01/01/22

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: CUIABÁ

Os brasões municipais do Brasil colonial são tão excepcionais que a exemplaridade daquele de Cuiabá parece a exceção que confirma a regra.

No império português, duas potências criavam municípios: o rei ou o donatário (este era, para todos os efeitos, um senhor feudal). O oficial régio — governador ou capitão — fundava cidades ou vilas; o donatário ou o seu lugar-tenente fundava vilas. Segundo Adilar Antônio Cigolini na sua tese de doutorado (2009), criaram-se 187 municípios durante o período colonial. As cidades eram as povoações que serviam de sés episcopais: Salvador, Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Olinda (desde 1676), Mariana e São Paulo (ambas desde 1745), mais, pela função estratégica que tiveram no fim do século XVI, Filipeia (depois Paraíba, hoje João Pessoa) e Natal (leia-se a postagem de 28/02/2021). O resto eram vilas, das quais duas possuíram brasões. Recapitulemos esta série até aqui:

  • Salvador: Fundada em 1549, as suas armas estão bem atestadas no Tratado descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, e na História da América portuguesa (1730), de Sebastião da Rocha Pita;
  • Rio de Janeiro: Fundada em 1565, as suas armas não estão atestadas em nenhuma fonte do período colonial, mas têm sido referenciadas na literatura historiográfica e heráldica desde o século XIX, a começar pela História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1854), de Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro;
  • São Luís: Fundada em 1612, as suas armas estão atestadas na História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará (1759), do padre José de Morais, mas além de o texto não ser de todo claro, o autor dá a entender que foram pouco usadas ou mesmo nunca se usaram;
  • Belém: Fundada em 1616, as suas armas estão atestadas na mesma obra e talvez se tenham usado mais que as de São Luís, mas, de todo modo, o texto é quase enigmático.

Em Cuiabá, tudo se passou de modo diferente, muito exemplar: o governador da capitania viajou ao arraial e elevou-o a vila, o ouvidor-geral da comarca instalou a câmara dela, o capitão-mor das minas levantou o pelourinho e o secretário do governo fez o termo da fundação (transcrito por José Martins Pereira de Alencastre nos Anais da província de Goiás, 1864, p. 43), no qual as armas concelhias ficaram descritas:

Ao primeiro dia do mês de janeiro de 1727, nesta Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, sendo mandado por Sua Majestade, que Deus guarde, a criá-la de novo, o Excelentíssimo Senhor Rodrigo César de Meneses, Governador e Capitão-General desta Capitania, e que o acompanhassem para o necessário o Doutor Antônio Alves Lanhas Peixoto, Ouvidor-Geral da Comarca de Parnaguá, sendo por ele eleitas as justiças, juízes ordinários Rodrigo Bicado Chacim, o tesoureiro Coronel João de Queirós Magalhães, e vereadores Marcos Soares de Faria, Francisco Xavier de Matos, João de Oliveira Garcia, e procurador do concelho Paulo de Anhaia Leme, servindo de escrivão da Câmara Luís Teixeira de Almeida, almotacé o Brigadeiro Antônio de Almeida Lara e o capitão-mor Antônio José de Melo, levando o estandarte da vila Matias Soares de Faria. Foi mandado pelo dito Senhor Governador Capitão-General que com o dito Doutor Ouvidor, todos juntos com a nobreza e povo, fossem à praça levantar o pelourinho desta vila, a que em nome de el-Rei deu o nome de Vila Real do Bom Jesus e declarou que sejam as armas de que usasse um escudo dentro com o campo verde e um morro ou monte no meio, todo salpicado com folhetas e granitos de ouro, e, por timbre, em cima do escudo, uma fênix. E nomeou para levantar o pelourinho ao Capitão-Mor Regente Fernando Dias Falcão e todos os sobreditos, com o dito Doutor Ouvidor, nobreza e povo, foram à praça desta vila, aonde o dito Fernando Dias Falcão levantou o pelourinho, do que para constar a todo o tempo fiz este termo, que assinou o dito Senhor General com os sobreditos. E eu, Gervásio Leite Rabelo, Secretário deste Governo, que o escrevi. Dia era ut supra etc. Rodrigo César de Meneses. Antônio Alves Lanhas Peixoto. Rodrigo Bicudo Chacim. Marcos Soares de Faria. Francisco Xavier de Matos. João de Queirós Magalhães. João de Oliveira Garcia. Luís Ferreira de Almeida. Antônio José de Melo. Paulo de Anhaia Lemos. Antônio de Almeida Lara. Matias Soares de Faria. Fernando Dias Falcão. Manuel Dias de Barros. Manuel Vicente Neves. Salvador Martins Bonela. (1)

