Mesmo quando controverso na origem, um símbolo nacional tende à estabilidade enquanto o regime que o adotou se consolida.
Na primeira parte da Mensagem (1934), que leva o título de Brasão, mais precisamente no "sexto castelo", Fernando Pessoa dedica um poema ao rei Dom Dinis:
D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
À falta de base documental, é possível e mesmo provável que Dom Dinis não tenha plantado o Pinhal de Leiria, mas são fatos a sua antiguidade e o fornecimento de madeira e resina à indústria naval. É igualmente fato o acordo com o papa João XXII, pelo qual o espólio dos templários em Portugal dotou a Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, futura patrocinadora das grandes navegações (cf. a postagem de 07/09/2022).
Bandeira de Portugal. |
A relação dos portugueses com o mar, que avançou ao longo da segunda dinastia graças às condições desenvolvidas ao fim da primeira, dá às bandeiras de Portugal uma amplitude histórica que abrange toda a evolução desse signo no Ocidente: a bandeira heráldica, mera translação de certas armas; a bandeira cruzada, que propagava a fé cristã; o pavilhão, que apropriava os mares; a bandeira nacional, que simboliza a pátria.
A hodierna bandeira portuguesa foi elaborada por uma comissão que o governo provisório nomeou dez dias após a instituição da república, em 5 de outubro de 1910. Essa comissão redigiu, então, um longo relatório, cuja incontestável qualidade retórica procura ataviar uma escolha que nem todos os portugueses aceitariam placidamente: o verde e o vermelho eram as cores do Partido Republicano! Como é que se chegou a tal operação?
De antemão, é preciso reconhecer que a deposição de certa monarquia normalmente comportou alguma mudança semiótica, porque na percepção dos republicanos ou o brasão ou a bandeira se vinculava demais ao regime deposto. Isso acontecera na França e no Brasil; depois aconteceria na Áustria, na Alemanha e na Itália. Em todos esses lugares, pesava a mesma razão: elidir o símbolo que poderia nutrir a esperança na restauração do trono. Daí que as exceções estejam na Europa oriental, onde o período socialista afastou a volta de um monarca, ou porque o país já era república desde o fim da Primeira Guerra Mundial ou porque a ideia não engajava a sociedade diante dos desafios que ela afrontava em meio à queda do socialismo. Mais que isso: decênios de emblemática comunista acabaram reabilitando os velhos símbolos, especialmente o brasão, inclusive com a coroa (veja-se, por exemplo, o caso da Sérvia).
Armas de Portugal (desenho usado pela Presidência da República). |
Em Portugal, o brasão gozava de estima geral, pois se entendia que não pertencia aos Braganças, mas à nação. Indo além da verbosidade que empolgava os debatedores da matéria, há aí certa precisão técnica: essa casa tinha as suas próprias armas quando ascendeu ao trono português. Assim, o seu chefe só trazia as armas do Reino em virtude de exercer a dignidade régia. Por conseguinte, se essas armas antecediam a dinastia, podiam suceder-lhe (cf. a postagem de 09/01/2021).
Ainda assim, convinha trocar a coroa por outro ornamento, assinalando que o estado já não era um reino. Escolheu-se a empresa de um rei, mas não contraditoriamente, porque havia muito a esfera armilar transcendera a pessoa de Dom Manuel I, configurando um símbolo da expansão ultramarina (cf. a postagem de 06/09/2022). Aproveitaram-se, ademais, certos precedentes dessa figura enquanto suporte do escudo, como se vê no anverso da macuta (moeda de cobre que circulou na África portuguesa).
Pavilhões de Portugal no Flags of maritime nations (1899). |
Muito diferente era o caso da bandeira, pois aquela que tremulava até então já nascera sectária. A própria redação do Decreto de 18 de outubro de 1830 parece agressiva:
Tendo o governo que usurpou o trono de Sua Majestade Fidelíssima usurpado também as cores que tinham guiado para a vitória as tropas portuguesas, sempre distintas pelo seu valor e lealdade, e sendo necessárias hoje novas insígnias que distingam os portugueses que permaneceram fiéis no caminho da honra daqueles que tiveram a desgraça de seguir o partido da usurpação, manda a Regência, em nome da Rainha, que de ora em diante a bandeira portuguesa seja bipartida verticalmente em branco e azul, ficando o azul junto da haste e as armas reais colocadas no centro da bandeira, a metade sobre cada uma das cores.
