Integrar um brasão a um sistema de identidade visual não implica em suplantar o desenho mais tradicional.
Impressiona-me o quanto certos monarquistas mitificam a história da heráldica brasileira, como se durante o Império tivesse atingido a opulência e a República tivesse frustrado esse brilhante desenvolvimento. Frustrantes são os fatos para quem assim pensa: a heráldica gentilícia era pobre e a estatal, inexistente. Explico.
Armas pessoais excelentes, como as concedidas a Luís Francisco Gonçalves Junqueira, barão de Jacuípe, em 1860, a saber, de azul com cinco flores de cana-de-açúcar de ouro, não eram a regra, mas a exceção. A regra era a composição de armas de linhagens portuguesas, mais pela homofonia dos sobrenomes do que por provas genealógicas, aqui e ali com alguma nota local. Já na heráldica estatal, havia apenas as armas nacionais, pois até mesmo os brasões municipais coloniais, tão poucos, parecem ter caído em desuso.
Quando adveio a República, o estado simplesmente deixou de reconhecer que alguns sujeitos são nobres e os demais são plebeus. Como, pelo direito heráldico português, que seguiu vigendo plenamente no Brasil independente, o brasão era uma marca de fidalguia e honra, perdeu a tutela estatal, tornando-se assunto privado do cidadão. Por outro lado, a heráldica estatal, boa ou má, começou imediatamente a se desenvolver. Isso não torna um regime melhor e o outro pior.
Muito pouca gente sabe, mas foi nessa conjuntura que um cearense propôs boas armas para todos os estados e as suas capitais. Trata-se do estadista Tristão de Alencar Araripe, que em 1891 publicou o artigo Brasões do Brasil na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Dessas propostas, quatro chegaram a ser efetivamente adotadas, ainda que com modificações: os brasões de Curitiba, Fortaleza, Natal e Ouro Preto. Nesta postagem, abordo o de Fortaleza.
O brasão de Fortaleza tem uma história um tanto misteriosa. Começa com a mencionada proposta: "Em campo de goles, um castelo de ouro, com três torres do mesmo metal, sobranceiras, das quais a do meio é mais alta; com a coroa mural por cima. Mote: Fortitudine (1)". Depois, Clóvis Ribeiro, em Brasões e bandeiras do Brasil, acrescenta:
O projeto sofreu ligeiras modificações, pois foi assim oficializado: "Em campo azul, um castelo de ouro, sobre ondas ao natural. Encima o escudo a coroa mural de ouro. Divisa: Fortitudine, de sable, em listel de prata, enramado por dois galhos, um de fumo e o outro de algodão, ambos em flor e ao natural". (grifo meu)
Considerando que em todas as reproduções, a começar pelo belo desenho de José Wasth Rodrigues, que ilustra esse livro, nunca se viu um castelo (como bem descreve Tristão de Alencar Araripe, convencionalmente apresenta três torreões, o do meio mais alto), e sim uma torre, acho mais apropriado brasonar essas armas assim: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural; timbre: coroa mural de ouro; suportes: um ramo de fumo e outro de algodoeiro, ambos floridos e ao natural; divisa: Fortitudine, escrita de negro em listel de prata. Castelo ou torre, ao fim e ao cabo a figura principal é uma fortificação, portanto armas falantes: refere à Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (hoje sede do Comando da 10.ª Região Militar), que deu nome à povoação.
Brasão de Fortaleza (desenho de José Wasth Rodrigues, publicado em Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, 1933). |
Apesar de aspear o texto, Clóvis Ribeiro não referencia o ato da oficialização. Com efeito, consta muito mais tarde: a Lei n.º 1.316, de 11 de novembro de 1958. No parecer sobre o projeto de lei de que se originou, a Comissão de Legislação e Cultura declara que "veio preencher uma lacuna por parte de nossa municipalidade, uma vez que não possui, como outras cidades da Federação, o seu pavilhão e o seu brasão". Isso não é possível, pois Brasões e bandeiras do Brasil foi publicado em 1933 e o brasonamento que o seu autor dá é o mesmo que consta do dito projeto de lei, mal copiado na própria lei, provavelmente por descuido do datilógrafo. É, pois, indubitável que se assumiu esse brasão nalgum momento entre 1891 e 1933. Talvez bandeira é que não tenha existido até 1958.
