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21/11/22

BICENTENÁRIO DA HERÁLDICA BRASILEIRA: AS INSÍGNIAS

Os oficiais de armas trajam insígnias que os distinguem pomposamente desde a sua origem no fim da Idade Média.

Na postagem anterior, eu disse que as nomeações de Dom João para a Corporação dos Reis de Armas no Rio de Janeiro retroagiram a 19 de junho de 1810. Nessa data, lavrou-se uma decisão de governo a respeito das insígnias de tais oficiais:

DECISÃO N.º 12, DE 19 DE JUNHO DE 1810
Declara as insígnias das pessoas empregadas na Corporação dos Reis de Armas.
O Príncipe Regente, nosso Senhor, é servido ordenar que as pessoas empregadas na Corporação dos Reis de Armas, que mandou criar nesta Corte em 8 de maio próximo passado, usem das suas insígnias pendentes de uma fita azul-claro, que é da mesma forma que lhe foi concedido em Lisboa, a saber, os reis de armas usarão de uma medalha com as armas reais e uma coroa por cima; os arautos, dessa medalha com as armas reais somente, e os passavantes, de uma medalha esférica com o escudo das armas no centro e as cinco quinas. O que tudo participo a Vossa Mercê para sua inteligência e assim o fazer constar às sobreditas pessoas.
Deus guarde a Vossa Mercê.
Paço, em 19 de junho de 1810.
CONDE DE AGUIAR
SR. ISIDORO DA COSTA E OLIVEIRA

Segundo Rui Vieira da Cunha em estudo de 1974 (1), o testemunho mais antigo dessas insígnias remonta ao reinado de Dom José: datam de 1763 umas Ordens que se expedem pela Mordomia-Mor nas funções dos batizados de pessoas reais, nas quais se lê:

Luís Rodrigues Cardoso, que serve de Rei de Armas Portugal, avisará aos reis de armas, arautos e passavantes para se acharem todos no Paço no dia de domingo, 2 de outubro próximo futuro, pelas duas horas da tarde, e assistirem com cotas e colares à função do batismo do Sereníssimo Senhor Infante, neto de Sua Majestade. E para o dito efeito, receberão as ditas cotas e colares do Tesoureiro da Casa Real, na forma costumada.

Nuno Álvares Pereira na Corônica do condestabre de Purtugal, 1526 (exemplar conservado na Biblioteca Nacional de Portugal).
Nuno Álvares Pereira na Corônica do condestabre de Purtugal, 1526 (exemplar conservado na Biblioteca Nacional de Portugal).

O infante era Dom João, secundogênito da princesa Dona Maria, que veio morrer menos de um mês depois de ter nascido. Além do colar, o texto menciona a cota, sobreveste distintiva dos oficiais de armas desde fins do século XIII. A rigor, a cota fazia parte do armamento do cavaleiro (leia-se a postagem de 10/02/2021), ao passo que a do oficial de armas se denomina tabardo. A cota aparece, por exemplo, na iconografia de Nuno Álvares Pereira (1360-1431), o Santo Condestável, reproduzindo as armas dos Pereiras: de vermelho com uma cruz florenciada de prata, vazia do campo.

Samy Khalid, Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, proclamando o rei Carlos III em Ottawa, 10/09/2022 (vídeo disponível no portal da CBC).
Samy Khalid, Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, proclamando o rei Carlos III em Ottawa, 10/09/2022 (vídeo disponível no portal da CBC).

Com efeito, restam poucos oficiais de armas hoje em dia: na África do Sul, o Bureau of Heraldry é chefiado pelo National Herald; a Canadian Heraldic Authority/Autorité héraldique du Canada é formada por seis arautos sob a direção do Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada; na Escócia, a Court of the Lord Lyon é formada por três arautos e três passavantes sob a chefia do Lord Lyon King of Arms; na Inglaterra, com jurisdição sobre o resto do Reino Unido e demais reinos da Comunidade britânica, o College of Arms é formado por dois reis de armas, seis arautos e quatro passavantes sob a chefia do Garter King of Arms; na Irlanda, há o Oifig an Phríomh-Aralt/Office of the Chief Herald; em Malta, o Office of the Chief Herald of Arms; o New Zealand Herald of Arms Extraordinary é o oficial de armas extraordinário do College of Arms para a Nova Zelândia; o Геральдический совет при Президенте Российской Федерации (Geral'dičeskij sovet pri Prezidente Rossijskoj Federacii, i.e., 'Conselho Heráldico da Presidência da Federação Russa') é presidido pelo государственный герольдмейстер (gosudarstvennyj gerol'dmejster, i.e., 'arauto principal do estado'); na Suécia, o Heraldiska nämnd é chefiado pelo Statsheraldiker. De todos, apenas o Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada e os oficiais de armas britânicos costumam trazer tabardo, precisamente porque desempenham funções cerimoniais, como se viu recentemente na proclamação de Carlos III e nas honras fúnebres de Elizabeth II. (2, 3)

David White, Garter King of Arms, proclamando os títulos e tratamentos de Elizabeth II enquanto o seu féretro descia, encerrando as suas honras fúnebres na Capela de São Jorge, Castelo de Windsor (St George's Chapel, Windsor Castle), 19/09/2022 (imagem disponível no portal da Sky News).
David White, Garter King of Arms, proclamando os títulos e tratamentos de Elizabeth II enquanto o féretro descia, encerrando as suas honras fúnebres na Capela de São Jorge, Castelo de Windsor (St George's Chapel, Windsor Castle), 19/09/2022 (imagem disponível no portal da Sky News).