Pudera! Atravessava o país uma guerra civil entre os dois filhos de Dom João VI: Dom Pedro, imperador do Brasil até abril de 1831 e pai da rainha Dona Maria II, que tinha então onze anos de idade, à cabeça dos liberais, e Dom Miguel, aclamado rei pelas cortes estamentais de 1828, à cabeça dos absolutistas. Derrotado este em 1834, a bandeira azul e branca representava mais o regime da carta constitucional que Dom Pedro IV outorgara durante o seu reinado de sete dias em 1826 do que propriamente a nação.
Como a Carta de 1826 ainda vigorava em 1910, o governo provisório da República pouco se dispunha a preservar o azul e o branco, embora fossem cores heráldicas, como as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa justificaram na Lei de 23 de agosto de 1821, que determinou como devia ser o laço nacional: "por serem aquelas que formaram a divisa da Nação Portuguesa desde o princípio da Monarquia em mui gloriosas épocas da sua história". Ora, essa divisa eram os cinco escudetes de azul, besantados de prata, em campo do mesmo metal, conhecidos como armas de Portugal antigo, em contraposição ao acrescentamento da bordadura castelada, que faz as armas de Portugal moderno.
"Pavilhão de mercador português" em La connaissance des pavillons... (1737). |
Seja como for, o verde e o vermelho não são, absolutamente, exóticos na emblemática estatal portuguesa. O verde colore a cruz da Ordem de Avis, cujas pontas figuraram na bordadura das armas reais de 1383 a 1485, e o vermelho, a da Ordem de Cristo. Verdes com esta cruz eram as bandeiras dos terços portugueses na Guerra da Restauração (1640-68). O verde e o branco variegavam a libré da Casa de Bragança até 1728. Sete listras horizontais, quatro verdes e três brancas, formavam o pavilhão mercante do Reino para os navios que tinham menos de vinte peças de artilharia desde a regência de Dom Pedro II (1668-83) até meados do século XIX. As mesmas cores compunham, provavelmente, as bandeiras e os estandartes regimentais durante o reinado de Dom João V (1705-50), os quais eram gironados e contragironados. Vermelho era o estandarte do rei e a libré de sua casa desde o mesmo reinado (cf. a postagem de 04/09/2022).
"Bandeira nacional" em Bandeira nacional: Modelo aprovado pelo Governo Provisório da República Portuguesa (1911). |
Seja como for, a comissão entregou o relatório ao governo provisório no fim de outubro de 1910. O primeiro exemplar foi hasteado a 1.º de dezembro no Monumento aos Restauradores, em Lisboa, por ocasião dos 270 anos da Restauração da Independência (a revista O Ocidente mostra fotografias dos atos no n.º 1.150). Em abril de 1911, a Imprensa Nacional publicou o opúsculo Bandeira nacional: Modelo aprovado pelo Governo Provisório da República Portuguesa, que dá imagem e descrição da bandeira nacional, da bandeira regimental, do jaque e dos emblemas estatais. Na sequência, a 19 de junho instalou-se a Assembleia Nacional Constituinte e no mesmo dia passou decreto oficializando essa bandeira:
A Bandeira Nacional é bipartida verticalmente em duas cores fundamentais, verde escuro e escarlate, ficando o verde do lado da tralha. Ao centro e sobreposto à união das duas cores, terá o escudo das Armas Nacionais, orlado de branco e assentando sobre a esfera armilar manuelina, em amarelo e avivada de negro.
Em cumprimento desse decreto, a mesma assembleia publicou um parecer no n.º 150 do Diário da República, a 30 do mesmo mês, especificando as formas da bandeira nacional, da bandeira regimental, do jaque, da flâmula e dos emblemas oficiais. Essas normas permanecem em vigor; o regramento do uso civil em terra é o Decreto-Lei n.º 150/87, de 30 de março.
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