Com efeito, a bandeira é o cerne desta postagem. Consiste em "um campo branco em forma retangular cortado por faixas de cor azul, igual ao azul da Bandeira Brasileira, em diagonais; no cruzamento das duas faixas encontra-se o brasão do Município". A questão é: se o desenho do brasão que a prefeitura usa mudar, mudará também o da bandeira? De 2005 a 2012, isto é, durante a gestão de Luizianne Lins, esse desenho foi o seguinte:
Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura de 2005 a 2012). |
Em 2013, quando se iniciava o primeiro mandato de Roberto Cláudio, a prefeitura de Fortaleza adotou uma identidade visual nova, à qual foi integrado o brasão municipal. Desconfio de que o Ceará seja pioneiro nesse movimento, pois desde 2007 o próprio município de Fortaleza conta com uma lei que impõe o uso do brasão e no mesmo ano o governo do estado revisou o emblema cearense e regulou o seu uso mediante manual de identidade visual. Por então, a marca de gestão ainda dominava esse terreno. As armas fortalezenses ficaram, então, assim:
Brasão de Fortaleza (desenho usado pela prefeitura desde 2013). |
Todos estes desenhos reproduzem corretamente o ordenamento. O de José Wasth Rodrigues apresenta um estilo mais naturalista, corrente no começo do século passado. O de 2005, um estilo habitual na heráldica mais recente. O de 2013, um estilo mais "logotipado", próprio dos sistemas hodiernos de identidade visual.
Na postagem de 09/08, abordei o caso das armas de Castela e Leão e da identidade visual do seu governo. Acertadamente, o manual que norteia essa identidade visual distingue o desenho em estilo convencional e a "adaptación del escudo para uso exclusivo de la Junta de Castilla y León" ("adaptação do brasão para uso exclusivo da Junta de Castilla y León"), porque essa comunidade autônoma espanhola possui dois vexilos, um de compleição medieval e o outro, moderna (sobre isto, leia-se a postagem de 25/01). Aquele é a bandeira propriamente dita, que consiste numa transposição das armas, e este, o pendón de Castilla y León ('pendão de Castela e Leão'), um pano carmesim com as armas no seu centro. O desenho delas em ambos tem estilo tradicional. Pareceria mesmo extravagante se fosse o da marca.
Já no Brasil, onde mesmo designers não sabem que um brasão é um conceito e desenhos são realizações de tal conceito, se a bandeira leva o brasão, é modificada a reboque da identidade visual que a gestão da vez adota, como comprova a foto abaixo, que registra José Sarto, prefeito de Fortaleza, em agenda pública recente.
José Sarto, prefeito de Fortaleza, em agenda pública recente (imagem disponível no portal da prefeitura). |
Como eu disse na postagem anterior, os manuais brasileiros de identidade visual ainda são rasos. O da prefeitura de Fortaleza exemplifica bem isto, porque já na primeira página justifica razoavelmente cada escolha que se fez no trânsito do estilo convencional para o "logotipado":
- Escudo: A inclusão de uma linha de contorno branca facilita a aplicação nas mais variadas superfícies.
- Torre: Suavização das linhas e adequação para a cor ouro, como está dito na lei sobre o brasão, de 1958.
- Mar: A cor passa a ser mais próxima à das águas do mar da cidade, e as linhas das ondas foram simplificadas.
- Coroa mural dourada: Passa a ter a cor ouro e cinco torres visíveis, com pontas, como a heráldica determina para cidades que são capitais de estados.
- Ramos: As linhas pretas foram suprimidas, dando leveza ao desenho.
- Listel branco: A redução do movimento simplifica o desenho, ampliando as possibilidades de aplicabilidade do brasão. Anteriormente, existia a impressão de que a faixa teria mais elementos.
Como se percebe, quase todas as razões dizem respeito ao design. A única de caráter heráldico ecoa o mito das coroas murais.
A meu ver, a integração de um brasão a um sistema de identidade visual na forma de um desenho menos convencional não só é aceitável, mas também defensível. A demanda é inegável. No entanto, o brasão comporta alguns usos que estão, sim, reservados a reproduções mais tradicionais. A relação entre a heráldica e o design deve pautar-se na complementação, não na suplantação.
(1) Significa 'Com força' (física ou moral).
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