17/06/22

AS QUINTILHAS HERÁLDICAS DE SÁ DE MENESES (I)

Armas reais, do príncipe e do duque de Bragança.

De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham.

Por se levantar a glória
das linhagens mui honradas
que per obras mui louvadas
de si leixaram memória
a quem lhes siga as pegadas,
suas armas devisando,
algũas irei lembrando
donde lhe a nobreza vem,
por que faça quem a tem
pola soster bem obrando.

A primeira estrofe consiste no prólogo do poema. Nele, o poeta dá o tom — trata-se de poesia épica — e expõe que entende o brasão como marcas de nobreza e honra que preservam a memória de antepassados valorosos e renovam a cada geração a incitação a grandes feitos, em contraposição à heráldica clássica (séculos XIII e XIV), quando era mero identificador pessoal.

Armas de Portugal antigo: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo.
Armas de Portugal antigo: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo.

E direi primeiramente
das altas quinas reais
mandadas per Deus, as quais
já conhece tanta gente
por senhoras naturais,
que de Ceita até os chins,
no mar roxo e abaxins,
Índia, Malaca, Armuz,
com a espera e com a cruz
durarão té' fim dos fins.

Armas de Portugal moderno: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo; bordadura de vermelho, castelada de ouro.
Armas de Portugal moderno: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, castelada de ouro.

El-Rei

As dadas por mãos divinas
a rei mais que terreal
armas são de Portugal:
sobre prata, cinco quinas
cos dinheiros por sinal,
cujos reis que já passaram
com vitórias as pintaram
per África em grão tropel
e el-Rei Dom Manuel
onde os romãos nom chegaram.

A segunda e terceira estrofes versam sobre as armas reais. Ao menos desde a Crônica Geral de Espanha de 1344, do conde Pedro Afonso de Barcelos, a origem dessas armas foi vinculada à batalha que Dom Afonso Henriques venceu contra os mouros em Ourique, quando a sua hoste o aclamou rei de Portugal. A atestação mais antiga do chamado Milagre de Ourique, isto é, a aparição de Jesus Cristo na véspera dessa batalha, está na Crônica de Portugal de 1419, cuja autoria é atribuída a Fernão Lopes. À sua vez, esta serviu de fonte a Duarte Galvão na Crônica de Dom Afonso Henriques que escreveu em 1505. No capítulo 18, este assim narra:

Depois da batalha vencida, esteve el-Rei Dom Afonso três dias no campo, como é de costume fazerem os reis se lhe forçada necessidade não vem. E estando assi no campo, em lembrança da grande mercê que lhe Deus em aquele dia fizera, acrecentou em suas armas sinaes que mostrassem o que lhe ali acontecera. Primeiramente, porque lhe Nosso Senhor aparecera no ceo em cruz, pôs sobre o campo branco, que dantes no escudo trazia, por armas ũa cruz toda azul, partida em cinco escudos, pelos cinco reis que vencera, e meteu trinta dinheiros de prata em cada ũu dos escudos, em renembrança da morte e paixão de Nosso Senhor, vendido por trinta dinheiros. E os reis de Portugal que depois veeram, vendo como se nom podiam meter tantos dinheiros em pequenos escudos d'armas, poseram em cada um dos cinco escudos cinco dinheiros em aspa. E assi, contando por si cada ũa carreira da cruz de longo e através, metendo sempre no conto d'âmbalas vezes o escudo da metade, fazem trinta dinheiros. E desta maneira se trazem agora.

Cabe, todavia, apontar que para Sá de Meneses as armas reais foram "mandadas per Deus", "dadas por mãos divinas", ao passo que segundo Duarte Galvão foi o próprio rei que, "em lembrança da grande mercê que lhe Deus em aquele dia fizera, acrecentou em suas armas sinaes que mostrassem o que lhe ali acontecera". Essa divergência aproxima, curiosamente, a composição do poeta à elaboração posterior da lenda, como se lê na terceira parte da Monarquia lusitana (1632), de Frei Antônio Brandão: o próprio Cristo deu a Dom Afonso I os escudetes postos em cruz em memória do preço com que comprou o gênero humano — a crucificação — e os besantes, daquele com que foi comprado pelos judeus — as trinta moedas de prata pelas quais Judas Iscariotes o traiu.

