. Mas convém lembrar que as peles podem combinar-se tanto com os metais como com as cores: de Ep com F de Em/Ecde Em/Ec com F de Ep ou mesmo de Ep com F de Ep, onde é Ep é pele. Escolhendo dois esmaltes para o nosso exemplo fictício, brasonemo-lo: de prata com uma macieira de verde. Convém ressaltar que há uma diferença entre o francês e o português: naquela língua, uma peça ou figura única é brasonada com o artigo definido, d'argent au pommier de sinople; na nossa, alguns tentam decalcar isso omitindo o numeral (de prata com macieira de verde), mas tanto faz.
  • Depois, cumpre atentar no qualificador da peça ou figura. É aqui onde as coisas parecem complicar-se, mas, na verdade, é onde se começa a demandar estudo, pois na heráldica cada peça e cada uma das figuras mais frequentes tem um qualificador por defeito, que não se brasona; consequentemente, é preciso brasonar qualquer um que altere esse padrão. Por exemplo, uma árvore é, por defeito, figurada mostrando as suas raízes, como se tivesse sido arrancada do solo, daí que se diga arrancada de E quando essas raízes são iluminadas de esmalte diferente. No paradigma dos qualificadores das árvores, outros são: de pé cortadodesfolhado, desgalhadoflorido, frutado, sustido. O qualificador pode referir apenas à forma (de pé cortadodesfolhado, desgalhado), apenas ao esmalte (arrancado, sustido) ou tanto à forma como ao esmalte (florido de E, frutado de E). Em geral, o qualificador de esmalte não está sujeito à regra de iluminura. O nosso exemplo fica, então, brasonado assim: de prata com uma macieira de verde, frutada de vermelho, ou seja, de E com F de E, Qfe de E, onde Qfe é o qualificador de forma e esmalte.
  • Pode, ainda, haver peças ou figuras adicionais, as quais têm, à sua vez, os seus qualificadores e são brasonadas conforme a sua relação com a peça ou figura principal. Ao predicativo que refere a essa relação chamo dêitico relativo. Os mais frequentes são: acompanhado, brocantecarregado, encimado, firmado, ladeado, movente, passados em asparematado, sustido. Vamos dar dois ao nosso brasão imaginário: de prata com uma macieira de verde, frutada de vermelho, firmada numa campanha do mesmo; brocante um escudete de azul. Eis a sintaxe: de E com F de E, Qfe de E, Dr(+P) F de E; Dr(+P) F de E, onde Dr é o dêitico relativo e P é a preposição que a transitividade pede (acompanhado de/porfirmado emmovente de etc.). A aplicação da regra de iluminura às figuras adicionais é relativa, pois depende de uma série de variáveis, mais ou menos aceitáveis: que peça ou figura é, sobre que superfície se encontra, dentro dos bordos ou ultrapassando-os.
  • Enfim, pode haver mais peças ou figuras cuja posição é brasonada pela relação de uma com a outra. Desses dêiticos, que denomino locativos, os mais frequentes são: acantonado, adossado, afrontado, alinhado, apontado, postounido. No nosso exemplo imaginário, pode ser: de prata com uma macieira de verde, frutada de vermelho, firmada numa campanha do mesmo; brocante um escudete de azul, carregado de três flores de lis do campo, alinhadas em banda. Na sintaxe: de E com F de E, Qfe de E, Dr(+P) F de E; Dr(+P) F de E, Dr(+P) de F de E, Dl, onde Dl é o dêitico locativo.

Apesar do meu esforço didático, na literatura técnica heráldica costuma-se repetir uma máxima: é mais fácil mostrar do que descrever. Todo o razoado até aqui pode ser ilustrado como segue:

Funcionamento da linguagem heráldica à luz da dicotomia paradigma/sintagma.
Funcionamento da linguagem heráldica à luz da dicotomia paradigma/sintagma.

E pode ser desenhado assim:

Armas fictícias: de prata com uma macieira de verde, frutada de vermelho, firmada numa campanha do mesmo; brocante um escudete de azul, carregado de três flores de lis do campo, alinhadas em banda.
Armas fictícias: de prata com uma macieira de verde, frutada de vermelho, firmada numa campanha do mesmo; brocante um escudete de azul, carregado de três flores de lis do campo, alinhadas em banda.

Note, prezado leitor, que o fato de ser uma linguagem técnica não torna o brasonamento alheio à conveniência de certa elegância, daí que se empreguem expressões como do mesmo, do campo, do primeiro para evitar a repetição do nome de um esmalte. Além disso, no comentário ao próximo capítulo esclarecerei a nomenclatura que adotei na minha análise da linguagem heráldica.

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