15/08/21

DO CONCEPTUAL AO REAL

Integrar um brasão a um sistema de identidade visual não implica em suplantar o desenho mais tradicional.

Impressiona-me o quanto certos monarquistas mitificam a história da heráldica brasileira, como se durante o Império tivesse atingido a opulência e a República tivesse frustrado esse brilhante desenvolvimento. Frustrantes são os fatos para quem assim pensa: a heráldica gentilícia era pobre e a estatal, inexistente. Explico.

Armas pessoais excelentes, como as concedidas a Luís Francisco Gonçalves Junqueira, barão de Jacuípe, em 1860, a saber, de azul com cinco flores de cana-de-açúcar de ouro, não eram a regra, mas a exceção. A regra era a composição de armas de linhagens portuguesas, mais pela homofonia dos sobrenomes do que por provas genealógicas, aqui e ali com alguma nota local. Já na heráldica estatal, havia apenas as armas nacionais, pois até mesmo os brasões municipais coloniais, tão poucos, parecem ter caído em desuso.

Quando adveio a República, o estado simplesmente deixou de reconhecer que alguns sujeitos são nobres e os demais são plebeus. Como, pelo direito heráldico português, que seguiu vigendo plenamente no Brasil independente, o brasão era uma marca de fidalguia e honra, perdeu a tutela estatal, tornando-se assunto privado do cidadão. Por outro lado, a heráldica estatal, boa ou má, começou imediatamente a se desenvolver. Isso não torna um regime melhor e o outro pior.

Muito pouca gente sabe, mas foi nessa conjuntura que um cearense propôs boas armas para todos os estados e as suas capitais. Trata-se do estadista Tristão de Alencar Araripe, que em 1891 publicou o artigo Brasões do Brasil na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dessas propostas, quatro chegaram a ser efetivamente adotadas, ainda que com modificações: os brasões de Curitiba, Fortaleza, Natal e Ouro Preto. Nesta postagem, abordo o de Fortaleza.

O brasão de Fortaleza tem uma história um tanto misteriosa. Começa com a mencionada proposta: "Em campo de goles, um castelo de ouro, com três torres do mesmo metal, sobranceiras, das quais a do meio é mais alta; com a coroa mural por cima. Mote: Fortitudine (1)". Depois, Clóvis Ribeiro, em Brasões e bandeiras do Brasil, acrescenta:

O projeto sofreu ligeiras modificações, pois foi assim oficializado: "Em campo azul, um castelo de ouro, sobre ondas ao natural. Encima o escudo a coroa mural de ouro. Divisa: Fortitudine, de sable, em listel de prata, enramado por dois galhos, um de fumo e o outro de algodão, ambos em flor e ao natural". (grifo meu)

Considerando que em todas as reproduções, a começar pelo belo desenho de José Wasth Rodrigues, que ilustra esse livro, nunca se viu um castelo (como bem descreve Tristão de Alencar Araripe, convencionalmente apresenta três torreões, o do meio mais alto), e sim uma torre, acho mais apropriado brasonar essas armas assim: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural; timbre: coroa mural de ouro; suportes: um ramo de fumo e outro de algodoeiro, ambos floridos e ao natural; divisa: Fortitudine, escrita de negro em listel de prata. Castelo ou torre, ao fim e ao cabo a figura principal é uma fortificação, portanto armas falantes: refere à Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (hoje sede do Comando da 10.ª Região Militar), que deu nome à povoação.

Brasão de Fortaleza (desenho de José Wasth Rodrigues, publicado em Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, 1933).
Brasão de Fortaleza (desenho de José Wasth Rodrigues, publicado em Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, 1933).

Apesar de aspear o texto, Clóvis Ribeiro não referencia o ato da oficialização. Com efeito, consta muito mais tarde: a Lei n.º 1.316, de 11 de novembro de 1958. No parecer sobre o projeto de lei de que se originou, a Comissão de Legislação e Cultura declara que "veio preencher uma lacuna por parte de nossa municipalidade, uma vez que não possui, como outras cidades da Federação, o seu pavilhão e o seu brasão". Isso não é possível, pois Brasões e bandeiras do Brasil foi publicado em 1933 e o brasonamento que o seu autor dá é o mesmo que consta do dito projeto de lei, mal copiado na própria lei, provavelmente por descuido do datilógrafo. É, pois, indubitável que se assumiu esse brasão nalgum momento entre 1891 e 1933. Talvez bandeira é que não tenha existido até 1958.