Também é curioso que Sá de Meneses não mencione a bordadura castelada. Como coloquei na postagem de 19/01/2021, foi acrescentada por Dom Afonso III, não por causa da conquista do Algarve, mas antes, no bojo da deposição de Sancho II, seu irmão mais velho. Em heráldica, quando as armas de certo titular sofrem alterações substanciais, aplicam-se os termos antigo e moderno. Assim, as quinas sem a dita bordadura denominam-se armas de Portugal antigo e com ela, armas de Portugal moderno, se bem que aquelas, tal como as dou aqui, sejam um construto anacrônico, já que nas armas primitivas do rei português os escudetes eram besantados, os dos flancos apontados ao centro.

Na segunda quintilha de cada estrofe, Sá de Meneses ensaia a matéria que alguns decênios mais tarde o engenho e arte de Luís de Camões saberão lavrar ao fraguar a maior obra literária no idioma: as conquistas "onde os romãos nom chegaram". Quase versejando a titulação de rei dos Algarves d'aquém e d'além-mar em África e senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, os "chins" e "abaxins" são os chineses e abissínios, o "mar roxo" e "Armuz" são o mar Vermelho e o estreito de Ormuz.

Perceba-se, enfim, o testemunho sobre a empresa de Dom Manuel I e a insígnia da Ordem de Cristo: já em 1516, viam-se como emblemas que transcendiam os seus proprietários, pois de outro modo o vate não pressagiaria que as quinas "com a espera e com a cruz | durarão té' fim dos fins". Ora, essa espera e essa cruz são, precisamente, a esfera armilar e a cruz da dita ordem.

Armas do príncipe de Portugal: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes.
Armas do príncipe de Portugal: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes.

O príncipe

Estas de tanto primor,
com risco branco luzente,
do mui alto e excelente
príncepe, nosso senhor,
são, sem outro deferente.
Em esperança criado
pera como no reinado
em vertudes e poder
el-Rei, seu pai, soceder,
pera ser rei acabado.

A quarta estrofe versa sobre as armas do príncipe Dom João, que veio suceder a Dom Manuel I, seu pai, em 1521 como rei Dom João III. Nesse momento, o título do herdeiro presuntivo da Coroa era, simplesmente, príncipe de Portugal, pois bastava para distingui-lo de seus irmãos, os infantes. Após a restauração da independência, houve uma mudança onomástica e outra heráldica: desde 1645, esse herdeiro teve o título de príncipe do Brasil e trouxe o lambel de ouro (leia-se a postagem de 30/07/2021). Elevado o Brasil a reino em 1815, mudou-se o título mais uma vez em 1817: príncipe real.

Armas do duque de Bragança: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de dois pendentes, com dois escudetes quadrados, partidos de Aragão e Aragão-Sicília, brocantes sobre os pendentes.
Armas do duque de Bragança: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de dois pendentes, com dois escudetes quadrados, partidos de Aragão e Aragão-Sicília, brocantes sobre os pendentes.

O duque

A quem fende um labéu
de dous escudos reais
sem outros nenhuns sinais
que nom chegue de voléu
até's quinas devinais.
Sobrinho de seu senhor,
é de muito mor primor
do que meu louvor alcança:
senhor duque de Bragança,
o que tomou Azamor.

Esse duque era Dom Jaime de Bragança, filho de Isabel de Viseu, irmã de Dom Manuel I. Este fora primo do seu antecessor, Dom João II, e em 1498 ainda não tinha herdeiro, de modo que, ante o temor da extinção da linhagem real, Dom Jaime foi jurado príncipe até que, poucos meses depois, Dom Miguel da Paz nascesse.

Foi nesse contexto que trocou as armas da Casa de Bragança, que são uma quebra das armas reais à moda antiga, pelas armas reais diferençadas segundo o sistema novo que o regimento manuelino veio consolidar: o acrescentamento de um lambel, cujos pendentes se carregavam de armas maternas (leia-se a postagem de 28/07/2021). No caso, o duque subiu até uma de suas bisavós por parte de mãe: Dona Leonor de Aragão, filha de Fernando I de Aragão e esposa de Dom Duarte.

Como disse na postagem anterior, o próprio Sá de Meneses fez parte da expedição de Dom Jaime de Bragança contra a cidade marroquina de Azamor, que conquistou em 1513.

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