Com efeito, é a exceção que confirma a regra e a razão para uma povoação tão remota ter merecido tanto zelo está no próprio escudo: ouro. Foi descoberto pela bandeira de Pascoal Moreira Cabral, que lavrou a certidão do descobrimento aos 8 de abril de 1719, data em que se tem comemorado o aniversário de Cuiabá. Além do valor por si, as minas achavam-se em território ao oeste da linha de Tordesilhas, portanto poderiam ser reivindicadas pela Coroa espanhola.

Brasão colonial de Cuiabá.
Brasão colonial de Cuiabá.

Com relação ao brasão, é bastante singelo, mas como o brasonamento não foi ordenado em linguagem heráldica, demanda certo exercício interpretativo: o que quer dizer "campo verde" em "um escudo dentro com o campo verde"? Na armaria, chama-se campo à superfície do escudo ou daquilo que valha por um. Mas a preposição com tolhe o sentido ao entendimento de que o escudo seja verde. Levando em conta o gosto naturalista da época, parece mais razoável que esse campo verde seja uma peça ou figura dentro do escudo e este não tivesse esmalte, mas simplesmente figurasse o céu. Efetivamente, o contrachefe ou pé mede um terço da largura do escudo, fica firmado em ponta e também se denomina campanha. A figura equivalente, que tem a forma e a cor natural de uma campina, é o terrado, opção escolhida por José Wasth Rodrigues ao ilustrar Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro.

Depois, a figura principal: "um morro ou monte no meio, todo salpicado com folhetas e granitos de ouro". Na heráldica portuguesa, diz-se salpicado ou picado da figura que está carregada de bolinhas de esmalte diferente (tacheté em francês). Nesse sentido, o monte das armas cuiabanas não consiste de uma pilha, tampouco de um monte todo coberto de folhetas e granitos de ouro. Entendo, isto sim, que o monte está coberto de modo que se entrevê a sua cor. Como não se declara tal cor, deve ser a natural. Mas o que são folhetas e granitos de ouro? Folheta é fácil: uma lâmina pequena desse metal. Granito, além de designar hoje em dia certa espécie de rocha, também significa 'grão pequeno', então suponho que refira a uma pepita.

Enfim, o timbre: a figuração da fênix segue um padrão bem definido na armaria: como a águia, fica de frente, com as asas abertas e a cabeça de perfil, mas sai do fogo, dito imortalidade. Mais uma vez, o nosso texto peca pelo excesso de concisão: "por timbre, em cima do escudo, uma fênix". Sempre que essa espécie de testemunho omite o esmalte, tendo a interpretar que se trata da cor natural, mas como a fênix é um animal fantástico, fica-se na dúvida de qual cor seja. Creio que o vermelho tem prevalecido.

Com base em todo esse razoamento, brasono as armas coloniais de Cuiabá assim: de azul com um monte de sua cor, salpicado de folhetas e pepitas de ouro e firmado numa campanha de verde; timbre: uma fênix na sua imortalidade, tudo de sua cor.

Brasão de Cuiabá segundo José Wasth Rodrigues.
Brasão de Cuiabá segundo José Wasth Rodrigues.

Atualmente, tanto a prefeitura como a câmara municipal de Cuiabá usam desenhos que se baseiam numa má interpretação daquele de Wasth Rodrigues, quem, à sua vez, copiou os publicados no artigo Brasões das cidades de Cuiabá e Mato Grosso, de João Severiano da Fonseca (suplemento ao tomo LI da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, p. 111): o monte semelha uma pilha e o céu e o terrado em perspectiva foram transformados num partido de azul e verde. Isso me faz duvidar muito de que essas armas se venham usando continuamente desde o período colonial, porque parece mais real que a adoção recente delas se deva ao esforço intelectual em história e heráldica durante a segunda metade do século XIX e o começo do seguinte, tanto que a própria câmara, ao informar que "foram oficializadas" pela Lei n.º 592, de 13 de setembro de 1961, acrescenta que tal lei reproduz o trecho pertinente do termo de fundação "sem preencher as lacunas de sua descrição". Ora, sendo o dito termo um ato oficial, era necessário, no mínimo, que se aperfeiçoasse o brasonamento para se justificar a promulgação de uma lei específica.

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