A ciência heráldica não seria como é sem a vasta e ótima obra do P.e Ménestrier.
O melhor tratado de armaria em português até o século XIX está no terceiro livro dos Elementos da história (1766), traduzidos por Pedro de Sousa de Castelo Branco. Os originais são Les éléments de l'histoire (1758), escritos por Pierre Le Lorrain, abade de Vallemont. Este, à sua vez, bebeu das fontes lavradas pelo Padre Claude-François Ménestrier. Como são muitas e fartas, rara será a boa obra nesse campo que não deixar ver influência direta ou indireta de tamanho mestre.
Com efeito, poucas lições bastam para perceber que o P.e Ménestrier era profundamente vocacionado para o magistério. Isso precisamente o afastava da postura magistral dominante no seu tempo, ainda apegada à explicação mítica. Ao buscar aprender mais e ensinar melhor, ele se impunha um rigor que só se difundiria depois, a partir do iluminismo.
Nascido em Lyon, França, em 1631, e tendo-se formado no colégio jesuíta dessa cidade, o P.e Ménestrier publicou a sua primeira obra sobre heráldica em 1659: Le véritable art du blason. Tinha então treze anos de profissão na Companhia de Jesus. A derradeira saiu em 1695, um decênio antes da sua morte em Paris, onde morava desde 1670: La nouvelle méthode raisonnée du blason. Entre uma e a outra medeiam 36 anos, durante os quais revisou e refundiu, ora resumindo ora ampliando a matéria, de tal maneira que o leitor de La nouvelle méthode se sente ante um professor experiente e zeloso.
Quem, pois, quiser percorrer a obra do P.e Ménestrier sobre a armaria também terá de passar por: L'art du blason justifié (1661), Abrégé méthodique des principes héraldiques (1661), Le véritable art du blason et la pratique des armoiries depuis leur institution (1671), Le véritable art du blason et l'origine des armoiries (1671), Le véritable art du blason ou l'usage des armoiries (1673), Les recherches du blason (1673), Origine des armoiries (1680), Origine des ornements des armoiries (1680), Le blason de la noblesse (1683), La méthode du blason (1689), La science de la noblesse (1691) e Le jeu de cartes du blason (1696).
Mas a obra do P.e Ménestrier no campo heráldico não é apenas vasta e metódica. Ele a produziu ao mesmo tempo que estudava e escrevia sobre eventos, música, dança, artes plásticas, numismática, história: Traité des tournois, joutes, carrousels et autres spectacles publics (1669), Des représentations en musique anciennes et modernes (1681), Les ballets anciens et modernes selon les règles du théâtre (1682), La philosophie des images (1682), De la chevalerie ancienne et moderne (1683), Les décorations funèbres (1684), L'art des emblèmes (1684), La science et l'art des devises (1686), Histoire du roi Louis le Grand par les médailles, emblèmes, devises, jetons, inscriptions, armoiries et autres monuments publics (1689), La philosophie des images énigmatiques (1694), Histoire civile et consulaire de la ville de Lyon (1696), Bibliothèque curieuse et instructive des divers ouvrages anciens et modernes de littérature et des arts (1704), para citar apenas os trabalhos mais gerais e maduros. Portanto, esse laborioso jesuíta dedicava-se às linguagens artísticas de que a Coroa e a nobreza usavam, abordando-as como ciências auxiliares da história. Isso o faz precursor da semiótica.
Em particular, La nouvelle méthode raisonnée du blason compendia todo o esforço do P.e Ménestrier em divulgar a heráldica como disciplina. O subtítulo já dá uma ideia disso: Pour l'apprendre d'une manière aisée, réduite en leçons par demandes et par réponses ('Para aprendê-la de modo fácil, reduzido em lições por perguntas e respostas'). Prova o seu sucesso o número de edições: 1701, 1718 (revista, corrigida e aumentada; reimpressa em 1723 e 1728), 1754 (reimpressa em 1761) e 1770 (reimpressa em 1780). É nesse livro que se acha um poema que resume os preceitos da armaria.
Os chefes, faixas, palas, cruzes, bordaduras, / As bandas, barras, aspas, asnas e figuras / Outras e objetos mais pintam-nos o valor, / Sem sobrepor metal a metal, cor a cor. (2) |
O Abrégé du blason en vers encerra a 28.ª lição. Segue-se à pergunta "Est-ce là tout ce qu'on peut dire du blason ?" ("Isso é tudo que se pode dizer da armaria?"), cuja resposta é "Oui. Ce me semble pour une simple méthode de l'art de blasonner. Et pour vous la rendre encore plus aisée, je veux bien vous reciter en peu de vers, ce que j'ai appris touchant le blason" ("Sim. É o que me parece para um método simples da arte de brasonar. E para torná-la ainda mais fácil para você, quero muito lhe recitar em poucos versos o que ensinei no tocante à armaria"). Esta colocação aponta que nem é preciso ler a composição para perceber que, depois de 27 lições, o incansável professor continua preocupado com o aprendizado do aluno. Assim, o poema é tanto um opúsculo de caráter estético como também um recurso de caráter mnemônico. Ei-lo:
Abrégé du blason en versLe blason composé de différents émauxN'a que quatre couleurs, deux pannes, deux métauxEt les marques d'honneur qui suivent la naissanceDistinguent la noblesse et sont sa récompense.Or, argent, sable, azur, gueules, sinople, vair,Hermine, au naturel et la couleur de chair ;Chef, pal, bande, sautoir, fasce, barre, bordure,Chevron, pairle, orle et croix de diverse figureEt plusieurs autres corps nous peignent la valeur,Sans métal sur métal, ni couleur sur couleur.Supports, cimier, boulet, cri de guerre, devise,Colliers, manteaux, honneurs et marques de l'égliseSont de l'art du blason les pompeux ornements,Dont les corps sont tirés de tous les éléments :Les astres, les rochers, fruits, fleurs, arbres et plantesEt tous les animaux de formes différentesServent à distinguer les fiefs et les maisonsEt des communautés composent les blasons.De leurs termes précis énoncez les figures,Selon qu'elles auront de diverses postures.Le blason plein échoit en partage à l'ainé,Tout autre doit briser comme il est ordonné.
