Séries de postagens

03/08/21

A QUEM CONVÉM TRAZER ARMAS?

Para o entusiasta, é ótimo o interesse pela heráldica, mas a falta de conhecimento, quase na mesma proporção, é desafiadora.

Nas postagens de 20 e 22/07, abordei o brasão novo da Paróquia de Nossa Senhora da Guia de Acari, mas como se o assunto não se esgotasse, os usos heráldicos da paróquia nas redes sociais desde então mostram que, na verdade, esta não assumiu armas novas, mas dotou a basílica de armas próprias. Trocando em miúdos, estão-se usando dois brasões, um paroquial e o outro "basilical". Afinal, a quem convém trazer armas?

Anúncio da Festa de Nossa Senhora da Guia de 2021: observem-se os dois brasões no rodapé (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).
Anúncio da Festa de Nossa Senhora da Guia de 2021: observem-se os dois brasões no rodapé (imagem disponível no perfil da paróquia no Facebook).

Historicamente, brasões são trazidos por pessoas. Segundo Michel Pastoureau, citado por François Velde em artigo de 2004, a expansão social da heráldica evoluiu da maneira seguinte no tempo, no qual a primeira data indica os seus testemunhos mais antigos e a segunda, a sua consolidação no segmento:

  • 1130-60: senhores;
  • 1160-1200: cavaleiros bannerets (1);
  • 1180-1220: todos os cavaleiros;
  • 1220-60: escudeiros.

Até aqui se tinha a heráldica primitiva, que era feudal, coletiva e militar. Quando o sistema transbordou para o resto da sociedade, tomou a sua forma clássica:

  • 1210-20: sés e clérigos;
  • 1220-30: mulheres;
  • 1230-40: cidades e vilas;
  • 1250: burgueses e camponeses;
  • 1300: comunidades religiosas;
  • 1350: corporações.

Estes fatos não contradizem a afirmação inicial de que historicamente brasões são trazidos por pessoas, porque na mundivisão medieval até mesmo comunidades eram entendidas como senhorios coletivos. Com efeito, enquadravam-se nas relações feudais tal como as pessoas físicas, pois eram vassalos de certo senhor, mas podiam, ao mesmo tempo, ser os suseranos de outros sujeitos. Por exemplo, os monges de Alcobaça eram, evidentemente, vassalos do rei de Portugal, mas o mosteiro possuía terras — os Coutos de Alcobaça — cujos moradores lhe rendiam, à sua vez, homenagem. Esse território abrangia treze vilas, as quais, dotadas de forais por Dom Manuel I, gozavam, entretanto, de certa autonomia em face do seu suserano.

Nesse mundo, era tão normal que uma cidade tivesse um brasão ou selo quanto o seu rei; uma vila, quanto o seu senhor; uma sé, quanto o seu bispo; um mosteiro, quanto o seu abade. Na verdade, se qualquer burguês assumia armas para si, igualmente o faziam as corporações urbanas, como os grêmios e as universidades. De fato, o desenvolvimento dos ornamentos externos deu-se sempre no sentido de aumentar as diferenças de uns armígeros para outros, dentre as quais aquela da pessoa para a comunidade, ainda que nunca se tenha formado um sistema unívoco e universal para delimitar o pessoal e o impessoal (2).

Atualmente, num país onde a heráldica seja regulada em todas as suas vertentes laicas, quem pode trazer armas é uma questão de mera consulta, mas onde não há regulação, cabe observar a tradição, daí as considerações históricas que fiz acima. Com base nela, pode-se, pois, afirmar que hoje em dia, no Brasil, costumam trazer brasões (ou "insignoides"):

  • Pessoas físicas:
    • Regularmente, os bispos católicos;
    • esparsamente, os demais clérigos da mesma igreja;
    • em geral, algumas pessoas que se interessam pela heráldica.
  • Pessoas jurídicas:
    • Pessoas jurídicas de direito público:
      • A União;
      • os estados e o Distrito Federal;
      • os municípios;
      • as forças armadas e as suas unidades;
      • as polícias;
      • as instituições públicas de ensino superior, nomeadamente as universidades.
    • Pessoas jurídicas de direito privado:
      • Pessoas jurídicas de direito canônicoarquidioceses, dioceses, prelazias, vicariatos, administrações apostólicas, ordinariado militar, paróquias, institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica;
      • as instituições privadas de ensino superior, nomeadamente as católicas (pontifícias universidades, universidades e faculdades católicas, seminários arquidiocesanos e diocesanos).

Na postagem de 26/02, critiquei que a Câmara Municipal de Currais Novos tenha um "brasão" próprio (na verdade, um tosco "insignoide"), porque o poder público — independentemente de ser executivo, legislativo ou judiciário — deveria usar o emblema da sua esfera. Ora, a pessoa jurídica de direito público que tem um emblema equivalente a um brasão é o município de Currais Novos: tudo que é identificado sob a sua potestade deveria ostentá-lo, quer seja um requerimento de um vereador, quer seja um ofício de um secretário municipal.

Analogamente, não tem sentido que certa paróquia traga um brasão e a sua igreja matriz traga outro por ter esta recebido o título de basílica. A pessoa jurídica de direito canônico é a paróquia e basílica é apenas uma honorificência que se concede a um templo. Na heráldica, esse título permite sobrepor o escudo às chaves petrinas e à umbela, porém o brasão segue identificando a pessoa jurídica, não o templo. Se a basílica não fosse uma igreja matriz, como a de Nossa Senhora do Carmo no Recife ou a de São Bento em Olinda, que eram a capela-mor do convento carmelita e a do mosteiro beneditino, certamente lhe conviria ter um selo próprio, mas não é o caso.

Para os entusiastas da heráldica, é ótimo ver que esse sistema semiótico continua vigente e vigoroso. Entretanto, o pouco rigor com que tudo se faz demonstra que falta muito esclarecimento, inclusive por parte daqueles que se dizem heraldistas.

Notas:
(1) Segundo o Dictionnaire de l'Académie française, "seigneur d'un fief suffisamment important pour lever une bannière sous laquelle se rangeaient ses vassaux pour aller à la guerre" ("senhor de um feudo suficientemente importante para levantar uma bandeira sob a qual se alinhavam os seus vassalos para ir à guerra"; tradução minha). Em Portugal, havia o senhor de pendão e caldeira, mas este era um rico-homem, ou seja, membro da primeira classe da nobreza.
(2) Por exemplo, na Dinamarca distinguem-se bem as armas estatais (rigsvåben) e as reais (kongelige våben), ao passo que na Espanha a distinção entre umas e as outras é feita unicamente por ornamentos externos. Na Grã-Bretanha, sequer há armas outras além das reais.

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