Não obstante, a Espanha é, neste tema, um caso curioso. A comunidade autônoma de Castela e Leão criou, mediante o Decreto 105/1991, de 9 de maio, o cargo de cronista de armas de Castilla y León e, pelo Decreto 111/1991, de 15 de maio, o presidente dessa comunidade nomeou Alfonso de Ceballos-Escalera Gila, marquês de La Floresta, para tal cargo. O artigo 16 da primeira norma dispõe que "ostentará las facultades y competencias tradicionales de los antiguos Cronistas, Reyes de Armas y Heraldos de Castilla y León, contenidas en el Real Decreto de 29 de julio de 1915, y el Decreto de 13 de abril de 1951" ("ostentará as faculdades e competências tradicionais dos antigos Cronistas, Reis de Armas e Arautos de Castela e Leão, contidas no Real Decreto de 29 de julho de 1915 e no Decreto de 13 de abril de 1951"), mas o Conselho de Estado, por meio do Ditame 2.437/1995, entende que essa disposição excedeu a competência do governo autônomo, de modo que o cronista de armas se cinge, sob a perspectiva do estado espanhol, a prestar ao dito governo assessoria em matéria de heráldica municipal. À falta de função cerimonial, não se vê o marquês de La Floresta vestindo tabardo.

Maceiro das Cortes Gerais na proclamação de Filipe VI, 19/06/2014 (imagem disponível no portal de El País).
Maceiro das Cortes Gerais na proclamação de Filipe VI, 19/06/2014 (imagem disponível no portal de El País).

Ao mesmo tempo, é muito habitual ver tabardos em cerimônias públicas por toda a Espanha, especialmente nos territórios da antiga Coroa de Castela. Ocorre que aí essa sobreveste se tornou característica dos maceiros. Um macero, segundo o Diccionario de la lengua española, da Real Academia Española, é uma "persona que lleva la maza delante de las corporaciones o personas autorizadas que usan esta señal de dignidad" ("pessoa que leva a maça diante das corporações ou pessoas autorizadas que usam esse sinal de dignidade"), ou seja, equivale ao antigo oficial que em Portugal e no Brasil se denominava porteiro da maça. Como lá a difusão é extensa, há notável diversidade de estilos:

  • O tabardo que os maceiros de Alcalá de Henares trazem exemplifica o modelo mais comum, a saber, tem cor igual à bandeira municipal e ornamentos dourados e ostenta o brasão municipal sobre o peito de quem o veste;
  • os maceiros da província de Guadalajara trazem um tabardo purpúreo sem armas algumas, já que as provinciais pendem de um corrente ao pescoço;
  • aqueles da província de Guipúzcoa, um da mesma cor com as armas provinciais no meio da peça dianteira, dois brasões municipais abaixo delas e mais três na peça traseira e a águia imperial com as Colunas de Hércules nas peças laterais;
  • aqueles da cidade de Leão, um com as armas dos Reis Católicos (sem o embutido em ponta de Granada) abrangendo a maior parte das peças dianteira e traseira, e as armas municipais nas peças laterais;
  • aqueles da vila de Madrid, um semelhante, mas as armas que abrangem a maior parte das peças dianteira e traseira são as assumidas pelo General Francisco Franco em 1938, nas quais em vez das armas da Sicília aparecem as de Navarra, e, sobre o todo, as armas que o município trouxe de 1859 a 1967;
  • aqueles da cidade de Burgos, um com as armas de Castela e do município multiplicadas a modo de xadrezado de três tiras em pala.

Tabardo português do século XVIII (conservado no MNC, Lisboa).
Tabardo português do século XVIII (conservado no MNC, Lisboa).

Em Portugal, o Museu Nacional dos Coches (MNC) conserva seis tabardos com os respectivos colares, os quais descreve assim: "Distintivos – séc. XVIII. Trabalho português. Túnica dos reis de armas e colar de prata dourada. Dalmáticas com as armas em brocado vermelho, agaloadas a ouro, com aplicações de prata dourada representando castelos heráldicos, com as armas reais da época de D. José I". Inclusive, um par desses bens foi cedido ao novo Museu do Tesouro Real.

Colar de rei de armas (conservado no MNC e cedido ao Museu do Tesouro Real, Lisboa).
Colar de rei de armas (conservado no MNC e cedido ao Museu do Tesouro Real, Lisboa).

