13/04/21

HERÁLDICA ECLESIÁSTICA PESSOAL: ARMAS GENTILÍCIO-DEVOCIONAIS

Ainda sob a influência da heráldica do Antigo Regime, alguns clérigos combinaram armas gentilícias com devocionais, criando interessantes composições.

Entre os inúmeros descendentes do português Jerônimo de Albuquerque e da índia Maria do Espírito Santo Arco Verde estava Dom Joaquim Cardeal Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti. Jerônimo era irmão de Brites (ou Beatriz) de Albuquerque, mulher de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco, veio com eles para o Brasil em 1535 e ajudou-a a governar essa capitania durante a ausência de seu cunhado e, após o falecimento deste, as de seus sobrinhos, também como procurador de um deles, Jorge Coelho de Albuquerque, o terceiro donatário. Maria era filha de Ubirá Ubi, chefe dos tabajaras, salvou Jerônimo da morte depois de ter sido feito cativo pelo seu povo e foi batizada com o nome de seu pai traduzido para o português: Arco Verde.

A primogênita de Jerônimo e Maria, Catarina, casou-se com Filipe Cavalcanti, um fidalgo italiano que foi para Portugal em meados do século XVI e daí passou para o Brasil. Outro filho, também chamado Jerônimo, tomou parte da expedição que assegurou o domínio português sobre o Rio Grande em 1597, comandou o forte dos Reis Magos, construído em 1598, fundou a cidade do Natal em 1599, exerceu aqui o cargo de capitão-mor de 1603 a 1610 e reconquistou o Maranhão aos franceses em 1615, de que foi o capitão-mor desde o ano seguinte até o seu falecimento, em 1618. De Catarina descendem os Albuquerque Cavalcanti e de Jerônimo, os Albuquerque Maranhão.

O Cardeal Arcoverde nasceu em 1850 na fazenda Fundão, termo de Cimbres (hoje Pesqueira), atualmente dentro do município de Arcoverde (Rio Branco antes de 1943, renomeado em homenagem ao filho ilustre). Ordenado presbítero em 1874 em Roma, onde se formara, voltou no ano seguinte para Pernambuco. Foi reitor do seminário de Olinda, pároco e professor no Recife. Em 1888, portanto ainda sob o padroado, recusou ser nomeado bispo coadjutor de Salvador. Foi ordenado bispo em 1890 em Roma e nomeado para a diocese de Goiás, mas renunciou em seguida por motivo de saúde. Mudou-se para Itu, onde retomou a docência. Em 1892, foi nomeado bispo titular de Argos e coadjutor de São Paulo. Sucedeu a Dom Lino de Carvalho como décimo bispo diocesano de São Paulo em 1894 e três anos depois a Dom João Esberard na sé metropolitana do Rio de Janeiro como o terceiro arcebispo desta, onde permaneceu até o seu falecimento, em 1930. No consistório de 11 de dezembro de 1905, o papa São Pio X criou-o cardeal-presbítero do título dos Santos Bonifácio e Aleixo. Foi, pois, o primeiro antístite latino-americano a vestir a púrpura cardinalícia. Dom Arcoverde desempenhou um papel de liderança durante a desestatização da igreja, procurando resolver diferenças para com a República.

Brasão do cardeal Arcoverde, esculpido no tímpano do Palácio São Joaquim, no Rio de Janeiro (imagem disponível na Wikimidia Commons).
Brasão do cardeal Arcoverde, esculpido no tímpano do Palácio São Joaquim, no Rio de Janeiro (imagem disponível na Wikimidia Commons).

No campo da armaria, o cardeal Arcoverde usava de uma composição muito interessante: esquartelado, o primeiro de azul com uma torre de ouro, assente numa planície de negro e encimada de uma hóstia de prata, carregada das letras IHS de negro; o segundo e o terceiro de verde com cinco flores de lis de ouro; o quarto de prata, mantelado de vermelho, semeado de quinquifólios de prata, com uma asna de azul, brocante sobre a partição; insígnias de cardeal arcebispo; divisa: Domini fortitudo nostra.

Por um lado, a assunção de armas gentilícias ainda reflete as práticas do Antigo Regime, que expus na postagem anterior. Com efeito, pelo direito heráldico luso-brasileiro o cardeal podia trazer plenamente as armas dos Albuquerques e as dos Cavalcantis. O próprio rei de armas do imperador ordenou-as nas concessões aos viscondes de Albuquerque, Camarajibe e Suaçuna e ao barão de Muribeca, respectivamente os irmãos Antônio, Pedro, Francisco e Manuel, todos dos sobrenomes Cavalcanti de Albuquerque. Por outro lado, como se tais práticas já cheirassem a anacronismo, o cardeal não só carregou o primeiro quartel de armas devocionais, mas também diferençou as armas antigas dos Albuquerques, trocando o vermelho do campo por verde, certamente em referência ao sobrenome Arcoverde. As armas do quarto quartel são as dos Cavalcantis. A sua divisa significa 'A nossa força é do Senhor'.

Armas de Dom Joaquim Cardeal Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, terceiro arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro: esquartelado, o primeiro de azul com uma torre de ouro, assente numa planície de negro e encimada de uma hóstia de prata, carregada das letras IHS de negro; o segundo e o terceiro de verde com cinco flores de lis de ouro; o quarto de prata, mantelado de vermelho, semeado de quinquifólios de prata, com uma asna de azul, brocante sobre a partição; insígnias de cardeal arcebispo; divisa: Domini fortitudo nostra.
Armas de Dom Joaquim Cardeal Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti, terceiro arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro: esquartelado, o primeiro de azul com uma torre de ouro, assente numa planície de negro e encimada de uma hóstia de prata, carregada das letras IHS de negro; o segundo e o terceiro de verde com cinco flores de lis de ouro; o quarto de prata, mantelado de vermelho, semeado de quinquifólios de prata, com uma asna de azul, brocante sobre a partição; insígnias de cardeal arcebispo; divisa: Domini fortitudo nostra.

A combinação de armas gentilícias com armas de devoção produziu brasões excelentes na heráldica eclesiástica brasileira, alguns de forma muito criativa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário