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19/11/22

BICENTENÁRIO DA HERÁLDICA BRASILEIRA: O INSTITUTO

A criação do ofício de rei de armas do Império pode ser tida como o marco inicial da heráldica brasileira.

A partir de 1808, quando Dom João instalou a Corte no Rio de Janeiro, foram-se paulatinamente duplicando as instituições necessárias ao governo da monarquia, inclusive aquelas às quais competia conceder ou confirmar as diferentes formas de amerceamento régio: títulos de nobreza, foros de fidalguia, ordens de cavalaria, brasões de armas etc.

No que respeita à última das mercês mencionadas, consta que a Corporação dos Reis de Armas foi criada aos 8 de maio de 1810, claramente para funcionar no casamento do infante Dom Pedro Carlos, neto de Carlos III da Espanha, que crescera em Portugal e também viera para o Brasil, com a infanta Dona Maria Teresa, a primogênita do príncipe regente, o qual foi celebrado no dia 13 desse mês no Rio. As nomeações saíram, todavia, algum tempo depois: a Isidoro da Costa e Oliveira deu-se o ofício de rei de armas Portugal por alvará de 13 de setembro de 1814; a Tomás Antônio Carneiro, o de rei de armas Algarve por alvará de 18 de novembro do mesmo ano; a Luís Ribeiro de Carvalho, o de rei de armas América, Ásia e África por alvará da mesma data. Os efeitos desses documentos retroagiam a 19 de junho de 1810, quando se lavrou a Decisão n.º 12, declarando as insígnias dos oficiais de armas.

Para passar cartas de brasão e registrá-las, faltava, porém, prover o ofício de escrivão da Nobreza, o qual foi dado a Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco por alvará de 6 de fevereiro de 1811. Enquanto isso, Francisco de Paula Campos, escrivão da Nobreza por alvará de 18 de julho de 1803, e Antônio da Silva Rodrigues, rei de armas Portugal por alvará de 19 de julho de 1805, sucedido por José Teodoro de Seixas a partir de junho de 1811, permaneceram no Reino, passando e registrando tais cartas, de modo que houve desde então dois Cartórios da Nobreza: um em Lisboa e o outro no Rio.

Convém lembrar que a corporação dos oficiais de armas foi instituída por Dom Manuel I em 1512 (leia-se a postagem de 13/01/2021). Compunha-se de três reis de armas, três arautos e três passavantes. Os primeiros tinham os nomes dos dois reinos e do único estado ultramarino à época: rei de armas Portugal, rei de armas Algarve e rei de armas Índia. Os segundos, os nomes das cidades principais desses domínios: arauto Lisboa, arauto Ceuta (depois Silves) e arauto Goa. Os terceiros, das suas maiores vilas: passavante Santarém, passavante Tavira (depois Lagos) e passavante Cochim. Portugal era o oficial de armas principal desde 1476 e, como tal, competia-lhe exclusivamente passar brasões em nome do monarca (leia-se a postagem de 11/01/2021).

Portanto, o rei de armas América, Ásia e África foi uma inovação e em 1817, quando se aproximava a aclamação de Dom João VI (que se celebraria em fevereiro do ano seguinte), pleiteou a precedência para proferir o "Ouvide!", mas a Mesa do Desembargo do Paço preferiu salvaguardar a principalidade do rei de armas Portugal, julgando que o de Luís Ribeiro não era ofício novo, mas mera renomeação do rei de armas Índia, não mais alusivo a um dos estados, mas ao conjunto do império ultramarino, embora então houvesse alguém na posse desse ofício: José da Cunha Madeira, que serviu de rei de armas Portugal interinamente desde dezembro de 1817 junto ao cartório lisboeta.

Dom Pedro I, gravura de Pierre-Louis Grevedon, c. 1830 (imagem disponível na Brasiliana Iconográfica).
Dom Pedro I, gravura de Pierre-Louis Grevedon, c. 1830 (imagem disponível na Brasiliana Iconográfica).

Foi, pois, mais um fausto da monarquia que demandou a criação da corporação brasileira dos oficiais de armas em novembro de 1822: a sagração e coroação de Dom Pedro I. A corporação que funcionava no Rio partira com Dom João VI para Portugal em abril de 1821, exceto Félix José da Silva, que tinha o ofício de passavante desde 1817. Foi feito rei de armas do Império:

Eu, o Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Império do Brasil, faço saber a vós, José Bonifácio de Andrada e Silva, do meu Conselho de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império e que servis de meu Mordomo-Mor, que hei por bem e me praz fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, com o qual haverá mil e quinhentos réis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, paga a vinte réis o alqueire, e sete mil cento e sessenta réis de vestiaria por ano e seiscentos réis de janeiras. Mando-vos o façais assentar no Livro da Matrícula dos Moradores da minha Casa em seu título, como dito é. E pagou de novos direitos cinco mil e seiscentos réis, que se carregaram ao Tesoureiro deles no Livro Primeiro da sua Receita, a folhas nove. Rio de Janeiro, 23 de novembro de 1822. Imperador com guarda. José Bonifácio de Andrada e Silva. Praz a Vossa Majestade Imperial fazer mercê a Feliz José da Silva do ofício de Rei d'Armas do Império, como neste alvará se declara. Para Vossa Majestade Imperial ver. Por portaria do Ilustríssimo e Excelentíssimo José Bonifácio de Andrada e Silva, que serve de Mordomo-Mor, de 12 de novembro de 1822. O Visconde do Rio Seco o fez escrever. Do alvará, 12$800; aos oficiais, 1$600. Domingos José Ferreira o fez. (1)

Além do rei de armas, o cerimonial também previu o funcionamento de um arauto e um passavante, mas apenas o alvará transcrito saiu antes da cerimônia. O ofício de passavante do Império foi criado e dado a José Bernardes Monteiro Guimarães por alvará de 30 de dezembro de 1822 e o de arauto do Império, a Daniel José Pereira por alvará de 24 de maio de 1823. Como havia um oficial de cada categoria, não foi preciso dar-lhes nomes de lugar.

