As quintilhas heráldicas de Sá de Meneses reforçam o ideal da nobreza na Idade Moderna.
Bem se poderia qualificar o reinado de Dom Manuel I (1495-1521) como a era áurea da armaria portuguesa. Desde as pesquisas das armas gentilícias nas sepulturas, os empreendimentos heráldicos não cessaram: a feitura do Livro do Armeiro-Mor (1509), a viagem de estudos dos arautos, a promulgação do regimento dos reis de armas (1512), a construção da Sala dos Brasões no Paço de Sintra (1515-1520), a incorporação do direito heráldico nas Ordenações do Reino (1521) e o começo do Livro da nobreza e perfeição das armas. Em meio a esses empreendimentos, um poeta publicou no Cancioneiro geral (1516) uma composição sobre 47 brasões: as quintilhas de Sá de Meneses.
João Rodrigues de Sá de Meneses foi o cavalheiro perfeito do seu tempo, versado tanto nas armas como nas letras. Nasceu em 1486 ou 87, filho de Henrique de Sá, senhor de Sever e alcaide-mor do Porto, e Brites de Meneses. Em 1508, acompanhou João de Meneses, seu tio, no assalto à cidade marroquina de Azamor e, logo depois, no socorro à de Arzila. De volta a Lisboa no ano seguinte, casou com Camila de Noronha, filha de Martinho de Castelo Branco, conde de Vila Nova de Portimão e vedor da Fazenda. Retornou à África em 1513 com o duque Jaime de Bragança, que veio conquistar Azamor. Em 1516, representou o rei junto à corte espanhola por ocasião da convalescença e subsequente falecimento de Fernando o Católico e, em 1521, junto à corte saboiana, por ocasião das bodas da infanta Dona Beatriz com o duque Carlos III. À morte de seu pai, em 1524, assumiu a chefia da casa e a alcaidaria-mor do Porto, onde morou até a sua morte, em 1579.
Armas do príncipe Dom João no Cancioneiro geral, a quem Garcia de Resende dedicou tal obra. Perceba-se que este desenho foi tirado do Livro da nobreza e perfeição das armas. |
Sá de Meneses compôs as suas obras dentro da escola que os estudos literários convieram chamar de poesia palaciana. O parágrafo antecedente esclarece, precisamente, a nomenclatura: os poetas dessa escola eram fidalgos que serviam ao rei no paço, distinguindo-se pelas letras na paz e pelas armas na guerra. Ao juízo da crítica póstera, a produção desses poetas sobressai mais pela quantidade que pela qualidade: o dito Cancioneiro geral colige um milhar de composições de 318 autores. Poucos são lembrados além do próprio compilador, Garcia de Resende, e aqueles que aí começaram carreiras mais longas e fecundas, como Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda. Sá de Meneses está entre os esquecidos, ainda que dos seus coetâneos tenha merecido a mais alta estima. Com efeito, excelia então a sua cultura clássica, à qual se devem as suas obras mais assinaladas: as traduções de três epístolas das Heroides de Ovídio e do epitáfio de Tibulo, também saídas no Cancioneiro, e o tratado latino De platano (1537), que ficou manuscrito.
O poema "De João Rodríguez de Sá, decrarando alguns escudos d'armas dalgũas linhagens de Portugal que sabia donde vinham" encontra-se da folha 114v à 117r do Cancioneiro geral (impressão de Hermão de Campos, em Lisboa, 1516). Abrange cinquenta décimas em redondilha maior, as quais se compõem, à sua vez, de duas quintilhas. A rima apresenta o esquema ABBABCCDDC. De modo geral, na primeira quintilha o autor trata de brasonar as armas — o que torna a obra única na literatura e heráldica portuguesas, um verdadeiro armorial em verso — e na segunda acrescenta alguma nota genealógica.
As quintilhas heráldicas de Sá de Meneses são citadas por Gonzalo Argote de Molina no prólogo da Nobleza del Andaluzía (1588), confundindo o nome do autor com o de seu filho, Francisco, e daí e com o mesmo erro, por Claude-François Ménestrier em Le véritable art du blason et l'origine des armoiries (1671, p. 74). Resenha-as António Caetano de Sousa no Aparato à História genealógica da Casa Real portuguesa (1735, t. 1, § 19), o conde António de São Paio republicou-as no artigo As trovas heráldicas na literatura portuguesa (Elucidário nobiliárquico, v. 2, n.º 1) e Afonso Eduardo Martins Zúquete insertou algumas no Armorial lusitano (1961). Entre outras referências, estas testemunham o apreço que Sá de Meneses granjeia a quem se tem dedicado à matéria.
Diferentemente desses dois heraldistas, nesta série de postagens não só republicarei as quintilhas de Sá de Meneses, mas também as editarei com a ortografia atual, respeitando, não obstante, os traços próprios do português quinhentista, convenção que, de resto, tenho adotado neste blog desde sempre. Aporei, ademais, um desenho de cada brasão e um comentário sucinto a cada décima, cujo conjunto dividirei por dez para adequação ao blog:
I – Prólogo; o rei; o príncipe; o duque de Bragança.
II – O mestre de Avis; o marquês de Vila Real; a Casa de Bragança; Noronha; Coutinho.
III – Castro; Eça; Meneses; Cunha; Sousa.
IV – Pereira; Vasconcelos; Melo; Silva; Albuquerque.
V – Freire; Almeida; Henriques; Soares de Albergaria; Azevedo.
VI – Castelo Branco; Resende; Moniz; Moniz de Febo Moniz; Moura.
VII – Lobo; Sá; Lemos; Cabral; Silveira.
VIII – Falcão; Goios; Pedrosa; Faria; Pacheco.
IX – Coelho; Gama de Vasco da Gama; Valente; Boto; Câmara.
X – Pina; Brandão; Cotrim; epílogo.
Embora a ementa diga que o poeta "declara" os brasões "que sabia donde vinham", é fácil notar que seguiu de modo muito fiel o Livro da nobreza e perfeição das armas, cuja ordem de precedência vem do Livro do Armeiro-Mor e combina a proximidade à Casa Real e a antiguidade. Com efeito, até as armas dos Almeidas, omitem-se apenas as dos Ataídes. Depois, saltam-se as dos Manuéis, Limas, Távoras e Mendonças. Desde as dos Soares de Albergaria até as dos Goios, há omissões pontuais: de imediato, as dos Almadas; as dos Abreus e dos Britos após as dos Resendes; as dos Ribeiros após as dos Lemos; as dos Mascarenhas, Cerveiras e Mirandas após as dos Cabrais. Dos Goios em diante, fica clara uma escolha pessoal. É difícil discernir o critério, mas duas dessas linhagens estavam na ascendência da esposa do autor, neta de Brites Valente por parte de pai e de João Gonçalves da Câmara, capitão do Funchal, por parte de mãe. Seja como for, as quintilhas de Sá de Meneses somam-se aos grandes trabalhos que, por meio da heráldica, difundiam o ideal novo de uma nobreza paçã ao serviço da Coroa.
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