Assim como nos brasões, o sinal da cruz nas bandeiras amiúde se prestou à lenda.
Outra das vantagens das bandeiras cruzadas era que se prestavam facilmente à lenda. Esta, em geral, divulgava o direito divino de quem empunhava uma bandeira dessas ou a justeza da sua causa perante a infidelidade ou perfídia do adversário. E isso muito antes das cruzadas.
Bandeira de Dinamarca. |
Com efeito, Eusébio de Cesareia relata no Bíos Megálou Kōnstantínou ('Vida de Constantino o Grande', 337) que, após a conversão desse imperador romano à fé cristã em 312, ele e o seu exército viram uma cruz de luz sobre o sol junto com a sentença En toútōi níka, que em latim se difundiu como In hoc signo vinces, isto é, 'Com este sinal vencerás'. À noite, foi o próprio Jesus Cristo quem lhe apareceu em sonho e lhe mandou que fizesse um sinal semelhante em defesa contra os seus inimigos. Segundo o autor, esse sinal, dito lábaro, tinha a forma de uma cruz: a haste era rematada pelas letras Χ (qui) e Ρ (rô), iniciais de Χριστός ('Cristo'), e a trave sustentava um pano com as imagens do imperador e de seus filhos. Em seguida, Constantino venceu o usurpador Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia.
Tudo isso — a visão da cruz no céu, a aparição de Cristo em sonho, a vitória gloriosa sobre os infiéis ou pérfidos — tornou-se um lugar-comum da historiografia pré-científica no Ocidente. Por exemplo, o Milagre de Ourique, origem mítica das armas reais portuguesas, segue esse roteiro. No caso da Dinamarca, a versão clássica da lenda situa-se na Cruzada Livônia.
Conta-se que o rei Valdemar II estava com o seu exército em 1219 em Lyndanisse (hoje Tallinn), aonde fora socorrer os cavaleiros porta-espadas, quando os pagãos estônios o cercaram. Acuados em grave apuro, os cristãos clamaram por ajuda ao céu, de onde desceu, então, uma bandeira vermelha com uma cruz branca e se ouviu uma voz, dizendo que quem a levantasse logo derrotaria os seus oponentes. Foi o que aconteceu.
Armas e bandeira do rei da Dinamarca ("Die Koning van Denmarke") no Armorial de Gueldres (ms. 15652-56, conservado na Koninklijke Bibliotheek/Bibliothèque royale (KBR), Bruxelas). |
A atestação mais antiga da Dannebrog, como os dinamarqueses chamam a sua bandeira, está no Armorial do Arauto Gueldres (1395-1402), em que se veem as armas do rei da Dinamarca ("Die Koning van Denmarke"), isto é, de ouro com corações de vermelho e três leopardos de azul, lampassados de vermelho e coroados de ouro, alinhados em pala; elmo de ouro; paquife de arminho e vermelho; timbre: dois chifres de arminho com quatro leques de penas de pavão de sua cor. Ao lado do timbre, aparece uma bandeira vermelha com uma cruz branca.
É possível que o uso da cruz tenha começado durante o reinado de Valdemar IV, quem de 1356 a 1365 trouxe um selo que mostra um escudo com uma cruz e nos cantões as letras do seu nome, matizados de ornamentos tanto o campo como a peça. É provável que ele a tenha tomado da bandeira imperial de guerra (Sturmfahne). Com efeito, fora educado na corte de Luís IV e armado cavaleiro na Terra Santa pelo margrave de Brandemburgo e filho homônimo desse imperador. Portanto, identificava-se com os ideais do império e também da cruzada.
À sua vez, a Sturmfahne está descrita num termo que registra a investidura dos cônsules de Cremona em 1195: "Confanonus vero cum quo eos investivit erat rubeus, habens crucem albam intus" ("O gonfalão com o qual os investiu era vermelho, tendo uma cruz branca dentro"). No norte da Itália, aos gibelinos esse vexilo serviu de sinal da sua aliança ao Império, enquanto os guelfos — a cidade de Milão à sua cabeça — assumiram bandeiras exatamente inversas: uma cruz vermelha em campo branco/de prata.
Entretanto, no século XV a Sturmfahne era a própria bandeira imperial (a águia bicípite negra em campo dourado) com um pendão vermelho. Isso permitiu que a Dannebrog representasse inconfundivelmente o reino da Dinamarca não só na terra, como também no mar. Desde 1625 estabeleceram-se normas distinguindo a marinha real e a mercante. Essa distinção fazia-se, como ainda se faz, pela forma do batente: bífida para os navios do rei e reta para as embarcações mercantis. A proibição do pavilhão de guerra aos mercadores foi reafirmada até o fim desse século, mas no seguinte houve várias concessões sob certas circunstâncias por interesse do estado, como às companhias de comércio.
Bandeira estatal da Dinamarca. |
Apesar dessa liberalidade, uma circular vedou o uso civil da Dannebrog em terra a partir de 1834, até que outra em 1854 permitiu que qualquer um no reino a hasteie. Isso é muito curioso, pois foi precisamente nesse período que o romantismo popularizou a lenda da bandeira que caiu do céu. Ao mesmo tempo, contraria clarissimamente a afirmação frequente de que seja a bandeira nacional mais antiga em uso: em pleno século XIX, quando esse conceito era já extensamente praticado, a Dannebrog ainda era a bandeira do rei e do reino, mas não do povo.
Pavilhão de guerra da Dinamarca. |
Das mais antigas ainda vigentes são, isto sim, as regulações da bandeira dinamarquesa. As proporções do pavilhão de guerra foram definidas em 1696 e alteradas em 1856; as do pavilhão mercante, por portaria em 1748, relaxadas por circular em 1893. Trocando em miúdos, a bandeira nacional ainda obedece à norma do pavilhão mercante e a bandeira estatal (Rigets flag 'bandeira do Reino'), à do pavilhão de guerra, se bem que para este (orlogsflag) uma resolução em 1939 estabeleceu um vermelho mais escuro.
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