Assim que li esse gracioso poema tive vontade de traduzi-lo! Mas a sua graça está justamente em abreviar a arte heráldica em verso, logo fazê-lo em prosa o despojaria da qualidade estética. Para começar, a tradução poética demanda um exame mais judicioso da forma e do conteúdo.
Suportes, coronéis, timbres, mantos, troféus, / Motes, gritos, cordões, colares e chapéus / Do brasão d'armas são pomposos ornamentos, / Ao qual figuras dão todos os elementos. (3) |
O Abrégé compõe-se de 22 versos alexandrinos, o metro clássico da poesia francesa. As rimas estão emparelhadas, o que dá onze dísticos. O conteúdo evolui através de oito unidades: 1-4, a natureza do brasão; 5-6, os esmaltes; 7-8, as peças; 9-10, a regra de iluminura; 11-14, os ornamentos externos; 15-18, as figuras; 19-20, o brasonamento; 21-22, a diferença.
Essa análise é primordial para a tradução, porque o alexandrino não é um verso fácil para a língua portuguesa. Cumpria, porém, não perder de vista a finalidade didática do poema, de modo que optar por outro metro, como o nosso clássico decassílabo, podia levar a uma indesejável refundição do conteúdo, especialmente das enumerações, pois onde o P.e Ménestrier dispôs de doze sílabas para arrolar vários monossílabos e oxítonos, eu disporia de dez para vários paroxítonos. Eis o resultado:
Síntese do brasão em verso
O brasão se compõe de esmaltes variamente:
Dois forros, dois metais, cinco cores somente
E os honrosos sinais que seguem a nascença
Distinguem a nobreza e são uma recompensa.
Ouro, vermelho, azul, púrpura, preto, prata,
Verde, veiros, arminho: é, pois, a conta exata.
Os chefes, faixas, palas, cruzes, bordaduras,
As bandas, barras, aspas, asnas e figuras
Outras e objetos mais pintam-nos o valor,
Sem sobrepor metal a metal, cor a cor.
Suportes, coronéis, timbres, mantos, troféus,
Motes, gritos, cordões, colares e chapéus
Do brasão d'armas são pomposos ornamentos,
Ao qual figuras dão todos os elementos:
O que se vê no céu, na terra os vegetais,
Bichos, o ser humano, os corpos naturais
Servem p'ra distinguir linhagens e solares
E o domínio marcar com signos sigilares.
Com justeza enunciai o termo da figura,
Assim como estiver numa ou noutra postura.
Direitas ao irmão mais velho as armas cabem;
Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem.
Naturalmente, algumas parelhas foram mais difíceis. Em especial, não achei jeito de compor dois alexandrinos clássicos ao traduzir os versos 7 e 8, porque a maioria das peças tem nomes dissílabos paroxítonos em português. Coloquei, então, acentos na 4.ª, 8.ª e 12.ª sílabas, de modo que o verso ficasse ao menos trímetro. Em compensação, aproveitei as aliterações: chefes, faixas; bandas, barras, aspas, asnas. Igualmente em 5 e 6: púrpura, preto, prata; verde, veiros.
Direitas ao irmão mais velho as armas cabem; / Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem. (5) |
A propósito, o P.e Ménestrier negava veementemente a púrpura entre os esmaltes, mas como essa discussão é estranha à armaria portuguesa, adaptei o conteúdo à realidade lusófona. Com o mesmo espírito, preferi os vernáculos direito e diferença aos galicismos pleno e brisura, mas daí a caberem no dodecassílabo... Lancei mão ao hipérbato: Direitas ao irmão mais velho as armas cabem; / Diferençá-las-ão os outros, todos o sabem.
Mantive, enfim, a concepção do brasão como marca de nobreza e honra, a qual o P.e Ménestrier defendia com igual afinco e, na verdade, era geral e própria da época. Acho que desta feita o texto se equilibra entre o destinatário hodierno e o pensamento do século XVII.
(1) Em sentido horário ilustram os esmaltes as armas dos Meneses, Castros, Pereiras, Ataídes, Vasconcelos, Andrades, Esteves de Lopo Esteves, Barretos e Alvarengas.
(2) Em sentido horário ilustram as peças as armas dos Corte-Reais, antigas dos Limas, Silveiras, Almadas, Martins de Diogo Martins, Bejas, antigas da Casa de Bragança, Aranhas e Coelhos.
(3) Ilustram os ornamentos externos as grandes armas do Império.
(4) Em sentido horário ilustram as figuras as armas dos Carvalhos, Coelhos de Nicolau Coelho, Pinheiros, Figueiredos, Vila-Lobos, Cabrais, Aguiares, Serpas e Mouras.
(5) Em sentido horário ilustram as diferenças e quebras as armas da Família Real entre 1734 e 1750: Dom João V, rei de Portugal; Dona Maria Ana, rainha de Portugal; Dom José, príncipe do Brasil; Dona Maria Francisca, princesa da Beira; Dom Pedro, duque de Beja; também as armas do duque de Aveiro; as antigas da Casa de Bragança, de que usava o duque do Cadaval; as dos Sousas, de que usava o duque de Lafões; e as dos Noronhas, de que usava o marquês de Angeja.
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