Com efeito, a bandeira é o cerne desta postagem. Consiste em "um campo branco em forma retangular cortado por faixas de cor azul, igual ao azul da Bandeira Brasileira, em diagonais; no cruzamento das duas faixas encontra-se o brasão do Município". A questão é: se o desenho do brasão que a prefeitura usa mudar, mudará também o da bandeira? De 2005 a 2012, isto é, durante a gestão de Luizianne Lins, esse desenho foi o seguinte:

Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura de 2005 a 2012).
Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura de 2005 a 2012).

Em 2013, quando se iniciava o primeiro mandato de Roberto Cláudio, a prefeitura de Fortaleza adotou uma identidade visual nova, à qual foi integrado o brasão municipal. Desconfio de que o Ceará seja pioneiro nesse movimento, pois desde 2007 o próprio município de Fortaleza conta com uma lei que impõe o uso do brasão e no mesmo ano o governo do estado revisou o emblema cearense e regulou o seu uso mediante manual de identidade visual. Por então, a marca de gestão ainda dominava esse terreno. As armas fortalezenses ficaram, então, assim:

Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura desde 2013).
Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura desde 2013).

Todos estes desenhos reproduzem corretamente o ordenamento. O de José Wasth Rodrigues apresenta um estilo mais naturalista, corrente no começo do século passado. O de 2005, um estilo habitual na heráldica mais recente. O de 2013, um estilo mais "logotipado", próprio dos sistemas hodiernos de identidade visual.

Na postagem de 09/08, abordei o caso das armas de Castela e Leão e da identidade visual do seu governo. Acertadamente, o manual que norteia essa identidade visual distingue o desenho em estilo convencional e a "adaptación del escudo para uso exclusivo de la Junta de Castilla y León" ("adaptação do brasão para uso exclusivo da Junta de Castilla y León"), porque essa comunidade autônoma espanhola possui dois vexilos, um de compleição medieval e o outro, moderna (sobre isto, leia-se a postagem de 25/01). Aquele é a bandeira propriamente dita, que consiste numa transposição das armas, e este, o pendón de Castilla y León ('pendão de Castela e Leão'), um pano carmesim com as armas no seu centro. O desenho delas em ambos tem estilo tradicional. Pareceria mesmo extravagante se fosse o da marca.

Já no Brasil, onde mesmo designers não sabem que um brasão é um conceito e desenhos são realizações de tal conceito, se a bandeira leva o brasão, é modificada a reboque da identidade visual que a gestão da vez adota, como comprova a foto abaixo, que registra José Sarto, prefeito de Fortaleza, em agenda pública recente.

José Sarto, prefeito de Fortaleza, em agenda pública recente (imagem disponível no portal da prefeitura).
José Sarto, prefeito de Fortaleza, em agenda pública recente (imagem disponível no portal da prefeitura).

Como eu disse na postagem anterior, os manuais brasileiros de identidade visual ainda são rasos. O da prefeitura de Fortaleza exemplifica bem isto, porque já na primeira página justifica razoavelmente cada escolha que se fez no trânsito do estilo convencional para o "logotipado":

  • Escudo: A inclusão de uma linha de contorno branca facilita a aplicação nas mais variadas superfícies.
  • Torre: Suavização das linhas e adequação para a cor ouro, como está dito na lei sobre o brasão, de 1958.
  • Mar: A cor passa a ser mais próxima à das águas do mar da cidade, e as linhas das ondas foram simplificadas.
  • Coroa mural dourada: Passa a ter a cor ouro e cinco torres visíveis, com pontas, como a heráldica determina para cidades que são capitais de estados.
  • Ramos: As linhas pretas foram suprimidas, dando leveza ao desenho.
  • Listel branco: A redução do movimento simplifica o desenho, ampliando as possibilidades de aplicabilidade do brasão. Anteriormente, existia a impressão de que a faixa teria mais elementos.

Como se percebe, quase todas as razões dizem respeito ao design. A única de caráter heráldico ecoa o mito das coroas murais.

A meu ver, a integração de um brasão a um sistema de identidade visual na forma de um desenho menos convencional não só é aceitável, mas também defensível. A demanda é inegável. No entanto, o brasão comporta alguns usos que estão, sim, reservados a reproduções mais tradicionais. A relação entre a heráldica e o design deve pautar-se na complementação, não na suplantação.

Nota:
(1) Significa 'Com força' (física ou moral).

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