Ainda que imperceptíveis, as repúblicas conservam alguns resquícios das monarquias.
Já se tornou exaustiva a minha afirmação de que não há nações antes da Revolução Francesa. Mas a própria distinção da monarquia e da república, tal como a fazemos, retrocede no máximo à Revolução Americana. Regimes como as repúblicas de Veneza e Gênova eram encabeçados pelo sereníssimo doge, uma figura semimonárquica. Mesmo nas Províncias Unidas dos Países Baixos, os Estados Gerais exerciam a soberania na vacância do monarca abjurado.
Estandarte presidencial do Brasil. |
Precisamente porque as repúblicas contemporâneas foram concebidas sob o predomínio das monarquias, ficaram resquícios desse regime, ainda que já imperceptíveis. Por exemplo, no Brasil o presidente da República é o grão-mestre das ordens honoríficas nacionais, traz uma faixa inspirada nas bandas dessas ordens e a cada ano apresenta ao Congresso Nacional uma mensagem que abre a sessão legislativa, tudo como os antigos monarcas. Outro desses resquícios é o estandarte presidencial.
Estandarte real de Portugal. |
O estandarte presidencial dá continuidade à prática do estandarte real. Na monarquia portuguesa, desenvolveu-se sob a Casa de Bragança, já que sob a de Avis a insígnia pessoal do rei era a sua empresa, como a esfera armilar de Dom Manuel I, e durante a primeira dinastia não se distinguiam, no plano semiótico, o rei e o reino. Assim, a bandeira branca com as armas reais representava a Coroa e a vermelha com essas mesmas armas, o rei.
Estandarte imperial do Brasil (segundo Joaquim Norberto de Sousa Silva, 1890). |
Curiosamente, nenhum dos nossos imperadores editou ato ordenando um estandarte ou pavilhão pessoal, mas no Tomo LIII, Parte I, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, portanto no ocaso do regime (1), Joaquim Norberto de Sousa Silva dá o testemunho seguinte:
A bandeira imperial, que tremula nos paços em que reside o imperador ou nas embarcações em que navega, difere da bandeira nacional. É toda verde com uma coroa imperial de ouro no centro. Ignoro a data de sua criação.
Faz muito sentido que fosse toda verde, porque esta era a cor da monarquia brasileira, como se depreende das insígnias imperiais (leia-se a postagem de 03/12/2022), e também que o emblema não fosse o brasão, mas a coroa, porque verdes eram o escudo e os seus suportes, o que teria causado uma ineficiente sobreposição.
Pavilhões do Brasil em Flags of maritime nations (1882). |
Precisamente por estas razões é que desconfio do que se vê em Flags of maritime nations (1882): o campo do pavilhão é verde, mas a figura que o carrega são as armas nacionais em ouro, juntamente com três folhas unidas em cada canto, a modo de ornato. Todavia, como se reproduzia isso na prática? Bordando o brasão com fios de diferentes tons dourados?
Seja como for, é o estandarte presidencial que confirma a existência de um precedente da cor verde com certo emblema. Com efeito, o Decreto n.º 6.310, de 3 de janeiro de 1907, que primeiro o adotou, sequer o descreve, revelando que estava "já em uso na Armada, para a Presidência da República". Ora, é muito provável que simplesmente se tenha trocado a coroa pelas armas da República no começo do novo regime. No entanto, como servia então à navegação (daí a denominação pavilhão presidencial), essas armas ficavam a um terço do comprimento, o que o Decreto n.º 23.599, de 2 de setembro de 1947, alterou, movendo-as para o centro do campo. O seu uso é regulado pelo cerimonial público, aprovado pelo Decreto n.º 70.274, de 9 de março de 1972.
Encerrando as postagens neste ano, que dediquei ao estudo da relação entre os brasões e as bandeiras, farei outra crítica propositiva a respeito do que o estado brasileiro chama de bandeira-insígnia, isto é, os vexilos dos cargos mais altos da República e das Forças Armadas:
- Os chefes dos poderes;
- as Forças Armadas;
- os chefes das Forças Armadas;
- a cadeia de comando das Forças Armadas;
- os patronos das Forças Armadas;
- as organizações militares.
Com a exceção do próprio estandarte presidencial, que segue um modelo antigo e difuso, todos os demais merecem algum reparo teórico ou estético.
(1) O artigo foi escrito em 1889, antes da instauração da República, mas a publicação saiu em 1890.
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