Como se lê e se vê, o tabardo dos oficiais de armas portugueses, ao menos desde o reinado de Dom José, não reproduzia nenhum brasão, mas era todo vermelho com ornatos vegetais em tom mais claro. Aplicaram-se sete torres de prata dourada, esculpiadas em alto relevo, três em cada flanco e uma no meio, pouco abaixo do peito de quem o vestia. A forma de torre é a que se deu aos castelos das armas reais desde o século XVIII, portanto a feitura desse tabardo se inspirou na bordadura dessas armas. Por que se preteriram as hiperemblemáticas quinas? Suspeito que terá influído aí o fato de o vermelho ser a cor da Casa Real desde 1728, como a própria coleção de fardamentos do MNC o demonstra.

Bens do MNC cedidos ao Museu do Tesouro Real (imagem publicada pela DGPC no Twitter).
Bens do MNC cedidos ao Museu do Tesouro Real (imagem publicada pela DGPC no Twitter).

Com efeito, esse estilo de tabardo eludia a convenção originária de restringir as armas reais ao oficial de armas principal, cabendo aos demais trazer aquelas dos reinos, senhorios e povoações que os nomeavam, como o testemunham as gravuras das honras fúnebres de Carlos V, engenhadas por Hieronymus Cock e editadas por Christophe Plantin em 1559. Ainda assim, um tweet da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) mostra um tabardo mais rico, cujos ornatos vegetais também receberam aplicações de prata dourada. Seja como for, a norma transcrita no topo desta postagem patenteia que eram os colares que distinguiam os oficiais de armas portugueses, porém a insígnia que vemos nas fotografias acima — as armas reais ao gosto barroco — não pende de uma fita azul, mas de elos do mesmo metal, finamente lavrados e encadeados.

No mesmo estudo, Rui Vieira da Cunha observa que o Livro 1.º de Funções da Coroação (fol. 74v) registra um aviso ao rei de armas que testemunha a continuidade de todas estas coisas no Brasil:

Para o Rei de Armas. Félix José da Silva, Rei de Armas, avise o arauto e passavante para que no dia 1.º de dezembro próximo seguinte se achem neste paço, onde estarão as insígnias que lhe pertencem para assistirem ao auto da coroação e sagração de Sua Majestade Imperial. E para seu governo se remete o exemplar incluso do cerimonial do referido auto. Rio de Janeiro, em 23 de novembro de 1822.

Essa é exatamente a mesma data em que se criou o ofício de rei de armas do Império e o dito Félix José da Silva foi nele provido. Como eram essas insígnias? Terá havido tempo para confeccionar um tabardo? Se não houve, parece certo que depois se fez, já que o mesmo autor achou numa portaria de 9 de agosto de 1843, endereçada ao rei de armas por José Antônio da Silva Maia, ministro do Império, o aviso seguinte:

Fique na inteligência de que deve comparecer com o arauto e passavante, com cotas e colares, pelas nove horas da manhã no cais denominado da Imperatriz, no dia em que Sua Majestade, a Imperatriz, fizer a sua entrada solene nesta Corte, a fim de tomarem no acompanhamento o lugar que lhes compete, na forma do programa, de que, para seu conhecimento, se lhe remete o incluso exemplar.

Trata-se, evidentemente, da chegada da imperatriz Dona Teresa Cristina ao Rio de Janeiro em 3 de setembro desse ano. O veterano Félix José da Silva respondeu que não poderia comparecer. Por alvará de 21 de agosto do mesmo ano, o arauto José Maria da Silva Rodrigues sucedeu-lhe no ofício de rei de armas do Império.

Infelizmente, não se conhece descrição nem registro visual das insígnias dos oficiais de armas brasileiros, tampouco o paradeiro delas após a queda da monarquia. A derradeira cerimônia em que consta a participação dessa corporação é o batizado do príncipe Dom Luís aos 14 de março de 1878. Presume-se, portanto, que por mais de um decênio antes de a corporação se acabar não precisou usar as suas insígnias. Na verdade, após a morte de Manuel dos Santos Carramona em 1885, sequer voltou a se recompor. E a incúria com que se geria, como o prova o extravio dos livros do Cartório da Nobreza, sugere, enfim, que os desusados tabardos devem ter virado trapos velhos e os colares devem estar por aí, nas mãos de ignotos particulares, quiçá depois de os terem arrematado em leilão, destinos habituais de bens que o poder público não pôde conservar.

Notas:
(1) Ainda as insígnias de oficiais heráldicos, publicado na revista Armas e troféus (III série, tomo III, p. 369-373). Agradeço ao Instituto Português de Heráldica, na pessoa do Sr. João Portugal, o acesso a esse estudo.
(2) Há imagens dos membros do Conselho Heráldico da Presidência da Federação Russa vestindo tabardos na Internet, mas não parece um uso cerimonial, e sim comemorativo. Por outro lado, Philip Patrick O'Shea, New Zealand Herald Extraordinary, exerce funções cerimoniais, como a dita proclamação de Carlos III, mas não veste tabardo.
(3) É perfeitamente possível traduzir os nomes dos oficiais de armas: rei de armas Jarreteira, arauto extraordinário Nova Zelândia, arauto nacional, principal, estatal etc., mas além de não se dizer Senhor Leão, nem mesmo Lorde Leão, por Lord Lyon, acho interessante a dualidade inglês–francês em Chief Herald of Canada/héraut d'armes du Canada, em que uma locução não é exatamente tradução da outra.

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