Carta de brasão de Augusto Leverger, barão de Melgaço e presidente do Mato Grosso, passada pelo rei de armas Manuel dos Santos Carramona e registrada pelo escrivão Luís Aleixo Boulanger em 1865. As suas armas são "em campo de goles um castelo de ouro, saindo pela porta uma [mão] destra ao natural, armada de uma espada de azul, posta em banda, acompanhado em chefe de uma estrela de prata entre as letras iniciais M–G de ouro e em ponta de um rio de prata, carregado de uma âncora de sable; divisa: SEMPRE PRONTO" (imagem disponível da Biblioteca Nacional Digital).
Carta de brasão de Augusto Leverger, barão de Melgaço e presidente do Mato Grosso, passada pelo rei de armas Manuel dos Santos Carramona e registrada pelo escrivão Luís Aleixo Boulanger em 1865. As suas armas são "em campo de goles um castelo de ouro, saindo pela porta uma [mão] destra ao natural, armada de uma espada de azul, posta em banda, acompanhado em chefe de uma estrela de prata entre as letras iniciais M–G de ouro e em ponta de um rio de prata, carregado de uma âncora de sable; divisa: SEMPRE PRONTO" (imagem disponível da Biblioteca Nacional Digital).

O arauto era uma espécie de aprendiz do rei de armas e o passavante, uma espécie de aprendiz do arauto. Com efeito, Félix José da Silva foi sucedido no ofício de rei de armas por José Maria da Silva Rodrigues em 1846, quem o exerceu até 1859, sendo que ele mesmo assumira o ofício de arauto no lugar de Daniel José Pereira em 1826. Seguiu-se Manuel dos Santos Carramona de 1865 a 1885, depois de quem vagou, mas Ernesto Aleixo Boulanger serviu interinamente desde 1887 até o fim da monarquia. Portanto, o Brasil teve quatro reis de armas, tendo o primeiro funcionado nas sagrações e coroações dos dois imperadores.

Seja como for, os oficiais de armas estavam entre os menores da Casa Imperial: o próprio Félix José da Silva começou a sua carreira cortesã como apontador de carpinteiros e veio ascendendo a mestre das obras públicas, varredor dos paços reais e mestre carpinteiro da Fazenda Real de Santa Cruz antes da Independência; depois, além de rei de armas, foi da Guarda de Honra (onde chegou a capitão), cavaleiro da Ordem de Cristo e cavaleiro-fidalgo da Casa Imperial. Passou a vida queixando-se de insuficiência financeira e requerendo mercês à Coroa.

José Antônio da Silva Maia nos seus Apontamentos de legislação para uso dos procuradores da Coroa e Fazenda Nacional (1846, p. 146) revela que "[n]o Brasil há somente três destes oficiais — rei d'armas, arauto e passavante — e exercem funções semelhantes às que ficam expostas, sem terem a instrução que neles desejou o rei Dom Manuel". Mas esse defeito não surgiu aqui; desde o começo do século XVIII, o rei de armas Portugal fazia pouco mais que despachar ao escrivão da Nobreza que passasse ao suplicante "o brasão de armas dos seus apelidos", cobrar os seus direitos e assinar a carta de confirmação ou concessão. Dom João V convenceu-se até mesmo de designar em 1722 um frade paulista para reformar o Cartório da Nobreza, Frei José da Cruz, tarefa continuada por Frei Manuel de Santo Antônio e Silva até 1790.

Portanto, no Brasil, como em Portugal sob a monarquia constitucional, o grosso do trabalho no Cartório da Nobreza recaía sobre o seu escrivão, daí que o derradeiro rei de armas do Império, Ernesto Aleixo Boulanger, estivesse, na verdade, acumulando interinamente esse ofício com o seu, precisamente o de escrivão da Nobreza. O primeiro seguiu sendo Antônio Bernardo Cardoso Pessanha de Castelo Branco, que não voltara com Dom João VI para Lisboa; sucedeu-lhe seu filho, Joaquim de Azevedo Lobo Pessanha e Vilhegas Castelo Branco (1830-46); depois o barão Carlos Roberto de Planitz (1846-48), Possidônio Carneiro da Fonseca Costa (1848-54), Luís Garcia Soares de Bivar (1854-63) e Luís Aleixo Boulanger (1863-74), pai de Ernesto Aleixo (1874-89). Em suma, o Cartório da Nobreza do Império teve sete escrivães.

Nota:
(1) As doações dos ofícios da Casa Real, depois Imperial, eram assentadas em livros próprios, guardados no Registro Geral das Mercês. Dou aqui a transcrição de Rui Vieira da Cunha em artigo de 1963, do qual também extraio parte das informações nesta postagem.

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